A Alegria Cristã na Fraqueza

Aspectos de uma antropologia bíblica

Natanael Pedro Castoldi
5 min readJan 22, 2025

“Quem -pensa- estar de pé, cuide para que não caia”, recomenda o apóstolo em sua primeira epístola aos cristãos de Corinto (10:12). Na Escritura há, de fato, um cabedal de boas questões que todo o homem deve fazer para si mesmo, para que mantenha-se equilibrado na perspectiva lúcida de sua própria fraqueza: “que pode o homem valer?” (Is 2:22); “quem te julgas tu?” (Is 51:12); “o que é o homem?” (Sl 144:3). O pressuposto, inicialmente representado pela perene presença da semente pagã dentro de Israel (Dt 31:16–18; Jz 3:3–7), é a conservação inextricável de um princípio de Mal no coração do homem (Gl 5:17), o qual será finalmente aniquilado quando o homem for tornado, e de todo, Nova Criatura, isto é: conhecer a Ressurreição em Corpo Glorioso (1 Co 15:53–54), e quando for instaurada, na Nova Criação, a Verdadeira Israel de Deus no Monte Santo (Is 2:1–5) — está evidente aqui, no desenvolvimento revelacional e de consciência que vai de Israel até os Apóstolos, uma coincidência entre a Restauração do Povo Santo sob o governo eterno do Messias e a Restauração completa do homem individual sob a égide da Ressurreição de Jesus. E nisto insta patente a máxima verdade sobre a condição humana em vigor, porque ele aspira renascimento, e o deseja para o Mundo inteiro: ele é fraco porque é caído e naturalmente inclinado, segundo a lei do Pecado e da Morte, ou segundo a Carne, a toda a qualidade de mal.

Nessa sabedoria, há também a severa crítica profética à presunção do homem, quanto este, altivo, revolta-se contra os fatos de sua própria natureza e procura se elevar, por suas forças nativas, a um patamar que é supranatural. Todo o acusado em Isaías 2 vai nesse sentido: o acúmulo de riquezas e de bens, a construção de fortalezas, a multiplicação de exércitos, a obtenção das melhores peças de arte, o acúmulo de ídolos feitos pelas mãos dos artífices… são maneiras sempiternas de o homem tentar contornar a perspectiva da morte pela anulação da impressão de sua real fragilidade, distorcendo sua perspectiva. Ali, contudo, está explícito o reconhecimentos dessa fragilidade e do medo da morte, que se torna extremo quando as defesas e as fantasias se dissolvem, levando-o até ao fundo da terra, para se salvar: se ele se esconde dentro de torres de pedra, atrás de armaduras e de homens armados e se ele se senta sobre silos de grãos e montes de ouro, atesta o quanto sua pele é penetrável e o quanto a necessidade, ou “ananque”, o persegue, já que fome e sede podem derrubá-lo em um punhado de dias — no fim, sua vida é medida segundo a extensão de seu fôlego (Is 2:22).

… se ele se senta sobre silos de grãos e montes de ouro, atesta o quanto sua pele é penetrável…

Essa notável antropologia, de um realismo atroz, dá uma resposta teológica, que é satisfatória, para a trágica fragilidade humana: despido das vestes de Luz, que trajavam-no de eternal grandeza, o homem sai do Jardim recoberto de peles de animais mortos, pois precisa esconder a sua nudez, uma alusão clara à vulnerabilidade de seu Corpo da Morte, perecível, cujo destino é ser dissolvido por completo e, havendo no seu fundo a Semente Divina (1 Pe 1:23), dar lugar ao Corpo da Ressurreição. Uma tão severa fraqueza, com todas as implicações do princípio de Mal que dela se serve, é consequência do Pecado, mas também o fundamento da exigência que Deus apresenta ao Seu Povo: só a dependência completa d’Ele e do Seu cuidado é base suficiente para a segurança necessária ao homem, para que ele possa estar no Mundo em paz, sem sucumbir às angústias e ansiedades decorrentes de uma confiança depositada em si mesmo e na própria força (Ec 5+). O Senhor recorrentemente Se vale dessa realidade para trazer o homem, quando do Seu Povo, de volta para Si — “E tantos males e angústias os alcançarão, que naquele dia dirão: ‘Não é verdade que estes males nos alcançaram porque o nosso Deus não está entre nós?’” — Dt 31:17

Um outro aspecto dessa sabedoria, indo na contramão de formas ‘daemoníacas’ e modernas, ou populares, de “estoicismo”, “coach” e certas psicoterapias, é a compreensão lúcida de que, carregando consigo uma raiz de maldade, que é ontológica — quer dizer: nativa do homem caído — e, portanto, meramente controlável e jamais destrutível por empenho de homem, não convém ao sujeito que se exponha o tempo todo às situações críticas de tentação e de dificuldades relativas às suas fraquezas, como se, por meio disso, sempre e necessariamente desenvolvesse as forças e competências intrínsecas que o capacitariam a suprimir frontalmente as tentações e as dificuldades. Há casos e casos, mas não deixa de ser altivez a suposição de que o homem verdadeiramente maduro e adaptado às circunstâncias da vida é somente aquele que desenvolveu em si e por si mesmo, como recursos internos, os modos ideais de derrotar ou de absorver todo o potencial Mal que o cerca, transformando-o em Bem.

… é a alegria no Senhor, e não a autoimposição de fardos e de flagelos, o que dá legitimidade à vida cristã…

Não se deve subestimar o princípio de Mal que habita nosso coração e que opera através da Carne. O apóstolo Paulo lutou severamente para superar a mais terrível de suas fraquezas, e por mais que fosse conhecedor do sumo da filosofia estoica, de nada adiantou (2 Co 12:7–10)! Ainda que seja fundamental o desenvolvimento de virtudes e de firmezas interiores sólidas o suficiente para o combate frontal de tentações e dificuldades, o recomendável, via de regra e em vista das inclinações nativas do homem ao Mal, é a fuga da tentação e o desvio dos males desnecessários, porque o melhor remédio para as intermináveis dificuldades não está num obstinado olhar para o Abismo, mas no preenchimento do coração com a beleza de Cristo e no nutrir da mente com toda a Palavra de Deus (Pv 7:1–5), porque é a alegria no Senhor (Ec 5:19–20), e não a autoimposição de fardos e de flagelos, o que dá legitimidade à vida cristã (Cl 2:20–23)!

Quem se sente angustiado e triste? Quem vive brigando e se queixando? Quem sofre ferimentos desnecessários? Quem tem os olhos sempre vermelhos? Aquele que passa horas tomando vinho e experimentando bebidas fortes. Não olhe demoradamente para o vinho, observando quanto ele é vermelho; como brilha no copo e desce suavemente. Pois, no fim, ele morde como cobra venenosa; pica como víbora. Você terá alucinações e dirá coisas sem sentido. Ficará tonto como marinheiro em alto-mar, agarrado ao mastro em meio à tempestade. Dirá: ‘Bateram em mim, mas não senti; nem percebi quando levei uma surra. Quando acordarei para beber de novo?’
- Provérbios 23:29–35

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 21 de janeiro de 2025.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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