A Alma nas Eras Atômica e Espacial

A presença do Vazio na formação do Homem Psicológico

Natanael Pedro Castoldi
9 min readJul 11, 2023

A eclosão da Era Espacial e a Era Atômica, concomitantes, devem ser postas como as duas experiências civilizacionais mais determinantes para a formação do homem contemporâneo, que está sendo construído nesse exato momento. Digo-o tendo em vista a sequência de absurdos que o Ocidente conheceu desde a Primeira Guerra Mundial, a Guerra Total, enquanto culminações dos “totais” fomentados ideológica e politicamente desde o Séc. XVIII, aos quais Kirk chama de Cavaleiros do Apocalipse (porque um absoluto idílico sempre antecipou um total contrário). A Guerra Total, com milhões de mortos, distendeu, esticou, rompeu as estruturas da psique coletiva com o mesmo horror da Peste Negra, mas dessa última vez, não houve contingência civilizacional para significar esse trauma coletivo (como Delumeau descreve a Peste) — foi-se de uma Guerra Total para a outra, e então para a Era Atômica e para a Era Espacial, sempre distendendo mais, assombrando mais, pressionando mais a mentalidade ocidental.

Grandes momentos de virada na “psique universal” são associados à emergência de situações limite, com a superação de fronteiras antes cogitadas apenas miticamente

Grandes momentos de virada na “psique universal” são associados à emergência, em termos de fato, de situações limite, com a superação de fronteiras antes cogitadas apenas miticamente, e que sejam vividas simultaneamente pela maior parte das pessoas (é assim que se forma um Mito Fundador, por exemplo). Uma superação tal e em concreto dos limites imagináveis carrega uma aura prometeica de transgressão, de pecado, de insolência titânica, e é vista numa mistura de assombro, temor e excitação, com subsequente culpa, medo e tendência propiciatória, de expiação do mal, pela aderência a movimentos zelóquicos — seitas, militâncias políticas, movimentos populares de matiz ambientalista, pacifista, democratista, progressista em geral… sempre pautados no combate a uma suposta ameaça de aniquilação ou de regressão tirânica, que deve ser encarada como um mecanismo projetivo e expiatório, pretextual, portanto, para dar um objeto à culpa e ao medo gerais e, disso, um sentido pessoal através do ato heroico e redentivo. Nossa memória deve estar suficientemente fresca para encontrar esse combo no tempo pandêmico (que, aliás, foi mais um desses eventos-limite).

A Era Atômica, como disse Hunt (A Sedução do Cristianismo), trouxe à realidade concreta o pavor da destruição total do homem a partir de seu próprio engenho, de seu insolente artifício, da forja profana de um instrumento dotado de poderes divinais — pela primeira vez na história, o homem tem o poder de destruir a si mesmo enquanto espécie, extirpando-se da existência no Mundo. Noutras escalas, esse medo apareceu ao longo dos tempos na mitologia na forma do Fogo dos Deuses, roubado por Prometeu e entregue aos homens, tecnologia proibida e punida com a abertura, por Pandora, de uma caixa que continha em si todas as desgraças que acometem a humanidade. O Fogo dos Deuses é imagem do conhecimento secreto e imanente da substância do Mundo, e a obtenção ilegítima desse conhecimento pelo homem, que por meio dele acessa a matéria-prima da Natureza Visível e toma posse da potência criativa ali encapsulada, resulta na rebentação de todas as moléstias — toda a sorte de doença e desgraça latente vêm à luz junto da manifestação do enigma do Mundo, que deveria ter permanecido ocultado. Igualmente o vemos na história do Dilúvio, que apenas não destruiu a inteireza da humanidade, porque Deus teve piedade do homem — ainda que ele, enquanto criatura, tivesse despertado todo o tipo de violência e destrutividade na medida em que aperfeiçoou-se tecnologicamente na forja dos metais, tão aproximada da magia, conforme ensinada pelos demônios às filhas de Caim, com quem geraram as deformações gigantescas chamadas Nephilim. E quando Ninrode, o Grande Caçador, intentou se vingar de Deus pelo Dilúvio, ultrapassando os limites da opulência e do gigantismo pela construção da Torre de Babel, ao redor da qual congregou incontáveis multidões, desejosas de assaltar os Céus para destronar o Senhor, caos, desordem, ruína e dispersão se abateram sobre ele e sobre o seu formigueiro humano. Outras obras magnânimas da Antiguidade, ligadas à soberba humana e sentidas como insolentes, sinais do intento de quebra dos rígidos limites entre o homem e o divino, aparecem nos mitos que rodeiam as destruições de Tróia e de Jericó, assim como nas profecias hebreias contra o Faraó, contra o rei de Tiro, contra Nínive e contra Babilônia. Um claro limite foi ultrapassado na Era Atômica, incrustado no inconsciente popular com o pavor do iminente Holocausto Nuclear. Rollo May (Psicologia e Dilema Humano) descreveu um pouco desse clima:

No outono de 1961, desenvolveu-se na região Leste [dos Estados Unidos], em face da ameaça de guerra termonuclear, um curioso movimento de pânico que gravitou em torno da construção de abrigos contra as poeiras radioativas. Disse ‘curioso’, não porque a ansiedade fosse propriamente inesperada — seguiu-se ao pânico bastante real da crise de Berlim — mas por causa de certos sintomas psicológicos que surgiram. Durante essas semanas, participei em numerosas discussões e debates públicos na rádio e televisão, e tive a estranha impressão de que, para muitas pessoas, os abrigos atômicos representavam o rastejar de volta às cavernas no seio da terra, como uma manifestação da nossa convicção de que, em nossa impotência, só poderíamos retornar a um novo ventre… — p. 39

Ele o diz no cenário da crise de insignificância do indivíduo, tão evidente no contexto das sanguinárias ditaduras modernas, da Guerra Total e, sobretudo, da Ameaça Nuclear, porque esta se abateu sobre a América, que tinha passado relativamente ilesa (em termos de sentimentos populares) pela Guerra Total. A impressão generalizada da desimportância do eu pessoal, individual, assumido, com grande terror, como descartável e impotente para mudar o andar das coisas — como se milhões fosse refém de um bando de lunáticos cheios de poder -, suscitou ímpetos viscerais, paradoxalmente muito primitivos, de retorno à Terra e à segurança edênica do Jardim Murado — uma angústia impregnada de nostalgia ontológica. Junto desse pavor, vem um impulso de autoafirmação heroica, que faz o sujeito sentir-se exclusivo e especial, no sentido de estar conseguindo superar, através de sua astúcia, as calamidades que vazam da abertura da Caixa de Pandora. Esse sentimento de “estar à frente”, de saber mais do que os outros, de ver-se melhor preparado para o Apocalipse, é parte do que torna as teorias conspiratórias tão atraentes em tempos de crise civilizacional — dá uma sensação de valor pessoal, como compensação pelo sentimento de insignificância, estar combatendo na trincheira “O Inimigo”. Esse apelo magnético que a imaginação catastrófica, apocalíptica, sombria e calamitosa exerce em tempos de crise é, na realidade, um mecanismo defensivo do ego individual, incapaz de suportar a impressão de seu esmagamento diante de potências titânicas, e é por isso que tendem a agregar todo um secto de conspiracionistas, que retroalimentam o discurso ao ponto do absurdo total, pela necessidade de compensação messiânica — assim, enquadram-se naquilo que Edinger define como “zelotismo”, que curiosamente se caracteriza pela supressão do ego pessoal pelo arquétipo do Apocalipse (quaisquer que sejam as suas formas contextuais — Guerra, Vacina, Globalismo… [note que não ignoro os fatos a respeito, mas que me refiro à obsessão por esses temas]) e o autoabandono (compulsivo) em favor da causa santa, enquanto “exército qumrânico”. Novas seitas e outros tipos de tribalismo militante também entram aqui, assim como os identitarismos.

Do outro lado, com características menos “ascéticas”, ficam os hedonistmos diversos e todos os seus vícios — digno de nota é que uma mesma pessoa pode se desdobrar entre apegos “místicos”, pautados em autossacrifício militante e redentor, e hedonismos desenfreados, conforme o momento e o contexto, com a tendência de justificar estes através daqueles, em geral dentro da lógica capitalística, pela qual o domínio das paixões viciosas é legitimado pela ostentação de uma bandeira ou financiamento de uma “causa”, que se impõe sobre a bestialidade (nos termos de Konrad Lorenz) como forma de suprimir a culpa existencial. Ou você acha que os mais inflamados pandemistas reconheceriam de bom grado que se moveram pelo medo e exclusivamente em favor do salvamento da própria pele, em nome do qual sacrificaram o âmago dos valores ocidentais e cristãos, como a dignidade do sepultamento digno dos mortos? Eles o fizeram, é lógico, em nome da ciência, da liberdade e da sobrevivência dos outros, e foram fundo o suficiente nisso para realmente acreditarem na legitimidade de seu empreendimento.

A Era Espacial igualmente se apresenta como a superação dos limites naturais e ontológicos do humano. A visão da Terra desde o Espaço Sideral, que hoje nos parece clichê, foi uma quebra tremenda no fluxo multimilenário da imaginação coletiva. Televisionada para muitos milhões, foi uma experiência total, porque compartilhada pela generalidade das pessoas — seja daquelas que o viram, seja daquelas que ouviram e conversaram sobre. Ninguém em toda a história humana havia visto a Terra desde fora, desde o ponto de vista dos “deuses” — e os poucos que o haviam visto alguns anos antes, eram testemunhas solitárias e especializadas, partícipes dos círculos científicos e políticos, sem a envergadura popular de uma experiência “visionária” tal como aquela da televisão. Campbell chama a imagem televisiva supracitada de “Ressurreição da Terra” — a visão da Terra “nascendo” desde fora, vista do Espaço, solta no Vazio, diminuta e quase irrelevante na vastidão inexpugnável do Cosmos, e a crescente percepção de que todos os planetas próximos eram ermos, mortos de vida, revirou os sentimentos populares e desferiu um golpe poderoso na consciência civilizacional. O vulgo, desde uma visão necessariamente mais cosmológica do que filosófica, de fato não viu Deus naquele oceano escuro e frio, não viu ninguém, e sentiu a solidão do homem no “Jardim” — não há a quem recorrer fora da Terra, nenhuma esperança de salvação exterior, de entidades cósmicas benévolas. A Era Espacial, com o Renascimento da Terra, culminou, como revés, numa interiorização do homem — a visão “total” do Mundo desde sua exterioridade e dentro do “Infinito” etéreo e morto, conduziu a uma virada para dentro.

Essa correlação entre os opostos é evidenciada, por exemplo, na obra de Edgar Mitchell, o sexto homem a andar na Lua, que fundou o Instituto de Ciências Noéticas para a exploração dos poderes mentais do homem, “a mais promissora de todas as fronteiras”. Ele segue dizendo:

… homens e mulheres destacados em campos tão diversos como a neurofisiologia, física teórica e antropologia estão examinando seriamente assuntos como… as capacidades, sempre intrigantes e no entanto bem documentadas, de algumas pessoas para atividades mentais que vão da telepatia e percepção extrassensorial à precognição e telecinesia. — Citado por Dave Hunt, p. 42

Tendo sido desvelada a “fronteira” do Universo, restou o desbravamento da “fronteira” do homem — uma resposta, também, ao assombro da insignificância do Mundo e da solidão humana (Campbell). O homem foi reconhecido como responsável por sua salvação enquanto espécie, e a Terra, tão diminuta e sensível vista de longe, como vulnerável à destruição que o homem pode empreender contra ela. Vista renascendo aos olhos da humanidade, revelou-se concretamente, aparecendo na tênue beleza de seus oceanos azuis — o que antes era uma abstração aos ouvidos populares, apareceu aos seus olhos, pela tela da TV. O apelo de uma tal “Mãe-Terra”, como único e frágil lar da humanidade, como lugar pequeno e perdido no Nada, foi um prato cheio para a disseminação do panteísmo ambientalista da “Aldeia Global”, visando a unidade da humanidade em termos totais e internacionalistas, contra as fronteiras nacionais, vinculadas às religiões tradicionais, à raça e à Guerra. O homem individual, portanto, poderia abrir-se interiormente, descendo para o repositório profundo da Mente Universal, que ele compartilha com Gaia e com toda a humanidade, para resgatar seu potencial genesíaco e colaborar, no corpus global e junto do empenho mundial, para a redenção da Terra e a evolução da espécie, rumo a uma simbiose última, edênica, com a “Mãe” — um ímpeto escatológico de dimensões darwinianas (mas embebido de éthos hindu), que tem a sua contrapartida particular e pontual naquilo que citamos de Rollo May.

Não é necessário um esforço substancial para identificar as retroalimentações e cruzamentos entre a Era Atômica e a Era Espacial — os fenômenos sociais que observamos pertencem aos dois “espíritos”, que, em termos de expressão e impacto, aparecem como um mesmo amálgama, indissociáveis no âmbito da vida civilizacional hipermoderna. O chamado Homem Terapêutico é o tipo humano que tem sido gestado nesse caldeirão, vislumbrado como um homem não ontológico, não definido em termos de sacralidade do corpo, genotípica e fenotipicamente manipulável, sem raça, sem sexo (andrógino), sem família, sem herança, sem propriedade, sem nacionalidade, sem cultura… todo pautado em identidades autoafirmadas, que crê descobrir na fundura de si, mas que de fato são sugeridas pela mídia de massa, pelo algoritmo, pela inteligência artificial, pelo mercado, pelo consumo e, ao fim e ao cabo, pelos interesses dos “iniciados” — daqueles que carregam transgeracionalmente esse ideal evolucionário ocultista, mas que se valeram das situações limites aqui visitadas para a difusão exotérica desse ideal.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 10 de julho de 2023.

--

--

Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

No responses yet