A Carne Deslogogizada
Da formação das culturas e da eclosão do drama contemporâneo
Ao redor de algo do estudo recente, da Palavra Encarnada: quando se fala da quebra, no Ocidente moderno, do Logos Encarnado em favor da Palavra Desencarnada e do imediato estabelecimento da contrapartida subterrânea, a Carne Deslogogizada, que passa a atuar como potência ínfera e ‘daemonizante’ nos fundamentos da Civilização, não se está saindo de um território amplamente reconhecível nas análises psicológicas da cultura. O princípio é o seguinte: existe uma diferença abismal entre aquilo que é ignorado, ou desconhecido, e aquilo que é rejeitado.
Dentro do espectro do monoteísmo, um exemplo propício para o seu desenvolvimento cultural progressivo está no Império Romano. Porque o monoteísmo cósmico preexiste enquanto possibilidade na compactação mitológica mais ancestral, e na medida em que os símbolos vão sendo descompactados e as divindades vão sendo racionalizadas, eclode o insight monoteístico de que todas elas devem ser expressões ou faces de uma única divindade, ou do Divino propriamente dito — entre os gregos, o progresso teológico, que parte do entendimento originário do Divino como o Céu Diurno (um substrato potencial de um monoteísmo latente), culmina na associação de Zeus com o Céu e a Totalidade do Divino. Filosoficamente, os gregos também chegaram à ideia do Deus Um. Similarmente entre os romanos. E isso se deu porque não houve nenhuma interferência significativa nesse desenvolvimento orgânico, o que quer dizer, ainda, que o éthos greco-romano conservou uma vitalidade interna e uma plasticidade consideráveis, análogos à psique saudável, propiciando a escalada, apesar de sobressaltos anacrônicos e nostálgicos, ou conservadores, e perseguições, em direção ao monoteísmo revelacional cristão.
Do outro lado do Mediterrâneo, que é igualmente o exemplo oposto ao greco-romano, está o Egito. Como demonstra Assmann (O Preço do Monoteísmo), o aparecimento do monoteísmo cósmico dentro do Egito se deu de uma maneira revolucionária, com amplo apelo político, baseado no insight pessoal de Aquenáton e culminando num ataque sistemático, explícito e implícito, a todo o sistema autoritativo da religião politeísta primeva, sobremaneira vinculada a todos os processos econômicos e sociais. Os apelos monoteísticos de Aquenáton não chegaram a ser assimilados culturalmente em um sentido positivo, porque não houve tempo para a sua sistemática infusão nos modos de vida populares, por meio de discursos e práticas apolíneas, mas adentrou na cultura como uma sombra de tragédia e de desgraça — uma ameaça frontal à estrutura vital e à própria alma egípcias. A reação enérgica da classe sacerdotal dos imensos complexos de templos, assim como das demais autoridades políticas, e o afã de aniquilar o mais completamente possível toda a memória de Aquenáton e do seu monoteísmo, estabeleceram a ocasião para um traumatismo coletivo e uma ferida na memória egípcia.
Uma rejeição tal, como produto de um trauma na cultura, deu margem à paralisia e fixidez multimilenária do Egito…
A violência repressiva aos ideais cotejados desde Amarna repercutiu em um antimonoteísmo visceral e deu base para a formação da autoconsciência egípcia em termos incontornavelmente politeístas, que não puderam mais simplesmente existir enquanto fatos naturais, pouco esforçados, continuados ininterruptamente e progressivamente desde os primórdios, passando a demandar investimentos intencionais, afirmações explícitas e negações incontestes, como sobreviventes de um ataque potencialmente mortal, de maneira que, conquanto parecessem os mesmos termos de antanho, o eram apenas em superfície. Nos interiores dos termos passou a habitar algo novo: a negação do monoteísmo. Uma rejeição tal, como produto de um trauma na cultura, deu margem à paralisia e fixidez multimilenária do Egito, confundida com estabilidade moribunda, e é análoga ao que veríamos em uma personalidade neurótica.
Nota-se que a memória consciente e ativa do monoteísmo cósmico do deserto foi suprimida praticamente por inteiro, donde seu vulto, pois, rebaixado ao inverso lógico do politeísmo subsistente e renascido, do qual retorna como profunda angústia e energia beligerante ao menor sinal de ameaça — a isso Assmann, aplicando um conceito freudiano, chama de “retorno do recalcado”, tão evidente nas problemáticas relações dos egípcios com os hebreus do tempo mosaico. O contrário é igualmente verdadeiro. É o reconhecimento dos Reinos do Nilo enquanto a epítome do politeísmo e vanguarda na repulsa a toda a forma de monoteísmo que estabeleceu o seu lugar de terra abominável na Escritura Hebraica, nascedouro das animosidades contra YHWH e referência pregressa de tudo quanto Israel deveria rejeitar.
Israel, já introduzido, é um segundo exemplo, mas em um sentido diferente: fundou-se não apenas na afirmação do seu monoteísmo revelacional, chamado também político, mas na negação direta e intensa a toda a forma de politeísmo. À semelhança do que sucedeu a Aquenáton, o monoteísmo israelita, embora não cósmico (não produto de uma dedução abstrativa de um panteão), se impôs de maneira revolucionária, como a oferta da Verdade dada por Deus diretamente a Moisés, príncipe no Egito, junto de uma demanda profética de altíssimo impacto: ele deveria guiar os hebreus escravizados por Faraó à libertação em sentido político, para fundar deles uma nação legítima e forte para a tomada de posse da herdade abraâmica ancestral em Canaã, onde ainda habitava parte da sua parentela mais antiga, e em sentido espiritual, porque os hebreus foram adotados por YHWH como El ou Deus titular e exclusivo e deveriam firmar com Ele uma aliança de fidelidade, que garantiria todos os Seus favores, se a Aliança fosse respeitada. Nenhuma divindade egípcia poderia sobreviver na memória hebreia e em seus afetos, porque todas elas foram derrotadas por YHWH nos atos das Dez Pragas, mais o afogamento dos exércitos de Faraó e a morte deste, a última divindade a ser vencida, e nenhuma divindade de seus antepassados israelitas e cananeus deveria ser objeto de culto — El, Elohim, superara todos os elins.
A experiência do Êxodo, tornada ideal no discurso profético posterior, conquanto repleta de desventuras, porque o povo era de dura cerviz, foi um período extenso de inseminação do culto mosaico na cultura e na nova identidade dos hebreus, todavia a parentela israelita alocada nas montanhas do Vale do Jordão, que rapidamente se uniu à magnífica nação que aparecera do oriente, reintroduziu elementos pagãos no cerne da povo, e todo o período da Reconquista, que inclui o tempo dos Juízes, foi de uma lenta infiltração de motivos idólatras e politeístas gentílicos nos subterrâneos da fé olimpiana e citadina, radicada na Tenda e sustentada por uma elite sacerdotal, influente entre as lideranças tribais e defendida, principalmente desde o princípio da Monarquia, por uma classe profética. O que fica parecendo, quando acompanhamos o desdobramento histórico de Israel no Antigo Testamento, é que os populares, ou a maioria camponesa, não sentia com clareza o conflito entre YHWH e os baalins e astarotes, cultuando-os em conjunto e com uma estranha naturalidade, sendo principalmente com o trauma nacional da destruição de Jerusalém pela Babilônia e do Exílio que houve uma generalizada e espartana rejeição de todos os deuses gentios em favor da fidelidade unívoca a Elohim. É esse o contexto do Retorno à Eretz, e do restabelecimento do Templo e da sua economia cúltica.
… entre os judeus pós-exílicos parece ter havido quase que uma obsessão com a temática da própria culpa e dos próprios erros…
A singularidade judaica no Pós-Exílio, devida à sua autoconsciência histórica, é a severidade com que os judeus assumiram a culpa pelos eventos do tempo da Monarquia, quando a Aliança com YHWH fora rejeitada recorrentemente, ao longo de muitos séculos, por dezenas de reis e por quase todo o povo, culminando no Juízo Divino, antecipado pelo abandono de Deus do Seu santuário, prelúdio da destruição completa do Templo salomônico. Ao contrário do que transcorreu no Egito, no qual as memórias do monoteísmo de Aquenáton foram quase que inteiramente suprimidas e perdidas nas areias do deserto, recalcadas, portanto, como pavores ‘daemoníacos’ mais difusos e, por isso, paralisantes, entre os judeus pós-exílicos, reconfigurados nas décadas em Babilônia, parece ter havido quase que uma obsessão com a temática da própria culpa e dos próprios erros, acompanhada de uma intensificação da memória trágica, para que a experiência, dalgum modo racionalizada, pudesse ser ressignificada e atuar como fundamento positivo da identidade israelita — o constrangimento diante do Senhor, o agravado temor e a tensão inflamada das pretensões de obediência total à Lei, com o vulto do erro e a iminência da aniquilação e do Juízo, foram interpretados por Freud como fatores decisivos para a energia religiosa e intelectual que qualificou o povo judeu por múltiplos séculos, assim como a potência autorreferente que os conservou sobreviventes, mesmo quando da Dispersão.
A supressão do trauma monoteístico no Egito redundou em uma atitude cega e violenta contra ameaças externas, porque essa supressão impediu a formação da autoconsciência em termos de contradição interna — o mal interior, atuante ‘deamoniacamente’, era exteriorizado como violência contra povos estrangeiros, quando de ocasiões de crise especialmente pronunciada, tomando principalmente aos judeus como bodes expiatórios (isso está incrustrado na narrativa do Êxodo, defende Assmann), donde a supracitada paralisia autorreferente e isolante de uma cultura religiosa que se fixou e se cristalizou em seus símbolos mais antigos, arrancados da compactação primeva e potente de desenvolvimentos. Os judeus, por sua vez, apesar de igualmente autorreferentes, assumiram a vereda da autocontenção e do imperativo do autoaperfeiçoamento em santidade e sabedoria, e procuraram se defender da influência estrangeira sobretudo porque desconfiavam de sua própria capacidade de resistir às seduções pagãs e de conservar a obediência à Aliança — embora isso fosse compensado em expressões positivas de magnanimidade e de superioridade. O que quer dizer: souberam identificar a raiz de contradição dentro de seu próprio seio, porque não puderam suprimir as memórias trágicas, e entenderam que eles próprios eram os seus maiores inimigos, e que por eles mesmos é que se fariam amigos ou inimigos de Deus. Por essa razão, a reação de Israel enquanto povo e nação à manifestação do Messias Jesus foi principalmente a de desconfiança e resistência, para, enfim, a de supressão do vulto crístico — havia escrúpulos demais para que fosse possível permitir livre exercício da oferta messiânica, antinômica em larga medida.
É na relação com o cristianismo que Israel conhecerá aquilo que o apóstolo Paulo viu em gérmen: o endurecimento, à semelhança de Faraó. E o que não aconteceu com a destruição de Jerusalém e o Exílio, acabou eclodindo com o escândalo da presença d’O Caminho dentro do judaísmo antigo. A negação do Evangelho foi inflamada desde os primeiros anos, com perseguição armada, da qual o apóstolo Paulo foi o maior proponente conhecido por nós, e o martírio de Estêvão, líder entre os helenistas, o seu maior símbolo. O empenho de desarticulação da disseminação do Evangelho entre a comunidade da Diáspora foi sistemático, com os judaizantes indo após Paulo para subverter o seu ensino, e é em Jerusalém que o apóstolo conhece o início dos processos que acabarão no seu martírio em Roma.
Foi de tal maneira intensa a reação judaica à fé cristã, que o próprio uso da Septuaginta pelas sinagogas ficou sob suspeita, uma vez que ela havia sido a base textual de Escritura que os apóstolos utilizaram e que estava servido de base para a formação teológica da Igreja, donde o desenvolvimento de um novo empenho de disseminação do texto hebraico do Antigo Testamento, assim como a revisão textual das versões mais comuns, para que o texto hebraico se afastasse o melhor possível de interpretações que fossem compatíveis com o uso cristão e profético da Versão dos Setenta. Nisso se vê como a fisionomia do povo judeu, principalmente em sua expressão religiosa, foi alterada sob a pressão da rejeição do Verbo Encarnado, e não é de se ignorar que ali estão as sementes do desenvolvimento da mística judaica e do esoterismo cabalista, com sua leitura espiritual da Escritura, a qual Eni Gil’Ead entende ser fruto de um desconhecimento da realização espiritual e profética do Antigo Testamento no Messias Jesus — porque o significado oculto de toda a Lei e dos Profetas é conhecido em Cristo, e quando Cristo deixa de ser conhecido, o ímpeto messiânico e escatológico deverá encontrar outros objetos. Sem o Messias Jesus, portanto, e como o apóstolo Paulo anteviu, Israel fica com a Lei, e a Lei só, em seu sentido incompleto, e deve permanecer com ela até que Deus o desperte — assim, por não suportar o vulto progressivo da própria culpa, tão largamente inflamado no ano 70 d.C., deverá descer para o inverso de si, severamente suprimido por meio milênio, e fazer parecer que a realização última da Lei é a Não-Lei, com liberdade de tipo milenarista, tal como transparecido nas implicações da cabala e em alguns messianismos extremados.
… o ingresso do cristianismo na Idade Média já é aquele de um cenário de fé popular sobremaneira sincretizado, donde a espontânea assimilação de diversos elementos barbáricos…
O Império Romano conhecerá uma reconfiguração de seu politeísmo antigo nos séculos finais de sua existência, e o fará para resistir à influência cristã e à expansão dessa estranha religião oriental, todavia esse politeísmo romano, ao qual se intenta retornar nos agravamentos das crises imperiais, é aquele do monoteísmo cosmológico (porque o sentido exato e técnico de politeísmo na Europa romana não exclui o monoteísmo cósmico [o mesmo na Índia]), mas vem impregnado de um sentimento diverso daquele de seu tempo anterior, uma vez que se intenta realizá-lo sob ímpetos anticristãos. Esses apelos, porém, não surtem efeitos duradouros na massa citadina e pastoril, já fortemente desapegada da religião oficial, mantida apelativa principalmente às elites sacerdotais e políticas, pelas quais foram perpetradas as derradeiras perseguições — mesmo que tivessem posse dos principais instrumentos de propaganda e dos meios burocráticos todos, o tempo era curto para reverter o quadro. Império não tardou a colapsar. O que significa que a assimilação mediterrânica do cristianismo, sobretudo entre as massas e o campesinato, foi muito mais orgânica do que se costuma imaginar, e o ingresso do cristianismo na Idade Média já é aquele de um cenário de fé popular sobremaneira sincretizado, donde a espontânea assimilação, dentro do corpus cristão, de diversos elementos barbáricos, paralela aos esforços eclesiásticos para conter os excessos e instruir as populações. Ao longo do milênio medieval, a cultura europeia ficou de tal maneira saturada de cristianismo, que em quase nenhuma tradição popular e supérstite deixou de se assumir uma forma cristã, associada a santos e dias sagrados. Enquanto a Cristandade conservou-se vigorosa e a Unidade Espiritual Europeia não conheceu fatores desagregadores notáveis, todas as diferenças internas eram facilmente absorvidas e sua ‘energeia’ era canalizada para lugares oportunos.
O grande Outro para o cristão medieval não chegou a ser o pagão — este foi assimilado de maneira consideravelmente natural -, nem sequer exatamente o judeu — embora tenha ocupado o lócus de bode expiatório em certas regiões e em determinados momentos -, mas o Islã. A presença multissecular dos mouros na Península Ibérica e a intrusão dos berberes até ao coração da França, quando da grande batalha de Poitiers, a posse dos lugares sagrados pelos islamitas, a corrosão constante das bordas do Império Bizantino e o domínio de toda a margem sul do Mediterrâneo, ou da costa do norte da África, e a sua subida pelos confins do oriente europeu, os tornaram uma sombra exterior suficientemente potente para ameaçar a própria sobrevivência da Cristandade e, claramente, um constrangimento e uma afronta perene à Fé, porque não apenas reinavam na Cidade Santa, como também desprezavam a Palavra Encarnada.
Após cerca de quatrocentos anos de lutas internas na Europa e no Oriente para a contenção das incursões mouriscas e seljúcidas, o senso de coesão entre os povos cristãos se intensificou desde a plebe até as cortes, e um verdadeiro frenesi popular foi desencadeado com a convocação da Primeira Cruzada, que levou à Palestina centenas de milhares, dando início a uma empreitada de séculos, que redundou em uma série de derrotas, instigadoras de inflamações sociais sempre mais extremas, até a Terra Santa se perder e algo na alma cristã mudar para sempre.
Eu creio que a experiência das Cruzadas foi uma bênção, mas igualmente uma maldição para a Cristandade. E não o digo por conta das guerras mesmas e do desaparecimento dos reinos cristãos na Palestina, mas dos frutos da própria mobilização das potências almáticas de uma Europa que, de tão fortemente unificada ao redor de seus qualificadores cristãos para fazer oposição ao Islã, perdeu algo de sua capacidade de gerir contradições internas. É claro que não haveria Cristandade sem a reação bélica geral, que precisou se conservar em embate com os muçulmanos até a supremacia cristã, marcada no símbolo de Lepanto, no início Séc. XVI. Mas não se ignore que o motivo da sobrevivência do cristianismo contra o Crescente rompeu algo da continuidade orgânica e secular da Civilização, na medida em que consolidou na consciência europeia, inclusive popular, um sentimento mais fortemente categórico, com uma severidade religiosa mais pronunciada, principalmente nas regiões mais ao Sul, para cá do Danúbio — a saber, entre latinos. Então ânimos heréticos, de apelo popularesco, não puderam mais ser encarados aos modos pregressos, sofrendo amplas investidas inquisitoriais e militares para que fossem suprimidos — foi assim com os albigenses, por exemplo. A maneira de a Cristandade solver focos heréticos tornou-se, como sabemos em Voegelin, menos contingente e mais agressiva, agravando as tensões internas e potencializando forças anômicas e entrópicas, que chegariam ao ápice na Reforma, logo depois do esforço renascentista de revitalizar a Europa Meridional.
Nesse ínterim, a dificuldade da Cristandade em identificar, de modo autoconsciente, a sua própria debilidade ou contradição interna — desde o tempo das Cruzadas, pontua-se -, fê-la reencontrar-se com o edifício escatológico neotestamentário. A Peste Negra, sem dúvidas, contribuiu de maneira incomensurável para isso, e culpados internos para disseminação da desgraça demoníaca passaram a ser aventados. Naturalmente, comunidades tomadas por estrangeiras, como a judaica, ocuparam o primeiro lugar nas suspeitas populares, mas não tardou para que, desde o cerne da erudição eclesiástica, fosse vislumbrada a existência, no coração do Mundo Cristão, do Império de Satã — uma força diabólica, de difícil visibilidade, instalada nos subterrâneos da vida cristã. É aqui que as superstições, sempre problemáticas para a autoridade, foram enquadradas no espectro das ações do Demônio e o vulto do antigo paganismo retornou — porque é claro que, apesar das acomodações multisseculares, sempre houve certo nível de tensão entre a Fé e a idolatria. Um espectro sutil e silente, mui remoto e suficientemente genérico, se impôs no horizonte, e bruxas horrendas foram imaginadas praticando as máximas abominações nos interiores dos bosques escuros, cultuando Satanás em seus sabbat. Esse pavor noturno firmou-se junto de um imenso fervor monástico e mendicante, criando o palco para uma batalha espiritual de proporções apocalípticas, que adquiriu feições cósmicas nas profusões da Peste.
… o que está abaixo da Fé no Cristo, e que lhe assalta com repentes ínferos, é o Anticristo…
A verdade é que a sombra do cristianismo, aquilo que jaz alojado na sua zona de esquecimento, e que mobiliza profundas angústias e reações inflamadas e de tipo inquisitorial, não é exatamente o paganismo ancestral, mas o meio de assimilação desse paganismo no discurso cultural apolíneo: ele é parte de um Império de Trevas de largas proporções, um inverso daquela mesma Cristandade que se viu unida e grande nas Cruzadas. Noutras palavras: o que está abaixo da Fé no Cristo, e que lhe assalta com repentes ínferos, é o Anticristo, quem contém em si toda a amálgama das inimizades contra Deus e é objeto último de todas as suspeitas e de todos os pavores. Servo do Pai da Mentira, o Anticristo vem com a distorção e a inversão de tudo aquilo que jaz radicado na Verdade, e é mestre em todas as seduções.
N’último patamar, é propriamente o Diabo o grande vulto, todavia as associações do Diabo com a vastidão do Mundo e de todos os paganismos, assim como a sua rivalidade direta com Deus Triúno, tornam a sua presença menos perturbadora para a Civilização Cristã do que aquela do Anticristo, porque este vem no texto paulino como parte vil e tenebrosa da própria Igreja, um rival do Cristo que sai do seio da Fé e que estabelece para si uma Anti-Igreja, sentando-se ele mesmo no Santuário e levando consigo uma multidão daqueles que “estavam entre nós, mas que não eram dos nossos”. O que significa que jaz no fundo, diretamente abaixo da Igreja, o princípio da Anomia, e que esta Anomia só não eclode porque há quem a contenha, o Katechon aludido pelo apóstolo Paulo, e que deve ser a própria Igreja, sob o Espírito Santo.
Há, portanto, na consciência ou imiscuído na Igreja, e por extensão nas vísceras das antigas nações cristãs, uma raiz de vilania titânica, um sentimento de autorrepulsa, assentado na impressão de ser portadora do mais terrível mal de todos, e núncia, ao fim e ao cabo, do próprio Eschaton, ou do Juízo Final, na medida em que retém dentro de si mesma a Anomia, que será a marca do Anticristo. A negação do Cristo, do Verbo Encarnado, no sentido de rejeição severa, à semelhança daquilo que descrevemos a respeito do monoteísmo cósmico no Egito, é algo que apenas a Igreja e a Cristandade podem fazer, porque ninguém pode se desfazer daquilo que não possui. Todavia, ninguém pode realmente se desfazer daquilo que o constitui infraestruturalmente, de maneira que a rejeição do Verbo Encarnado, do Cristo, dentro da Igreja e na Cristandade (ou no que dela restou), não será como uma exclusão para fora (porque deixaria de existir), mas uma repressão ou um recalcamento para dentro e para mais fundo de si — só a Igreja e só a Cristandade, que vêm de Cristo, é que podem evocar o Anticristo. Não está clara essa realidade no que se fez e no que se disse, em tempos de crise, nos conflitos papais e nos grandes cismas?
Diversos foram os meios de a Cristandade (ou o que dela restou) e a Igreja, ao longo da história, se afastarem do conhecimento de seus ínferos satânicos. Como que por sublimação, projeção, deslocamento e latência, fugiram a toda a consciência escatológica lúcida, adentrando num mesmismo cronológico de ação histórica e de ação cultural e conservando o Eschaton para além da vista, num horizonte suficientemente distante para que não evoque quaisquer sentimentos relevantes, permitindo a conservação na condição infraterrena e infrahistórica, na qual há pouca contradição com o espírito do Século. Desencarnam, por isso, o Verbo, para que mantenham a expectativa de um Messias sem corpo, que não seja motivo de escândalo, e assim recaem numa espécie de milenarismo panteístico, de Eschaton imanentizado, no qual só restam proselitismo reformista e de transformação social.
A rebelião prometeica contra Deus, que quer expulsá-Lo da face da Terra, precisa necessariamente começar com a anulação da eficácia de Seu Corpo…
A Modernidade é ela mesma inaugurada em um ímpeto de Desencarnação do Verbo, de anulação do paradoxo cristológico para a sustentação de uma suposta Palavra “Pura”, que imaterializou o Mundo. Nesse ínterim, e não poderia ser diferente em se tratando de Civilização Cristã, a Carne foi deslogogizada e, por não poder ser expurgada para fora, soterrada nos próprios alicerces da Cultura. A rebelião prometeica contra Deus, que quer expulsá-Lo da face da Terra, precisa necessariamente começar com a anulação da eficácia de Seu Corpo, que é a Igreja, que, por sua vez, sustenta-se na Palavra Encarnada, que é a substância última da Realidade — seja cosmológica, seja escatológica (o que quer dizer, histórica). Porque está clara, entre alguns dos principais entre os modernos, a necessidade de se livrar do amargo legado cristão, pedra de escândalo que conserva tudo sob a autoridade do Senhor e jaz prenhe de todos os infernos — Axis Mundi, afinal. A Carne Deslogogizada, vimos no estudo anterior, é a própria sombra do Ocidente secularizado e a força ‘daemoníaca’ que o assalta desde as fendas.
O paradoxo cristológico desfeito, para fazer nascer uma alegada sociedade pós-cristã, tendo enfeitiçado larga parte da própria Igreja, cria o contexto para a eclosão daquilo que se intentou rejeitar por milênios: a revelação do Anticristo e a instauração da Anomia. Porque, querendo ficar com a Palavra “Pura”, ficaram sem o Logos mesmo, já que Ele só é, para nós, na Carne. Enlouqueceram, por conseguinte, desprendidos de toda a sabedoria, e não suportam a visão daquilo que rejeitaram. Eis a receita para desordens espirituais generalizadas, encharcadas de culpas profundas e sem objeto esclarecido — um prato cheio para empreendimentos pandêmicos e outras armações luciferianas propícias ao clamor pelo governo do Filho das Trevas.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 7 de Novembro de 2023.