A Criança Divina e o Ícone Cósmico

Um brevíssimo estudo

Natanael Pedro Castoldi
4 min readMay 28, 2024

Em seus estudos sobre o mitologema da Criança Divina, Kerényi identifica duas vertentes, que são a própria infraestrutura da mitologia e de seu estudo: uma camada profundíssima, que “não se limita à religião indiana ou finlandesa, mas é evidente que pertence a um período antiquíssimo da humanidade” (Pesquisa Humanista da Alma, p. 94); outra camada, mais recente, já é a especialização do mitologema enquanto Mito Solar, ou outros mitos menores, conforme aparecem nas culturas clássicas. No caso da Criança Divina, o estrato secundário é o do Mito Solar, tanto é que os rebentos divinos, via de regra, são ligados ao Sol, e mesmo nos contos, que aproximam-no do drama humano da orfandade, conservam elementos solares, como o “nascimento” desde entre os juncos, que conhecemos, por exemplo, em Moisés. Interessa a Kerényi, sobretudo, o estrato ínfero.

A partir de análises do erudito em Kullervo, Narayana, Avalokiteshvara, rodeando ainda Apolo, Dionísio e outros, chega-se à remotíssima fórmula da Criança-Mundo / Cosmos, que é exteriormente pequena, mas que contém dentro de si todas as potências genesíacas. Essa Criança-Mundo está no meio dos Mares e nasceu do Ovo Primordial — é o Primeiro Nascido, e na realidade sintetiza a totalidade de tudo quanto nasça, já que é imagem do nascimento do Mundo mesmo, de todo o Cosmos, desde dentro do Ovo. Nesse sentido, o Sol Nascente não será a base primeira do mitologema, mas uma de suas alegorias, assim como serão suas alegorias, e alegorias do nascimento do Sol, os nascimentos de todas as crianças do Mundo. Implicado aqui está, também, o motivo do ocultamento ou do nascimento sutil e secreto da Criança Divina, transparente na orfandade dos contos e nos mitos dos nascimentos divinos em cavernas, como o Sol Noturno imediatamente antes de sua aparição do horizonte auroral — tal como o Sol, o Filho Divino se ergue silencioso das trevas e vai crescendo, sem ser visto por todos, até o ponto de sua apresentação ao Mundo, quando está erguido, elevado, no zênite, no resplendor do meio-dia. Essa é a história de Moisés, igualmente a história de Cristo na Primeira Vinda. Refletem, ao fim e ao cabo, a origem da própria Criação, da qual Deus Filho é o Logos, o Criador.

… não se vai do particular para o Todo, mas do Todo para o particular…

Esse é o fundamento da teoria de Kerényi sobre o Mito: seus alicerces não se baseiam na matéria da vida humana, nem são extraídos de fenômenos visíveis, mas lançam raízes na própria “matéria da vida do mundo” (p. 96), naquele sentimento, naquela percepção intelectiva que o homem carrega consigo a respeito da Realidade e do Absoluto, ou do Ser, do qual vai destrinchando e especializando todos os diversos mitos e, depois, os contos. O caminho, por conseguinte, é o inverso daquele que se costuma conceber: não se vai do particular para o Todo, mas do Todo para o particular, assim como não se vai do Profano para o Sagrado, mas do Sagrado para o Profano.

Jesus Cristo, Deus Filho e Logos de Deus, é Criança Divina (Filho Divino) em um sentido, portanto, sobremodo fundamental: o Mundo nasce de Seu “nascimento” na Criação, que é a manifestação de Sua atividade criativa sobre a “face das águas” (“Tu és meu Filho; Eu hoje te gerei” — Hb 1:5), e o Mundo renasce, ou principia em Nova Criação, primeiro no Seu natalício, depois na Sua ressurreição. Não é feito d’Ele, mas fundamenta-se n’Ele. Num sentido muito literal, porque nesse caso histórico, a Encarnação é uma necessidade ontológica, e toda a Criação é testemunha e símbolo, como Ícone Cósmico, do drama do Nascimento, da Morte e do Renascimento do Deus Filho, anunciando-o, como alegoria, em todos os seus nascimentos, em todas as suas mortes e em todos os seus renascimentos, que são a microescala do Nascimento genesíaco, aquele do Princípio, que é Nascimento pelo Logos Divino, e da Morte e do Renascimento apocalípticos, regidos e prenunciados pela Morte e pelo Renascimento do Senhor, dos quais são tipos, símbolos.

É notável como o substrato primevo do Ovo Cósmico está incipiente em Gênesis 1:2, segundo a tradução e a interpretação de Enih Gil’ead a respeito do “mover” do Espírito sobre a face das águas:

[Mover] pode também expressar o sentimento de ternura, amor e carinho por uma criança […], o que seria: ‘como uma águia, o Espírito de Deus teria ‘chocado’ sobre a informe massa da terra, acalentando-a e vivificando-a.

Esse sentido se aproxima do comentário da Torá (Ed. Sêfer).

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 17 de setembro de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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