A Cruz como Anzol de Leviatã
Aspectos do simbolismo talassiforme da Cruz e da teologia da substituição penal
Um dos usos simbólicos da Cruz na história cristã é o dela, dado o seu formato, como uma espécie de anzol que, lançado no Abismo, “fisgou” a Grande Serpente. O pano de fundo teológico desse símbolo é o da necessidade de os homens serem resgatados do Demônio, o que foi efetivamente realizado por meio da Cruz — nesta tradição, Cristo é o substituto do homem na Morte e na descida aos Ínferos, cumprindo em Si, mas sem pecado, o caminho descensional do pecador, que morre em função do Pecado (em sentido ontológico [Gn 2:17]), e ascendendo da Morte vitoriosamente, isto é: Ressurreto, no que antecipa, como primícias, aos filhos de Deus na Ressurreição (1 Co 15:20–23).
Eis como, ainda nesta tradição, Cristo padece, no Corpo da Morte e extemporaneamente, da sina dos mortais para, ulteriormente e em Corpo Glorioso, anteceder a todos os Nascidos do Reino. Tendo tomado “sobre Si as nossas enfermidades” e sido “ferido por causa das nossas transgressões” (Is 53:4–5), Ele foi feito “maldição por nós” (Gl 3:13), donde pôde Ser tragado pelo Inferno como se fosse um de nós e em nosso lugar, mas, marcado pela incorruptibilidade, que é segundo a Sua glória primeira (At 2:27–31; Fl 2:6–9), os grilhões da Morte não O puderam conter (At 2:24). Neste sentido, a Cruz destaca-se, primeiro, em seus motivos mórbidos e ctônicos, ou talassofílicos, segundo a sua analogia com a Âncora, que desce até os Abismos tal qual Jonas desceu no Peixe (Mt 12:40). Assim, a Morte de Cristo é divisada como uma “armadilha” para Leviatã — por meio dela, o Senhor Jesus pôde invadir o Inferno, onde, dotado de todos os méritos, derrotou a Morte em sua própria casa (1 Co 15:55–57):
Porque também Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus; mortificado, na verdade, na carne, mas vivificado pelo Espírito; no qual também foi, e pregou aos espíritos em prisão; os quais noutro tempo foram rebeldes, quando a longanimidade de Deus esperava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca; na qual poucas (isto é, oito) almas se salvaram pela água; que também, como uma verdadeira figura, agora vos salva, o batismo, não do despojamento da imundícia da carne, mas da indagação de uma boa consciência para com Deus, pela ressurreição de Jesus Cristo
- 1 Pe 3:18–21
É importante notar no trecho acima, que é segundo o apóstolo Pedro, o simbolismo ctônico talassiforme, na medida em que os Ínfernos, os Abismos, eram cosmologicamente alocados nos Pilares da Terra, região que represava o Oceano Primordial de Gênesis 1, o qual transbordou no tempo do Dilúvio, arrastando pelo seu gargalo e para seu ventre a geração de Noé. Neste caso, o ingresso de Cristo no Abismo é análogo à navegação da Arca no Oceano — a Arca, solta entre as torrentes misturadas das Águas de Cima e das Águas de Baixo, como que regressando ao Princípio, estava verdadeiramente no meio do Inferno. Por meio dela, Noé e sua família foram salvos, passando pela Morte — que sepultara nas Profundezas todos os demais, aos quais Jesus pregou quando Ele desceu para “lá”, de “lá” voltando.
… é como se encontrássemos a Jesus nos Ínferos, o lócus nativo de nossa natureza caída…
As águas do Batismo estão vinculadas, na passagem acima, às águas do Dilúvio e às águas do Abismo — águas de Juízo, matam e sepultam os ímpios, mas separam os justos como semente de nova humanidade. No Batismo submergimos o “velho homem” de Corpo da Morte no Abismo, à imagem de Jesus no Sepulcro, e o colocamos na morada da geração de Noé, de lá retornando com o Senhor, como quem ouviu a Boa Nova de Cristo no Hades, para uma “nova criação”. Em termos simbólicos, é como se, submersos nas águas batismais, encontrássemos a Jesus nos Ínferos, o lócus nativo de nossa natureza caída, para sermos de lá e por Ele libertos, como guardados n’Ele, a Arca. É daqui que a Cruz, enquanto Âncora, tendo descido até o reino da Morte, que é a cidadania do “velho homem”, funciona como o Anzol que fecha a boca da Serpente (Ap 20:1–3).
Poderás tirar com anzol o leviatã, ou ligarás a sua língua com uma corda? Podes pôr um anzol no seu nariz, ou com um gancho furar a sua queixada?
- Jó 41:1–2
Em sua face uraniana, celestial, que se eleva e ascende aos Céus, a Cruz, em lugar de Âncora e Anzol, é o Estandarte glorioso de Cristo Rei. Na Cruz está pregada a bandeira de batalha do Cordeiro Imolado quando, na Parusia, Ele desce desde entre as nuvens para resgatar aos Seus e dizimar todos os reis da Terra.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 16 de outubro de 2024.