A Igreja no Nó da Cosmologia Cristã

Insights e devaneios

Natanael Pedro Castoldi
9 min readMay 22, 2024

A envergadura do dito anteriormente

Na Encarnação se apreende, portanto, o Corpo da Morte, que se desfará de todo — hiperbólica e metaforicamente a própria Velha Criação; na Ressurreição se apreende, enfim, o Corpo Glorioso, que perdurará para sempre — hiperbólica e metaforicamente “o Novo Céu e a Nova Terra”

é melhor compreendida se formos à magnífica Visão que o apóstolo João teve no Céu, segundo o registro em Apocalipse 4–5 e conforme a surpreendente expressão “Cântico Novo”, do versículo 9 do capítulo 5. No final do capítulo 4, antes da revelação do Cordeiro Imolado no meio do Trono, os Anciãos cantam um “cântico antigo”, porque ali louvam ao Senhor Entronizado como sendo o Criador de todas as coisas — isto é, louvam-No como Criador da Velha Criação, a qual é, parte por parte, segundo a Sua Vontade. Deus Filho Encarnado é nascido enquanto Semente da Mulher e do Pó segundo este regime criacional — este é o sentido de Seu despojamento da Glória e da Sua semeadura no Corpo da Morte. O Cântico Novo vem da boca dos Anciãos, repercutindo os louvores dos Quatro Seres Viventes, quando do ingresso do Cordeiro Imolado, agora de semblante Terrível, detentor dos Sete Espíritos de Deus, que são os Sete Poderes, ou a plenipotência divina sobre a Criação. Ele ora sobe ao Céu como Aquele que Venceu, morto e ressurreto, e digno de abrir o Livro da Vidas pelo rompimento dos Selos, que são os Juízos de Deus — Trombetas e Taças inclusas — sobre a Velha Criação, marcada pelo princípio da Morte e em processo de aniquilação completa. Esta, esmigalhada pelo abrasamento de seus elementos básicos, dará lugar à Nova Criação, que é compatível com a Matéria Celeste, propícia ao Corpo Glorioso de Cristo, donde o Corpo da Ressurreição, ou o Corpo Espiritual, igualmente destinado a todos os filhos de Deus. Então, pois, os movimentos de Descida e de Subida de Cristo regem os deslocamentos da Criação, desde seu afundamento no Abismo sob Velha Criação até a sua Nova Natureza, vinda do Alto, sob Nova Criação — que vem do Vitorioso. Usa-se “regem”, porque com isso não se quer confundir Criador com Criatura — o fato é que a Encarnação e a Ressurreição de Cristo prefiguram e estabelecem o “itinerário” que se replicará -literalmente- nos crentes e, na Criação, metaforicamente. De toda a maneira, o que se sucede ao Logos Divino deve informar a respeito das causas, em sentido aristotélico, do Mundo.

… sempre padecendo dos estigmas do Senhor Jesus, recorrentemente refeitos pelos martelos dos inimigos de Cristo…

O paradoxo é que a permanência do Corpo de Cristo no Mundo, que é a Igreja sob o Espírito Santo, uma vez que corresponde, primeiro, ao Corpo da Morte, que deverá padecer todas as privações, perseguições e dores, contém já, em gérmen, a Semente Divina da Nova Criação e da Nova Criatura. Isso faz com que a Igreja, não devendo ocupar-se sobrecarregadamente com os assuntos “deste século”, cumpra o seu papel na “economia escatológica” reinvestindo-se sobre si mesma, naquilo que Noss e Grangaard (História das Religiões Mundiais) chamarão de “intensificação” e que eu chamo de “condensação”. Ocupa-se incessantemente em se conservar na condição de escândalo e de contradição com o “sistema de trevas” do Mundo, que deverá ser desfeito, seus príncipes e seus reinos inclusos, com o esfacelamento desta realidade. Mantendo-se, pois, ocupada com o perene testemunho de sua imortalidade morrente, sempre padecendo dos estigmas do Senhor Jesus, recorrentemente refeitos pelos martelos dos inimigos de Cristo, conserva viva para si mesma a esperança e a perspectiva iminente da Glória Eterna, da Volta de Jesus e da conquista do Corpo Espiritual e de sua habitação na Nova Jerusalém. Para os diabos, ou opositores do Senhor, é sombra de Juízo; para “a medida dos gentios”, Boa Nova de Salvação; para si mesma, princípio da Nova Criação. Donde, reinvestindo-se sobre si mesma, apresentar-se-á ao Mundo desde os extremos da miséria mendicante, daquele autossacrifício do imitador do Cristo Morrente, até a antecipação em pedra e em éctipo da beleza da Cidade Santa, da Cidade de Deus arquetípica, onda já está entronizado, à destra do Pai, Cristo Rei. Fá-lo em pedra perene para que os crentes, em meio às suas agonias, sejam sempre relembrados daquilo que os aguarda na Eternidade e sempre levados, geração após geração, a dirigir os olhares para cima, para o alto, acompanhando a verticalização das agulhas e dos vitrais, após sua trajetória pela nave da gótica catedral, desde o Poente e desde a Morte até o Nascente, até o Altar, onde jaz a Fonte da Vida e lança raízes o portal do Paraíso dos Bem-Aventurados e Ressurretos.

Uma tal perspectiva das coisas, nessa posição obstinada no Intermédio, no ponto de tensão entre a Carne e o Espírito, entre o Mundo e o Céu, entre a Velha Criação e o Paraíso, entre o Tempo e a Eternidade, impede a Igreja (digo idealmente) de gastar-se excessivamente com as tramitações da Economia dos Homens, donde o reinvestimento de suas energias no regime da verticalidade, no sentido da Transcendência, o que combina tanto com a mais extraordinária humildade e privação, quanto com a mais extraordinária glória e elevação. Veja como numa única sentença Cristo Jesus dá a saber a Judas da permanência indelével da Igreja junto dos pobres e do imperativo duma relativa despreocupação com a contagem das moedas, para que se ocupe liberalmente e desmesuradamente com a expressão cúltica à glória régia do Senhor, uma glória tal que eleve o coração, em ícone, na grandeza do ato litúrgico e na beleza do receptáculo ambiental da proclamação do Evangelho, à realidade da Promessa, que não tarda, e daquilo que o olho verá quando diante do Trono de Deus, literalmente e não por espelho, mas que agora só pode ver indiretamente, por meio do símbolo. Com isso não se louva a suntuosidade luxuriante, mas se sustenta a legitimidade da obra-prima, da exímia maestria no trato artístico e arquitetônico, no investimento visível na monumentalização e na transmissão das verdades eternas, assim como no estabelecimento do lócus Sagrado, para inflamar e bem dirigir o espírito dos crentes. Apelo notável na Igreja desde seu tempo primitivo, quando se realizava o culto na melhor sala, meticulosamente ornamentada e organizada, da melhor residência dentre aquelas dos membros da congregação — mais tarde, pois, na ressignificação dos locais de culto mitraicos e na reprodução de sua monumentalidade nas igrejas e basílicas nativas cristãs.

… o desapego dos “tesouros da terra” pode verter nalgo como as soberbas agulhas góticas.

Um investimento tal na edificação de grandiosos santuários, nunca vistos como algo além de alusões, de cosmion, da microescala daquilo que os cristãos divisavam no Céu e na Eternidade — o que significa que esses santuários grandiosos não eram erguidos exatamente sob interesses horizontais do estabelecimento do Paraíso na Terra, sendo mais uma afirmativa veemente do Transcendente e do ímpeto de superação das vicissitudes do Mundo -, embora claramente se desse, ainda que em parte, para a demonstração do poder terreno de reis e do clero, não pode encontrar justificativa suficiente em causas meramente econômicas e de poder temporal, como querem os marxistas. É impossível que um empreendimento civilizacional como aquele da França medieval ao redor das catedrais pudesse ter se sustentado e se mantido ao longo dos séculos, em obras individuais que demandaram múltiplas gerações, sem buscar motivações muitíssimo mais profundas, de matiz evidentemente religioso, como reflexo e autoafirmação do tamanho da fé de toda uma nação, que foi penetrada pelo cristianismo até o tutano. Demonstro com base em Joseph Campbell: entre 1170 e 1270, os franceses ergueram oitenta catedrais e cerca de quinhentas igrejas de grandes dimensões, um empreendimento que teria custado, segundo um cálculo feito em 1840, cinco bilhões de francos, o equivalente a dez bilhões de dólares em 1968 — isso apenas para igrejas erguidas no tempo de um século. O tamanho da energia e o montante dos recursos desviados, século após século, pela amálgama das comunidades francesas medievais, em coalizão das classes mais baixas às classes mais altas, para a edificação de santuários magnânimos só se explica, de fato e verdadeiramente, num contexto no qual as preocupações com as questões deste Mundo, com a “contagem das moedas”, fossem de menor importância em comparação com a perspectiva do Absoluto. Por estranho que pareça, o desapego dos “tesouros da terra” pode verter numa paixão suficientemente potente pelo Porvir para fazer despontarem, do chão ao céu e em profusão, algo como as soberbas agulhas góticas.

Para a elevação dos símplices e dos pobres, inclusive — os quais, ao fim e ao cabo, são vistos como realidade consubstancial ao Mundo de Velha Criação, marcado pela falta, pela sina do Não-Ser, pelo Pecado e pela Morte, e não como um problema de contingência, um acidente reversível, porque assunto administrativo, de mordomia e “redistribuição de moedas”, como se o Mal fosse não mais do que uma espécie de ferrugem presa às criaturas, não parte intrínseca de sua estrutura, tendo Caído a Criação. Daí o cristianismo do qual falamos dar vulto à sobrevivência junto ao Mal Ontológico, à suportabilidade do existir na tensão polar com sua inextricável presença até a sua dissolução na Parúsia, após os Tempos e findada a Era. Por isso, conquanto se deva fazer melhorar a vida material e sempre se assumir por bênção a ascensão social, esse cristianismo, no escopo escriturístico, nunca verteu de todo e se reduziu a um “cristianismo social” — visceralmente escatológico, não poderia sê-lo, como se vê no uso de “Vocação” pelo apóstolo Paulo em 1 Co 7.

A medida do despojamento de suas congregações será, então, inversamente proporcional ao tamanho de sua esperança no Mundo…

No lado oposto, as sociedades que foram donas dos santuários mais despojados, das igrejas mais vazias, conheceram as mais virulentas cobiças e ambições no campo dos assuntos terrestres e da Economia dos Homens — talvez porque deixaram de identificar a Igreja com o Corpo da Morte de Cristo, donde deixaram de aderir ao regime atemporal do Sagrado enquanto catalizador das mais nobres expectativas pela Volta do Senhor Ressurreto e dispensador escatológico, na Sua Igreja, do Corpo Espiritual, preferindo a vereda da imanentização do Eschaton, da antecipação da Glória vindoura através da imposição de uma Igreja “triunfante”, redentora, eminentemente vocacionada à ação transformadora nos campos político, jurídico, cultural e humanitarista da sociedade derredor, ou: dada à vivência interna não mais do Tempo Forte no Espaço Sagrado, mas do tempo cronológico, do reino das quantidades e das contabilizações (daí se dirá não haver “Sagrado x Profano”, pretendendo com isso tornar tudo potencialmente “Sagrado”, embora factualmente acabe por redundar no inverso, a saber: a dessacralização até de si mesma). A medida do despojamento de suas congregações será, então, inversamente proporcional ao tamanho de sua esperança no Mundo enquanto Velha e não Nova Criação, porque passam a “contar as moedas”, preocupados que estão em não “desperdiçar” aquilo que pode ser dissipado para benefício material e societário da humanidade ao redor — note-se que não pretendo generalizar, que, repito, falo idealmente.

Idealmente, portanto, a Igreja, justamente quando reinveste-se sobre si mesma, se intensificando e condensando na própria posição, não está exatamente demarcando um espaço quantificável, mensurável, no Mundo. Falamos aqui de uma posição assumida em sentido cosmológico porque a Igreja é -literalmente- o Corpo de Cristo que está na Terra, uma vez que nela de fato habita o Consolador. Existirá para o Mundo e para os inimigos de Cristo na condição de Corpo da Morte — motivo de ódio, de violência, de perseguição e de todo o tipo de privação. Internamente, todavia, carrega o gérmen da Nova Criação, a Semente Divina, o Fruto do Espírito e, constituída de sacerdotes, edifica-se a si mesma com “pedras vivas”, se desenvolvendo enquanto Corpo e sob o Cabeça, Cristo, no sentido do aperfeiçoamento e da plena maturidade, mortificando sua Carne pela contínua consagração do autossacrifício dos apetites da Velha Criatura e pela contínua exposição aos perseguidores da Fé, para que se erga cada vez mais alto enquanto Cidade Santa, Cidade no Monte, Farol nas Trevas, as quais progridem em relação inversa à santificação do Corpo e à sua preparação derradeira para a Morte e para a Ressurreição. Isso põe a Igreja na encruzilhada, no ponto nodal da realidade, ali onde se batem o Abismo e o Trono de Deus e os princípios da Morte e da Vida — quanto mais se prova nas dores, que açoitam o Corpo, tanto mais se eleva no Espírito e acha graça junto ao Pai (Mt 10:28).

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 22 de maio de 2024.

--

--

Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em antropologia e crítica literária. Casado com Gabrielle Castoldi.