A Montanha Cósmica no Horizonte Escatológico
Um encontro entre a Cosmogonia e o Fim dos Tempos
Impressiona-me muito o relato de Daniel 2 a respeito do Sonho de Nabucodonosor, dado pelo Senhor em resposta às inquietações noturnas do grande monarca babilônico, verdadeiramente angustiado com o que sucederia de seu reinado. O Sonho nos apresenta uma colossal estátua do próprio rei, ali descrita como uma espécie de Adão Kadmon sublunar, de matéria pesada e feito da condensação dos grandes impérios globais que se sucederiam desde Babilônia até o Quarto Reino, o último, numa sequência descendente de metais, que vão da mais alta à mais baixa qualidade — Ouro, Prata, Bronze, Ferro e Ferro com Barro (sendo o Barro a semente fértil imiscuída na degradação do Ferro).
Fundem-se aqui o símbolo das Quatro Idades do Mundo (indicadas pelos quatro metais) com aquele das Cindo Idades do Homem (note a presença do Barro), antiquíssima tradição mediterrânea conservada por Hesíodo. Segundo esta tradição, a primeira raça, de Ouro, vivia em condição edênica — sem trabalho, apenas coletando o mel que cotejava das árvores e bebendo leite diretamente das ovelhas e cabras (similar ao discurso hebreu sobre Canaã), e sem jamais envelhecerem — morriam como quem caísse em um estágio de adormecimento, tornando-se como fantasmas. A segunda raça, de Prata, foi agricultora e era regida por um sistema matriarcal. Altamente beligerantes, eram irreverentes para com o Divino e foram aniquilados por Zeus. A terceira raça, de Bronze, foi altamente numerosa, aparatada de armas de bronze, vivia em guerras e era comedora de carne e pão. Insolentes e impiedosos, foram exterminados pela peste. Uma segunda raça de Bronze, mais nobre, veio em seguida, e veio da coabitação de deuses com mulheres — foram a raça heroica de Tebas, dos argonautas e de Tróia e estão nos Campos Elísios. Na Estátua, o Bronze é substituído pelo Cobre, mas igualmente descrito em duas sessões descensionais: ventre e coxas. A última raça, de Ferro, são filhos decadentes da anterior e descritos como “degenerados, cruéis, injustos, maliciosos, libidinosos, desonrosos com os pais e traiçoeiros” (R. Graves, Os Mitos Gregos, Vol. I, p. 57) — qualquer semelhança com o que o apóstolo Paulo diz dos homens dos Últimos Dias não é apenas uma coincidência (2 Timóteo 3:1–9). O Quarto Reino da Estátua, que se desdobra em uma quinta época, é melhor descrito em Daniel 7 através do Dragão do Mar — descrição que aproxima o seu temperamento daquele divisado nos homens da Quinta Idade, logo acima.
O pano de fundo de toda a cena do Sonho é revelado no final, no versículo 35 de Daniel 2: um Grande Monte de dimensões univérsicas, enchendo toda a Terra. Vimos anteriormente em Kerényi como a montanha e o despenhadeiro rochosos são primitivíssimos símbolos dos primórdios, do inerte e vazio cenário anterior ao Tempo e às criaturas, características do simbolismo lítico, de sua densidade perene e de sua uniformidade — imagens da eternidade, por conseguinte. O Grande Monte é o que sobra quando a Estátua da História Universal é derruída e esmigalhada até dela não restar nada. É do seu altíssimo cume que se destaca a lasca que desce contra os pés da Estátua e que a derruba, Pedra Celeste que retroage sobre a Montanha, transformando-se ela mesma na própria Montanha, a qual cresce incomensuravelmente. A leitura intuitiva de Daniel 2 é essa: a Montanha não aparece, encoberta por um véu, enquanto a Estátua está de pé, mas é desvelada após a vinda da Pedra Celeste e a queda da Estátua como o lugar de onde a Pedra se destacou — daí a impressão de que a Pedra se transforma na Montanha. Do ponto de vista do Mito e do Símbolo, este jogo intercambiável entre a Parte e o Todo é bastante natural e não deve ser interpretado em termos cronológicos e causais — a Parte e o Todo são um só e o mesmo, porque o a Parte está no Todo e o Todo está na Parte. O que vemos no Sonho é uma manifestação do Eterno dentro do Tempo e uma antecipação escatológica e infraterrena, em gérmen, da Eternidade.
… as imagens da Montanha Sagrada sendo “dilapidada” para sinalizar as grandes dispensações históricas…
O motivo da Montanha Cósmica e das suas lascas como estruturantes da Criação está dado pela tradição judaica, conforme as pesquisas de Bin Gorion no As Lendas do Povo Judeu. Um dos relatos genesíacos impõe o início da Criação com o estabelecimento da Pedra Fundamental, que é aquela que contém os quarenta e dois sinais do Nome de Deus. Esta Pedra Fundamental é a Pedra Angular do Mundo, porque dela se desdobra todo o restante da Criação — ela impõe a estrutura dos Abismos, emerge do Oceano Primordial como a Terra Seca, esticando os limites dos Quatro Cantos, ou Confins, e sustenta o Firmamento. Dela, se diz, Deus cortou três lascas, as quais afundou nos Ínferos como os Três Pilares da Terra, que delimitam as três partes do Abismo e circunscrevem o fluxo das Águas. Ela mesma, no entanto, permaneceu em Moriá, o Sião, até Jacó dormir sobre as Doze Pedras do altar de Abraão, que, sob Jacó, se fundiram em uma só, a qual o Senhor afundou e firmou como Pedestal do Mundo, que vem estabilizar a Terra, outrora cambaleante sobre três “pés”, e que foi consagrado como a Pedra Fundamental do Templo de Salomão.
Segundo outra lenda, uma quarta lasca foi retirada da Montanha Sagrada, o próprio cume do Moriá, e transferida para o deserto do Sinai, conformando o monte Sinai, ou Horebe, para que nele, bem no ponto do altar de Abraão, Moisés recebesse as Tábuas da Lei.
Não são, portanto, estranhas à tradição judaica as imagens da Montanha Sagrada sendo “dilapidada” para sinalizar as grandes dispensações históricas — entregou lascas para a arquitetura do Cosmos no contexto da Criação, foi “afundada” no prelúdio da formação de Israel, entregou mais uma lasca no contexto da fundação da Congregação do Deserto e da entrega da Lei e dará de si mais uma parte no tempo escatológico, para aniquilar a Velha Criação e refundar o Mundo enquanto Nova Criação, devolvendo à Montanha Sagrada a sua forma original, monolítica, unânime e impassível, porque
… já o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe.
- Apocalipse 21:1
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 1º de outubro de 2024.