A Montanha Sagrada, o Mito e o Eterno
Um estudo em Adão, Noé, Abraão, Moisés e Jesus
Raramente, no terreno do Mito, quando o herói insta no topo do Monte Sagrado, ele estará também na Terra — no sentido daquela faixa média entre o Céu e o Submundo. O cume do Outeiro Santo é, via de regra, Axis Mundi, um verdadeiro pilar da Terra, tanto o seu pedestal sobre o Abismo, quanto a sustentação do Firmamento, de maneira que ali invariavelmente se está no reino do Tempo Forte, do Eterno que se atualiza no Espaço Sagrado. E como o Mito é feito do metafórico e do hieroglífico, estar no ápice da Montanha é estar direta e imediatamente no Céu — que é sempre espiritual. Nesse sentido, pois, o Olimpo era sinônimo do Céu e do Divino e seus picos eram coroados pelos palácios dos deuses. O mesmo entre os povos antigos de todas as partes, com o tabu universal quanto ao subir o Monte, sendo preferidos os altares e santuários no seu sopé ou nas suas encostas.
Quando o Oceano Primevo do Mito dos Povos do Crescente Fértil fora rebaixado após o conflito cósmico genesíaco, o primeiro ponto que emergiu das Águas Primordiais e o eixo desde o qual toda a Criação irradiou é o Monte Santo, no topo do qual resplandeceram os palácios dourados da Divindade e no qual brotara o Jardim do Paraíso, encharcado das Águas Vivas do Mar Primitivo, prenhe de toda a exuberância vegetal e animal e, guarnecido de muros, ordenado segundo a mais pura lei divinal. O Éden apresenta essas qualidades e é encarado como Montanha Sagrada em uma miríade de tradições judaicas, sendo também considerado a única parte da Terra que não submergiu no Dilúvio. Os Quatro Rios testemunham das Fontes do Abismo, de Águas Vivas, que brotam do topo do Jardim e que fluem para os Quatro Cantos — o arquétipo do Cosmos terrestre. A descrição das riquezas minerais do Jardim apontam para um aspecto antiquíssimo da Cosmologia: o de que as pedras preciosas e os metais são frutos da Terra, análogos à flora, e é como se do Paraíso brotassem abundantemente diretamente do solo e das rochas — pense nas descrições da Nova Jerusalém. Certas tradições escondidas em profetas como Isaías e Ezequiel apontam para a proximidade imediata entre o Monte Santo Celestial, onde está o Trono de Deus, e o Paraíso Auroral, como se ambos se atravessassem, ou como se o topo do Paraíso desse diretamente no Aravot, relampejando e faiscando no Trono do Criador, diante do qual estão as Pedras Ardentes e as Chamas de Fogo, desde entre as quais Lúcifer passou antes de cair, como um raio, no meio do Jardim. O fato é que o Paraíso, localizado na Montanha Original, não pertence ao mundo mediano ou terrestre habitado pelos homens caídos, e é por isso que tradições judaicas apresentam visitações visionárias de patriarcas e profetas ao Jardim, conservado que está após ter sido selado, guardado por anjos.
O fato é que o Paraíso não pertence ao mundo mediano ou terrestre habitado pelos homens caídos…
Enquanto princípio cosmológico, cerne irradiador da ordem criatural, a Montanha Sagrada pode ser divisada em qualquer outeiro — porque, como dirá Eliade, trata-se mais de um imperativo cosmocizante, ao qual o homem está condicionado para impor qualquer tipo de organização no espaço e no tempo, do que de uma coisa literal (até porque, repito, estamos no reino do hieroglífico, onde o real é mais o substancial do que o aparente). Um exemplo desse princípio é o de como os antigos viam a Lua: apesar da visão literal do satélite noturno, a Lua existia e estava presente em todas as instâncias nas quais pudesse ser identificada por analogia e influência simpática (assim, havia “Lua” no ventre da mulher e a influência lunar se manifestava nos seus fluxos menstruais, como no ritmo das marés e na fertilidade das águas, da flora e da fauna). A Montanha Sagrada enquanto arquétipo era divisada em todo o monte que atraísse o arquétipo para si, donde, do ponto de vista simbólico, todos esses montes serem a Montanha Sagrada — no singular mesmo.
Isso explica como o Trono de Deus, relampejante e faiscante, estava no topo do Éden e no topo do Sinai — o lugar é o mesmo. Daí a obstrução do acesso ao Monte de toda a Congregação do Deserto, exceto Moisés, quando da chegada nos seus sopés, ocasião na qual a teofania do Sinai alçava seu zênite — ventos, tremores, raios e trovões, fogos ínferos… Uma espécie de cordão de isolamento demarcou o limite do Sagrado, na proximidade da raiz da Montanha, e quem o ultrapassasse sem ter sido autorizado por Deus seria fulminado. Por razão similar, quando Adão e Eva pecaram, foram expulsos do Jardim, postos para além de seu muro protetor. A subida de Moisés pelo Sinai, nesse sentido, foi uma escalada análoga a uma subida pelo Olimpo: ele foi retirado do mundo terrestre e, transcendendo o limiar, ingressou na esfera celeste. Submergiu, pois, na presença do Divino, no ventre da nuvem brilhante da Glória, e ali, no Eterno, no Santíssimo do Coração da Montanha, conheceu o mistério da Criação e teve a Visão dos Sete Dias, pela qual também discerniu a estrutura do Palácio Celeste e conheceu o plano de seu éctipo terrestre, o Tabernáculo. Fora do tempo profano por Quarenta Dias, não precisou comer e nem beber, e, ao descer, a pele de seu rosto estava impregnada do brilho do Aravot.
A subida de Moisés pelo Sinai, nesse sentido, foi uma escalada análoga a uma subida pelo Olimpo: ele foi retirado do mundo terrestre…
O Tabernáculo, erguido ao redor do Altar já disposto nos pés do Sinai, respeitou o costume sacral dos cultos serem realizados à sombra, e não do topo do Monte. No interior da Tenda, cosmion do modelo celeste, Moisés, imerso no fumo dos incensos, se mantinha dentro da Glória de Deus — a coluna de fumaça e a coluna de fogo, dispostas intercaladamente dia e noite na entrada da Tenda, indicavam a abertura direta para o Céu, representativas do Tabernáculo como Axis Mundi, qualidade que respondia à sua correspondência típica com os protótipos do Paraíso (matriz da totalidade do Cosmos) e do Palácio (em ambos os casos, o Monte Santo, ali vislumbrado no vulto do Sinai). O tipo da Montanha Sagrada, respeitando sinteticamente o modelo do Monte do Paraíso, será o Altar, no topo do qual fica o braseiro flamejante e, após ele, atravessando os véus, símbolos querubínicos de cobertura da Glória, o Trono de Deus, que é a Arca da Aliança — o quanto isso replica o Palácio Celestial será melhor conhecido no Apocalipse de João.
Observe que o termo hebraico para a lareira ou o Altar, “harel”, significa “Montanha Sagrada”. O centro do Altar, a grelha, era chamado “Ariel”, e ali o cordeiro do holocausto era depositado. Há dois sentido para “Ariel”: em Isaías 29:1–2 se refere à própria Jerusalém, a Cidade de Davi, e “Leão de Deus” — lembre que o Leão é um símbolo solar, ígneo, e da relação entre o cordeiro do sacrifício e a devoração leonina do mesmo, por meio do fogo, como se o próprio Deus estivesse consumindo a Sua parte do sacrifício. “Leão” será um título para Cristo Jesus, o Leão de Judá (o Leão era o estandarte da tribo de Judá), indicando a Sua qualidade tanto de Cordeiro quanto de Leão, como se verá na assustadora figura do Cordeiro Imolado de Apocalipse 5, além de acrescentar profundidade a outros títulos escatológicos a Ele atribuídos, como a Pedra Angular, ou a Rocha, um tipo da Montanha Sagrada, primeiro identificada com o Altar do Tabernáculo e, depois, no Templo Salomônico, com a pedra sobre a qual a Arca da Aliança estava instalada, no interior do Santíssimo — essa pedra seria o cume do Monte Sião, ou Moriá, e imaginada como atingindo o Céu, através do Santo dos Santos, mas brotando desde o Submundo, tendo abaixo dela, e selado por ela, o Oceano Primevo, além de ser ela o pedestal do Mundo, pelo qual a Terra se estabilizou e parou de cambalear no Abismo. Dessa Rocha, ligada diretamente ao Palácio Celeste e ao Mar Primitivo, brotavam as Águas Vivas que desciam do Sião até a fonte sagrada do Giom, a qual, por sua vez, abastecia Siloé. É interessante observar que a ruptura do Véu do Santíssimo, no momento exato do grito final de Jesus Sacrificado, pode indicar a entrada do Salvador no Palácio Celestial, junto do Trono de Deus e desde o Altar do Sacrifício, através do Fogo e da Nuvem — aparecendo, então, na Eternidade como o Cordeiro Imolado de Apocalipse 5.
… a ruptura do Véu do Santíssimo, no momento exato do grito final de Jesus Sacrificado, pode indicar a entrada do Salvador no Palácio Celestial…
É importante, com relação ao que foi dito acima, ressaltar a identificação do Monte Sião com o Monte Sinai, ambos Montanha Sagrada. A tradução proposta por Stein Jr. para o Salmo 68:17, “O Sinai está no Santuário”, é suficiente para demonstrá-lo, pois, de fato, através do Altar, o Tabernáculo transferiu ao Templo Salomônico o tipo do Monte Santo, o qual, por sua vez, foi identificado com a Pedra Angular, do meio do Santíssimo. O Monte Sião, todavia, por si mesmo e independentemente era Montanha Sagrada desde muito antes de Moisés, e ali El Shaddai era cultuado a partir de, pelo menos, Melquisedeque — um tipo de Cristo, por sinal, ou mesmo uma teofania. Chamado Moriá, “mor’iah”, significa “Ver”, de “re’iyyah” — donde “Monte da Visão” -, e, subindo até o seu cume, Abraão de fato vê a Deus, conforme o Targum Neofiti: “sobre a montanha do santuário de YHWH onde Abraão ofereceu seu filho Isaque, sobre essa montanha apareceu-lhe a glória da Shekinah de YHWH.” Segundo uma tradição, a cegueira de Isaque resultou da Visão do Senhor na Glória, uma vez que ele estava olhando para o Céu quando a voz de YHWH impediu a mão de Abraão. Esse entendimento ecoou em costumes muito antigos ligados ao Moriá, e até mesmo o rei dos jebuseus entendia que cegos e coxos não podiam subir o Monte (2 Sm 5:6–8). No comentário rabínico (Mekhilta de Rabi Ishmael) de Ex 34:23 se vai a 2 Sm 5:6–8 para elucidar a ordenança da Lei com relação às três visitações anuais de todos os varões israelitas ao Santuário “para Ver o Senhor” (mais claro em Dt 16:16) — segundo Michel Remaud, aqui está implicada uma tradição ancestral que apregoava a Visão mística da Glória de Deus e que é anterior à reforma deuteronômica, a qual sustentou a impossibilidade absoluta de qualquer homem Ver a Deus, mesmo no topo do Moriá, no Santuário, onde está o Sinai.
Poderíamos passear por diversos outros relatos bíblicos sobre a Montanha Sagrada, desde a disputa de Elias no Carmelo e seu retiro no Sinai, passando pela morte de Moisés no Monte e pela disputa entre Miguel e Satanás pelo seu corpo, até a Transfiguração de Cristo no Monte Tabor, mas creio que seja suficiente acrescentar a esse tema tão importante apenas o relato do encalhamento da Arca de Noé no topo do Ararate, porque aqui descemos mais diretamente à esfera do Mito (o que não significa “da mentira” e nem implica na total ausência de literalidade). Porque o Dilúvio decorre da desobstrução da Fonte do Tehom pela remoção, segundo a tradição judaica, da Pedra Angular, o Pedestal da Terra, de seu lugar, o que significa que o Pilar do Firmamento também fora balançado, daí a Terra passar a cambalear no Abismo, inundada pelas Águas de Baixo e pelas Águas de Cima — os Limites, ou “efes”, foram removidos. É um regresso ao Oceano Primordial e às Águas Genesíacas, o que significa que retrocedemos ao Tempo Sagrado, à esfera do Eterno, donde as complicações com relação à alimentação e outros víveres escaparem ao nosso entendimento — tudo ali pertence a uma ordem diferente da trivial. Quarenta Dias, pois, de chuvas torrenciais e de elevação do Oceano, somados a pouco menos de meio ano de estabilidade absoluta — o Mar Infinito, inerte, Tohu e Bohu. Durante esse período de calmaria, as Águas já retrocediam mui lentamente, até que o topo do Ararate emergiu como o primeiro ponto seco, replicando o Monte do Paraíso no Princípio da Criação. A Arca parou ali, no topo da Montanha Sagrada, e, enquanto permanecia no Céu, Noé continuava deslocado do tempo e do espaço profanos, jazendo sob a imediata presença de Deus. Após a abertura da Arca, a descida do Ararat, subsequente ao voo da Pomba sobre as Águas e à evidência de vida vegetal emergente nos lodos, trazida em seu bico, é um retorno do Tempo Forte e da habitação no reino celestial para a Terra, renascida com o regresso do Submundo para depois dos Limites e pelo restabelecimento, desde o despontar do Ararate, do Firmamento.
… tudo ali pertence a uma ordem diferente da trivial.
Nesse sentido, a experiência noáquica no Dilúvio e no Ararate deve ser identificada com a experiência adâmica no Jardim: ambas devem ser entendidas como tendo transcorrido em um lugar e em um tempo que não pertencem à Terra nos termos do regime horizontal. Pertencem, sim, ao Mundo nos termos verticais da Cosmologia, porque a Terra, no caso do Dilúvio e enquanto reino mediano, fora dissolvida pelos Ínferos; no caso do Paraíso Edênico, estava imersa no Divino — neste caso, Noé com a animália no Monte Santo é um antítipo de Adão.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 1º de agosto de 2024.