A Natureza do Simbolismo e a Tragédia do Literalismo Ingênuo

Da necessidade da evocação psicológica do Terrível

Natanael Pedro Castoldi
5 min readJun 22, 2023

Símbolo é o que está suspenso entre dois mundos. Do ponto de vista histórico, o simbolismo enquanto território floresce em profusão a partir da crise na psique mítica, porque a imaginação mítica não é propriamente simbólica, na medida em que o ícone é a manifestação concreta do Divino, impregnado de uma numinosidade hierofânica. O símbolo está situado entre a consciência mítico-religiosa, na qual há convergência imediata e concreta entre a imagem e o sentido, e a clareza racional. Como dirá Giegerich a respeito da alquimia, há uma intuição de saída do universo mítico em direção à Lógica (um deslocamento do Positivo, que é objetivo, para o seu oposto, a sua negação), mas não há instrumental imagético alternativo — daí a intensificação obsessiva de imagens simbólicas e a simbolização compulsiva de antigos ícones justamente nos respiros finais da velha mentalidade. Essa perda de substância das coisas, que deixam de ser assumidas como animadas, materializações literais de qualidades espirituais, as obriga a um deslocamento para a fronteira entre o Particular e o Absoluto, transformadas em sombras de Formas Ideais. O símbolo, por conseguinte, conserva certas qualidades numinosas e sagradas, apelativas, pelo peso sugestivo da imagem, à psique profunda e visceral, mas a razão impede a sua mitificação, porque separa da coisa o seu significado último, alocado na Transcendência.

O símbolo, portanto, lança raízes naquilo que Agamben chama de Penumbra — é nesse território de tensão que ele se mantém vitalizado, energizado, e ao mesmo tempo contido. Perdido de sua natureza transcendental, se reduziria à imagem nua e vazia e ao sentido imediato e utilitário que possa dele ser apreendido por analogia — donde a derrocada que Chul Han qualificaria como “p0rnogr4fica”. Todavia, perdido de sua natureza imanente (se é que podemos falar nesses termos, já que ele seria teofania), poderia esmagar as personalidades individuais e a inteligência humana pelo próprio peso divinal, já que ele seria o mesmo que a presença total do Divino. De toda a maneira, a crise na psique clássica esvaziou as coisas e desalojou-as dos deuses, deixando-as disponíveis à atribuição de significado simbólico — como diz Adorno, citado por Agamben: “… as coisas, estranhadas, são esvaziadas e, como cifras simbólicas, atraem significados.” Tantas foram as “coisas estranhadas” pelos alquimistas medievais, quantos foram os símbolos nos quais eles as verteram, porque, pelo seu próprio apelo, não poderiam ficar vazias.

Pode se chamar o símbolo, aqui, de imagem dialética, porque a “coisa estranhada” é suspendida e integrada ao seu negativo lógico, ou à sua face não positivada (o símbolo, via de regra, é uma integração entre a coisa visível e a sua negação — e, por isso, é uma afirmação de seu status lógico, ou uma afirmação de sua negatividade). Perpetua-se, assim, uma espécie de ambiguidade, que cristaliza uma tensão indissolúvel e uma coexistência imóvel entre a coisa e o seu significado. O símbolo mesmo é o ponto central, mas não como o ponto que separa dois segmentos de uma linha reta — é o epicentro da tensão dialética, o território sombrio, ao mesmo tempo vazio e cheio, visível e invisível, é o “fantasmata”, a parada opaca e prenhe de significado entre o ingênuo e o ininteligível.

A perda do significado das coisas e a dessacralização dos ícones antigos não representam, todavia, apenas uma materialização estéril e inócua do mundo. Os significados perdidos, uma vez exorcizadas as suas moradas, são lançados no Abismo e retornam ao Caos como potências subterrâneas e anárquicas, como forças impessoais e fatalísticas que se abatem sobre a mente humana com todo o peso físico de seus terrores e terríveis paixões, mas sem se permitirem interceptar descritivamente, apreender significativamente — são abalos sísmicos profundos e maremotos vorazes, súbitos e avassaladores, que chegam sem aviso e somem sem razão. Esses demônios tomam posse das carcaças inanimadas de todas as coisas sem sentido e militam contra o espírito humano.

Quantos significados foram defenestrados da vida pública nesses tempos do Fim?

O caminho iluminista, positivista, cientificista dos últimos séculos, negou às coisas o sentido simbólico, que é o sentido intelectual, preferindo permanecer com sua positividade ingênua, particular e utilitária. Mas os “espíritos imundos” que delas saíram ora vagam por terras áridas, à espreita, esperando oportunidades de retorno. Quantos significados foram defenestrados da vida pública nesses tempos do Fim? E quantos outros já habitam o Abismo desde jazidas eras, quando os primeiros fisiólogos “estranharam as coisas”? São essas as imagens do passado, “que perderam seu significado e sobrevivem como pesadelos e espectros” (Agamben, Ninfas — p. 47). O trabalho do homem diante delas é a de um “necromante” (com o termo de Warburg a respeito de Burckhardt), porque ele deve evocar e trazer à consciência os espectros que o aterrorizam, dando-lhes forma e restituindo-lhes o sentido. A vida do homem é, de fato, a da travessia na “terra de ninguém, entre o mito e a penumbra ambígua em que o vivente aceita confrontar-se com as imagens inanimadas que a memória histórica lhe transmite para restituir-lhes a vida” (p. 46).

A esse propósito, o alquimista Paracelso deu um lugar à deusa pagã Vênus, exilada no Abismo. Foi posta entre as ninfas (água), que ele descreve junto dos silfos (ar), dos pigmeus (terra) e das salamandras (fogo) como imagem do homem, que é imagem de Deus. Esses espíritos, imagem do homem, não nasceram, contudo, de Adão, e estão desprovidos de alma. Diferentes dos animais, porque em tudo se assemelham aos homens, não são, entretanto, humanos, já que não possuem alma. Também não são anjos, ou espíritos puros, uma vez que têm corpos perecíveis. Nesse caso, mesmo não sendo animais, possuem o mesmo destino deles: sem alma, não conseguem servir a Deus, nem encontrar n’Ele a Salvação, por isso só lhes resta, como as bestas, a morte e o definhamento completo. Nesse sentido, são “homens não humanos”, ou a negatividade lógica do homem — sua imagem, como que um espectro seu, simbolizações de sua sombra. São Penumbra.

“Homens não humanos”, os espíritos desgarrados, ou elementares, “constituem o arquétipo ideal de toda a separação do homem de si mesmo” (p. 52). As ninfas, porém, polarizam com o homem, especificamente o varão, no sentido de serem como mulheres, e podem adquirir alma humana através da união dos contrários, efetivada por meio do intercurso sexu4l, fértil para a geração de uma prole — todos dotados de alma, plenificados e tornados humanos. Isso reforça o status das ninfas enquanto sombra, espectro, imagem do homem, a quem seguem de perto, sempre famintas de ser, inflamadas do desejo de hominização.

Na qualidade de imagens da sombra do homem, os espíritos elementares são receptáculos para diferentes setores da vida psicológica. Se aparecerão enquanto pesadelos ferais e vampíricos, sob formas demoníacas exteriores, ou se aparecerão enquanto evocações conscientes, para confronto aberto e direto, culminante em seu preenchimento significativo e diurno, ou sua participação legítima na vida mental (individuação), dependerá de seu grau de integração. Todavia, a alienação do homem consigo mesmo nunca será de todo sanada, porque a razão sempre assumirá as imagens interiores, tanto quanto as exteriores, como símbolos — o esmorecimento da razão deixaria a mente desguarnecida à investida do Mito e à possessão pelo espírito desgarrado (logismoi).

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 13 de junho de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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