A Necessidade Psicológica do Sofrimento

o papel da dor no desenvolvimento humano

Natanael Pedro Castoldi
9 min readApr 9, 2021
Saint George Defeating the Dragon, Johann König

Ninguém quer sofrer. Se por um minuto tivéssemos poder ilimitado para afastar de nós toda a possibilidade de dor, não pensaríamos duas vezes. Mas assim que o fizéssemos, instantaneamente seríamos retirados do mundo, ou do mundo que conhecemos, e retrocederíamos a um estágio quase que embrionário. Na atual conformação da realidade, num mundo que não é o ideal, a anulação do sofrimento não é diferente de uma anulação de toda a possibilidade de desenvolvimento físico e psicológico. Sem pressões ambientais, nossa musculatura e nossa ossatura seriam muito mais frágeis. Sem pressões e frustrações existenciais, que abrem feridas em nossa psiquê, seríamos criancinhas no corpo de adultos. Sem sofrimento físico e psicológico, nos veríamos como a imagem e semelhança daqueles anjinhos flutuantes e gordos, esbanjando ingenuidade e sempre acima do chão. O problema é que isso, mesmo se fosse possível, não funcionaria no cenário da humana vida natural e social. Não nascemos fartos, mas nus e aterrorizados, e a miséria material e o terror são os primeiros fatos que se nos apresentam. E, nascidos de um trauma, da saída do calor uterino, e frágeis como mamíferos prematuros, de imediato somos inseridos na complexidade de um mundo de leis naturais e de normas morais e sociais, que nos bloqueiam, nos frustram, nos moldam.

A “plenitude” da vida pré-natal, quando estamos sob a guarda ininterrupta do corpo e do afeto da mãe, nos suprindo e aquecendo o tempo inteiro, é de pronto distinguida do susto do nascimento, quando temos que respirar pela primeira vez. A condição pré-natal é tão paradisíaca, que a sua imagem edênica jamais sai de nossa psiquê, jamais abandona a sua posição nas raízes mais profundas de nosso ser, que sempre quererá voltar ao Paraíso, reencontrar a condição despreocupada e sem compromissos da inconsciência. Essa busca pelo regresso ao Éden procurará se atualizar na relação simbiótica entre a mãe e o bebê nos primeiros meses após o nascimento. Ali, no colo materno, amamentando-se, o bebê revive algo da plenitude que há pouco experimentava integralmente e da qual tomou “conhecimento” quando foi dela umbilicalmente cortado. Por isso a figura da mãe é também a primeira imagem do mundo que a criança formará: um mundo onde ela, a criança, é a protagonista e no qual todo o resto não passa de uma extensão da sua vontade. Essa sensação de onipotência e de protagonismo, típica de uma vida psíquica ainda pouco diferenciada, dada a pouca exposição a uma variedade de experiências na realidade, é descrita como uma inflação: para a criança, é natural se ver como muito maior do que é, e a sensação que tem a respeito de si, quando não alterada pelas circunstâncias e mantida antinaturalmente até a maturidade física, dará nas megalomanias de quem se percebe como divino. Esse self inflado fica bem nítido na forma do desenho infantil, que reproduz pessoas com um corpo circular, uma expressão simbólica da totalidade (EDINGER, 2020). Há um mito grego que diz que os primeiros homens, feitos de uma unidade perfeita e grandes como os deuses, tinham corpos circulares. Esses homens, ao descobrirem os deuses olimpianos, se organizaram para assaltar os céus e destroná-los. Isso não é tão diferente da história da Torre de Babel, na unitária humanidade auroral do Pós-Dilúvio.

Um trauma, em termos psicológicos, é uma contradição entre o evento e a estrutura da psiquê

Mas a vida não é perfeita. Além do próprio trauma do nascimento, o modo como o bebê é manipulado pela mãe, que direciona sua cabeça para o peito, e os momentos nos quais a mãe não está presente e não pode nutrí-lo, são também pequenos traumas. Um trauma, em termos psicológicos, é uma contradição entre o evento e a estrutura da psiquê, de modo que esta não tem meios imediatos de assimilar aquele. Pequenos traumas, contudo, não são insuperáveis pela psiquê: um curto momento de fome seguido da amamentação será introduzido na psiquê como uma instrução sobre a vida — o bebê não é, na realidade, onipotente, e precisa se desenvolver e obter maior autonomia para não depender tão absolutamente do arbítrio externo. Dores físicas como tombos, ou mesmo dores que emergem do desenvolvimento natural do organismo, como o crescimento dos dentes, também servirão de matéria-prima para a mente melhor entender o mundo e a si mesma. Em diversas ocasiões, esse entendimento é melhor expressado com imagens, que a criança encontrará fartamente nos contos de fadas. Junto às dores gengivais, prelúdio da vinda dos dentes, cresce o interesse pelo Lobo Mau, com sua bocarra cheia de dentes e sua fome sem fim (DURAND, 2012). Em resumo: todo o desenvolvimento físico e psicológico do homem depende de níveis baixos e moderados de sofrimento, de dores que, abatidas sobre o corpo ou na mente, levarão a uma reconfiguração da autoimagem e da própria estrutura mental, ambas atualizadas para uma melhor adequação ao mundo e suas demandas. Espera-se que o homem adulto, maduro, seja portador de uma estrutura mental adequada à sua força física e às suas capacidades, estando habilitado a canalizar sua potência física e mental para a realização de tarefas socialmente úteis e pessoalmente satisfatórias. Nada mais perigoso do que jovens que, já tendo a força física de um corpo adulto, estão com suas mentes aprisionadas na infância, pois são eles que reagem com maior violência às proibições que lhes são impostas pela família ou pela sociedade, além de tenderem à inconsequência em seus atos, com o ônus de sua maior capacidade destrutiva (CAMPBELL, 2014).

Ao longo de toda a história humana, a adequação entre o corpo e a psiquê foi uma das atribuições da cultura, da comunidade. Há alguns momentos da vida que são mais decisivos, onde a transição entre uma etapa e outra precisa ser melhor definida e bem assegurada. Os ritos de passagem das comunidades tradicionais são um exemplo clássico: adolescentes ainda infantilizados, mas com capacidade física para o exercício de atividades benéficas para o grupo, eram retirados do mundo caseiro das mulheres e levados ao círculo masculino da caça e da guerra, onde passavam por algum tipo de terror físico e/ou psicológico, capaz de dissolver a estrutura mental infantil e deixar o jovem predisposto a receber uma nova estrutura, que vinha por meio de mitos secretos e restritos aos homens, portadores de um conteúdo simbólico adequado para dar significado para a vida adulta e incentivo para o bom uso do corpo e das capacidades mentais nas novas tarefas. Em tempos mais recentes, outros ritos foram considerados iniciáticos, como a participação do menino em um esporte de contato físico e o seu primeiro dente ou braço quebrado em jogo, um acampamento, uma caçada… sempre acompanhado de algum mentor masculino mais velho e mais experiente, capaz de validar a transição e afirmar as qualidades do rapaz.

Em nossos dias, contudo, não existem mais mecanismos rituais socialmente válidos e compartilhados para essa introdução de adolescentes na vida adulta, não há mais o ancião à espreita, esperando o jovem estar maduro para receber bons conselhos sobre como é ser e viver a masculinidade adulta. No espectro feminino, a ausência de anciãs conselheiras e virtuosas para ensinar as meninas e aconselhá-las cobra um preço semelhante: estamos vendo gerações subsequentes entrando na vida adulta sem saber o que fazer, como fazer, por qual motivo fazer, e sem uma ruptura adequada com a mentalidade, os desejos e as demandas psicológicas infantis. Por isso presenciamos, além de um crescimento vertiginoso nas psicopatologias, um aumento geral de adultos sedentos por entretenimentos que outrora eram restritos ao universo das crianças, como os super-heróis e os videogames, e temos que assistir a “pessoas grandes” com um emocional bastante superficial e fragilizado, sem boas reservas de capital psicológico, matriz da boa paciência, da tolerância à frustração, do foco, da capacidade de lidar com as complexidades do mundo real. Temos personalidades inchadas, sedentas pelo paraíso infantil e sempre em busca por reproduzi-lo através de fantasias diversas e da construção de um mundo artificialmente seguro, cercado de recursos para afastar o tédio e hiperestimular a mente. Em suma: pessoas que foram excessivamente poupadas do sofrimento por pais assustados e por instituições superprotetoras, não sabem como lidar com o sofrimento e querem afastá-lo a todo o custo — e esse custo envolve sua própria saúde mental.

O psicólogo norte-americano Martin Seligman (2004) observou que jovens movidos a atividades prazerosas (atividades cuja finalidade é o prazer, o estímulo mais imediato possível), são também os jovens que apresentam maior incidência de distúrbios psicológicos, como ansiedade e depressão, e são, em geral, menos satisfeitos, considerando a si mesmos mais infelizes. Esses jovens, chamados de “jovens de shopping center”, não possuem em sua rotina compromissos e atividades complexas o suficiente para que a sua musculatura moral e psicológica seja bem exercitada e, portanto, acabam sendo menos bem-sucedidos em suas vidas familiar, profissional e acadêmica, visto não possuírem quantidades adequadas de recursos cognitivos para estudos vestibulares, para crescimento profissional e para a manutenção de relações familiares ricas e no longo prazo. Em oposição a esses, temos os jovens que foram identificados como envolvidos em atividades gratificadoras (atividades mais complexas e que são procuradas justamente pelo desafio). Esses jovens, melhor engajados nas demandas domésticas da família, em projetos na comunidade onde residem, em algum esporte ou jogo, são também aqueles que apresentam uma melhor saúde mental e que se afirmam mais felizes e satisfeitos. Tais jovens, cujas faculdades mentais são estimuladas pelas demandas das atividades nas quais estão inseridos, tendem a uma vida mais satisfatória em todos os aspectos (familiar, profissional e acadêmico), pois têm maiores reservas para suportar provas difíceis e superar barreiras desafiadoras. Ou seja: acostumados a uma dose diária de pequenos sofrimentos, que tomam como estímulos e não motivos para desistir, acabam mais felizes e, por serem mais competentes, veem-se com mais otimismo.

Jonathan Haidt (2018), psicólogo estadunidense, observou como o uso dos smartphones desde a primeira infância tem adoecido uma geração inteira de adolescentes, viciados em estímulos constantes, como os que têm no celular, e criado uma legião de pessoas ansiosas, depressivas e portadoras de toda a qualidade de psicopatologias. Soma-se ao uso irrestrito dos celulares a influência de uma sociedade superprotetora, onde situações psicológica e fisicamente mais intensas, como aquelas que possibilitam os ritos de passagem, não podem acontecer. Pais ansiosos e incapazes de lidar com o menor nível de sofrimento em seus filhos, por terem sido eles mesmos privados de quantidades saudáveis e necessárias de sofrimento, e instituições obcecadas pela evitação de todo o tipo de dor, têm feito de nossos jovens e adolescentes pessoas altamente vulneráveis e incapazes de administrar com maestria as demandas da vida real. De certas filosofias que permeiam a educação primária e secundária, que não permitem testes difíceis, punições brandas e nem reprovações, até um ensino superior cada vez mais ocupado em assegurar conforto físico e psicológico para os universitários, estamos criando pessoas incompatíveis e inadaptadas ao mundo que conhecemos e no qual devemos viver. Essas pessoas, que são tolhidas do amadurecimento pela reação autônoma ao sofrimento natural, não conseguem se individualizar o suficiente e, cheias de ilusões e de expectativas fantásticas e infantis a respeito do que a sociedade lhes deve fornecer, certamente estão se frustrando terrivelmente quando pessoas anônimas, nas ruas e em seus locais de trabalho, lhes negam seus caprichos. E certamente sofrerão muito mais do que jamais poderiam ter sofrido antes, no ambiente seguro de seus lares e escolas, quando perceberem que não possuem recursos psicológicos para desempenhar com confiança e vigor suas demandas em casa, no trabalho, na igreja e na vida acadêmica. O fato é que é uma tremenda e desonesta mentira fazer as crianças e os jovens se pensarem como muito especiais e transformadores do mundo, ou como merecedores de tudo o que querem ou sonham, pois a realidade é que o mundo nunca mudou para se adaptar a ninguém — são as pessoas que devem mudar para melhor estar no mundo, mesmo quando sabem que não são do mundo.

“Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito.” - Rm 8:28 (ARA)

CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.

DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

EDINGER, Edward. Ego e Arquétipo. São Paulo: Cultrix, 2020.

HAIDT, Jonathan; LUKIANOFF, Greg. The Coddling of the American Mind: How Good Intentions and Bad Ideas Are Setting Up a Generation for Failure. Nova Iorque: Penguin Books, 2018.

SELIGMAN, Martin. Felicidade Autêntica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

Artigo publicado originalmente na Revista Fé Cristã,, edição 7, ano 2, nº 7, março de 2021, p. 31–36 — A Necessidade Psicológica do Sofrimento, por Natanael Pedro Castoldi

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Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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