A Nova Ética Junguiana

a redescoberta do espírito tradicional

Natanael Pedro Castoldi
5 min readJul 22, 2021
Apolo vence la Serpiente Pitón, Gustave Moreau

A chamada “Nova Ética da Psicologia Profunda”, desenvolvida por Erich Neumann (2021), não é propriamente nova. Nem em conceito e nem em propósito. Como já ficou claro para mim há algum tempo, Jung está mais para o redescobridor daquela psicologia tradicional, matriz do mito e trabalhada no rito — é lógico que há todo um trabalho intelectual eminentemente moderno por sobre o material analisado. Ao se deparar com a cultura folclórica, imagética, do homem antigo, das culturas e das religiões tradicionais, Jung e seus discípulos reinseriram no cenário industrial, materialista e racionalista do Ocidente do Séc XX aquilo que era, em muitos sentidos, natural à Europa medieval e pré-moderna, sobremodo cristã.

Chesterton (2008) foi quem, por volta do mesmo período, melhor percebeu isso: o cristianismo é a matriz de uma civilização que consegue conter dentro de si um mar de paradoxos, todo o tipo de contradição e de variedade, espírito bem materializado na arquitetura gótica, o ápice da maturidade da civilização medieval. Para Chesterton (2016), a Igreja, multimilenar, estabelece os limites e o cenário dentro do qual toda a diversidade de condutas e de movimentos pode ocorrer — todas as heresias, todos os desvios da história do espírito do Ocidente são, de alguma maneira, filhos da Europa cristã, exageros e rebeliões, e nenhum deles conseguiu superar e aniquilar a superestrutura que os viabilizou. Ela fica e eles somem, retornando depois sob novas roupagens. A etimologia para Jerusalém é cindida: carrega o nome de Baal -Salém (Shalem=Ashtar=Moloque)- e também o nome de Javé -Je(Yah=YAHWEH) (LINTHICUM, 1993). Roma sempre foi uma cidade fundada por deuses e também pela gentalha, centro de todas as glórias e de todas as impurezas, e é Roma, a Igreja, que retém dentro de si o Remanescente Fiel e também o Anticristo e a Anti-Igreja (AGAMBEN, 2016). A civilização cristã tradicional não se assenta na polarização, num dualismo de absolutos opostos, mas, como todas as civilizações antigas, num caráter tríplice: se cabem na estrutura o Bem e o Mal, significa que há um elemento terceiro, contingente, que suporta e fundamenta a própria polaridade interna. Nisso não se relativiza o Bem ou o Mal, mas se compreende de maneira realística o status dessas realidades dentro do mundo concreto e institucional. Paul Tournier (2008) demonstra que o processo de exclusão institucional, pois cognitiva, de uma realidade, de um segmento da sociedade, é produto renascentista da mentalidade política maquiavélica e também do racionalismo cartesiano.

A cultura racionalista não vê o estranho, pois ele não cabe no esquema abstrato

A cultura racional, que abarca o empírico (já que metodológico), absolutiza um termo em detrimento de outro e já é incapaz de absorver satisfatoriamente as contradições. Norbert Elias (1990) evidenciou como o estabelecimento do Estado racional repercutiu numa racionalização da vida, explicitada em toda a etiqueta burguesa, moralista e padronizante. Contrariamente a esse espírito, de exclusão cognitiva do oposto (o fenômeno jornalístico e cultural da Espiral do Silêncio é seu clímax), a cultura medieval e cristã não ignorava ou anulava categoricamente o estranho: a bruxa tinha o seu lugar e o seu status era tão bem considerado, que causava terrores que apenas uma mentalidade inflamada pela grandeza espiritual do homem podia gerar. A cultura racionalista não vê o estranho, pois ele não cabe no esquema abstrato, de maneira que ele também fica escondido e subjugado no organismo social, enquanto a cultura tradicional mantém o estranho no hall cosmovisional, sendo obrigada a lidar com ele diretamente, no mundo concreto — a realidade como ela se apresenta jamais pode ser ignorada (essa é uma das qualidade da mentalidade antiga, que aparece no direito, na economia, na medicina, na religião e na política tradicionais).

A Nova Ética de Neumann afirma, pois, no nível do indivíduo, aquilo que existia no nível da sociedade, visando uma transformação da sociedade mesma: o homem é visceralmente uma mistura, abarcando todo o tipo de contradição e de paradoxo. Somos, é fato, movidos por instintos dos mais animalescos, e dentro desses instintos há coisas que precisamos controlar e outras que devemos despertar, somos movidos por imperativos filogenéticos, arquetípicos, com polaridades de toda a qualidade, e também pela capacidade racional, dirigida pelo Intelecto, que busca o Transcendente. Não somos uma mente racional/espiritual presa num corpo material, que não cabe no esquema abstrato e deve ser surrado de todas as formas. Somos o que somos: esse emaranhado de glórias e de misérias, e não podemos fugir de nós mesmos se quisermos progredir. Controla bem o impulso quem primeiro aceita a sua existência e depois com ele dialoga e o entende. Também desperta-se e se potencializa aquilo com o qual interagimos. O processo de individuação, de assimilação do Si-Mesmo, é exatamente isso: entender que somos uma unitas multiplex (FRANKL [2019]) e que só podemos ser mais o que somos se tomarmos posse consciente e volitiva de mais de nós mesmos. Nesse aspecto, a Filosofia Reformacional, que considera o homem em cinco estruturas distintas unidas num todo maior, que é o Coração, é, de alguma maneira, pré-moderna (OUWENELL, 2014). O que Jung chama de Self, nós podemos chamar de Coração, que é essa macroestrurua compreensiva e abrangente, que suporta a totalidade paradoxal.

O vício e o perigo da psicologia junguiana estão nas implicações posteriores, que se aproximam da velha vereda gnóstica: há um projeto evolucionário sugerido por Neumann, visando uma progressão da espécie humana que chegue ao clímax da fusão completa entre o Inconsciente e o Consciente, com a imagem do Si-Mesmo aproximada daquela do Super Homem, objeto de outros filósofos. Esse vício, contudo, só viceja porque Neumann está entrando na mentalidade do homem tradicional, antigo, com o olhar científico moderno — ele consegue perceber a necessidade e a lógica evolutiva que residem no homem, de duas partes que devem coincidir totalmente levando à plenitude do Self, mas ele não consegue perceber, como percebeu o cristão tradicional, que esse apelo, realizado em Cristo, será, sim, satisfeito, mas apenas pela obra de Deus e dentro da Eternidade.

AGAMBEN, Giorgio. O Mistério do Mal. São Paulo: Boitempo, 2016.

CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.

CHESTERTON, G. K. Todos os Caminhos Levam a Roma. Santa Isabel, SP: 2016.

ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador I. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

FRANKL, Viktor. Psicoterapia e Sentido da Vida. São Paulo: Quadrante, 2019.

LINTHICUM, Robert C. Cidade de Deus, Cidade de Satanás. Belo Horizonte: Missão, 1993.

NEUMANN, Erich. Psicologia Profunda e Nova Ética. São Paulo: Paulus, 2021.

OUWENELL, Willem. Coração e Alma. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.

TOURNIER, Paul. A Missão da Mulher. Viçosa, MG: Ultimato, 2008.

Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 22 de julho de 2021.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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