A Pandemia e a Revolução do Espírito
a Terceira Guerra Mundial atrás das máscaras
Ainda está por fazer uma leitura dos termos de estirpe bélica que foram utilizados pelo mainstream ocidental para se referir à lida com a pandemia. Proliferaram por todos os lados sentenças como “luta contra”, “combate ao”, “guerra ao”, “batalha pelas”, “na linha de frente”… Valli (2021) e Agamben (2020) observaram a estrutura religiosa assumida polos governos e pelas mídias, descendo ao nível da sociedade — Valli identificou uma famosa frase de Juliana de Norwich (1342–1416), mística cristã, pendurada nas janelas e varandas de muitas residências italianas (“Tudo ficará bem”). A combinação entre Guerra e Religião não é incomum e está sempre presente em dramas mais vastos, de impacto generalizado, como ocorreu no tempo das Cruzadas, vindo após uma crise de cerca de quatrocentos anos com os maometanos.
Não há, de fato, nenhuma novidade na conexão entre Guerra e Fé. A verdade é que a Guerra pode ter nascido no contexto mesmo da Religião, sendo inicialmente vinculada ao rito e dramatizadora do mito — invariavelmente haverá uma narrativa a justificando. É isso que Campbell (2015) demonstra quando discorre a respeito de uma tribo aborígene dos confins insulares da Ásia, até muito recentemente observável: lá os homens da aldeia, sem uma variedade maior de inimigos e com muito tempo ocioso, costumavam se dividir em “times” e batalhar entre si até que o primeiro caísse morto — aí os ânimos se acalmavam. Trata-se, no final das contas, de um rito sacrificial, da busca por uma vítima expiatória capaz de canalizar toda a fúria acumulada pelos atritos sociais e toda a energia retida pela ociosidade. Aqui vemos como a observação de Campbell se aproxima da Teoria Mimética, de Girard (2004): deve haver uma vítima capaz de absorver a violência social. Para Girard, a própria cultura humana nasceu de uma crise mimética culminada no sacrifício humano. A turba indiferenciada se polariza num conflito ao redor de um determinado objeto de desejo e tenderá à aniquilação mútua se não encontrar um terceiro, um bode expiatório que chame a atenção por ser diferenciado (alguma característica física, uma origem distinta…) e, por isso, culpável pela crise. Quando morto, contudo, tenderá a ser divinizado como um herói fundador ou uma divindade, visto a sua morte trazer um apaziguamento quase milagroso e lançar os fundamentos da diferenciação social/cultural, baseada, portanto, na religião. Como meio de reprimir a vergonha geral ligada ao assassínio coletivo da divindade, a narrativa mítica desenvolvida a partir de então visará encobrir o assassinato, contando histórias sobre algum conflito cósmico e originário no qual a divindade fora abatida por algum titã ou algo similar, para renascer em sequência (a veneração da vítima expiatória teria culminado no primeiro sepultamento, acompanhado de oferendas em grãos, que germinaram, dando a impressão de um tipo de retorno vegetal do herói). Ao redor desses mitos, que falam de um caos indiferenciado a anteceder a ordem, se desenvolveram ritos, todos originados em atos sacrificiais diretos e depois variados em sacrifícios indiretos, cada vez mais simbólicos. A Guerra, vê-se, remonta à primeira crise, ao primeiro assassinato e aos primeiros mitos e ritos, de maneira que ela sempre estará imediatamente ligada à religião em sua face mais primitiva e selvagem.
É também Campbell (2015) que descreve a violência gerada pelo espanto, sempre mobilizador de uma energia potencialmente caótica, caso não seja dirigida para outrem. O exemplo mais surpreendente disso está nos primatas superiores, em gorilas selvagens machos que foram vistos se agitando de maneira excessivamente agressiva ao som e à luz de raios e trovões. Isso não está longe do que descrevemos em Girard: um tipo de excitação violenta e contagiante, que atiça os corpos e depois as mentes e que está fora do domínio imagético, pois é ainda algo novo, pedirá por algum desvio propiciatório. Em geral, e isso é conclusão minha, os mitos originários nascem assim: um evento inédito, assombroso e para o qual não há aparato cognitivo prévio, sendo insuportável por sua própria natureza, pedirá por uma realização concreta, sempre de violência explosiva e irracional e, portanto, catártica, e é desse apaziguamento psicossomático, tomado por milagroso, que o ato será demarcado como fundador e ordenado imageticamente, sugerindo atualização ritual quando do retorno das mesmas ou similares tensões. Deve-se pensar, e o dr. Peter Lavine (1999) o faz, que certos conflitos são devidos a tensões acumuladas dentro de comunidades e nações, ou entre vizinhos, e que não puderam ser resolvidas de outras maneiras.
É Lavine, ainda, que exemplifica o caráter ritual da Guerra como tendo bases já nos animais. Há um mecanismo de sobrevivência da espécie que impede que animais do mesmo tipo se destruam desnecessariamente, de maneira que brigas por território ou por fêmeas são rigidamente ordenadas, havendo limites muito claros. Se o animal, por exemplo, mostrar a barriga, sua parte mais vulnerável, se deitar ou se afastar, significará que se rendeu e ele imediatamente será poupado. Há outros gestos de submissão e de obediência que organizam a violência cotidiana dentro de grupos de animais sociais ou nos encontros entre animais solitários. A Guerra, desde as suas bases mais profundas e arquetípicas, não é diferente do conflito entre dois homens (muitas vezes são dois irmãos, ou pai e filho), de maneira que temos uma luta entre dois da mesma espécie e, portanto, conduzida por certos instintos empáticos profundos. É por isso, talvez, que a turba girardiana sentiu tanta vergonha quando matou pela primeira vez, visto ter violado certos comandos morais muito viscerais — daí passou a ser necessário encobrir o crime ou transformar o bode expiatório nalgo diferente de um ser humano, seja um deus que morre e ressuscita, seja um dragão ou alguma besta demoníaca. O instinto assassino do homem se deve ao seu defeito instintivo, muito fragilizado por sua capacidade racional, por sua memória e por sua imaginação. A morte de outro é validada quando ele é transformado pela nossa imaginação num servo do Diabo ou numa ameaça à Ordem. Mesmo nesse âmbito, o elemento religioso continua absorvendo todo o esquema, e ainda assim os instintos de autopreservação da espécie não deixam de atuar, pois a Guerra é de tal modo organizada, que impede o morticínio exagerado — daí aquela aldeia oriental se combater até cair o primeiro, daí aqueles famosos combates entre os campeões de cada exercito, visando definir em duas pessoas o conflito de milhares.
Outra característica da Guerra Antiga, enquanto veículo do Sagrado, está em sua realização em terras ermas, distantes das cidades e dos povoados, justamente naqueles territórios vazios. Van Gennep (2013) identificou nas culturas antigas a existência de espaços neutros entre as fronteiras das cidades. Esses espaços eram considerados como fora da jurisdição espiritual da cidade e de seu templo e, portanto, ligados ao Caos: áreas selvagens de florestas, pântanos e montanhas, lugares inóspitos onde circulavam faunos, duendes e bruxas, e onde o Sagrado poderia se manifestar sem cerimônia, a partir de hierofanias de todo o tipo. Nessas áreas os proscritos se escondiam, e também se encontravam mercados livres. Ali circulavam os estrangeiros, que saíam da Ordem, de suas cidades, para visitar outra, vagando pelos ermos durante a sua passagem — por isso o estrangeiro era visto com desconfiança, visto vir de Fora, de cidades estranhas, mas, sobretudo, das terras neutrais. Daí a pertinência de portais mágicos no limiar do território da cidade e de objetos sagrados nas encruzilhadas, e também de cercas e de muros, que Eliade (2010b) entende como originalmente pensados enquanto fortalezas contra o sobrenatural. Pois bem: era nessas áreas que os exércitos combatiam e ali representavam cada um a sua própria divindade titular, de maneira que a vitória de um sobre o outro indicava qual deus prevalecera. Finalizo esse tópico com Toynbee (1979), que resume-o por completo:
Em todas as civilizações, até o presente momento, os sacrifícios humanos têm sido praticados sob a forma de guerras e, desde a invenção da aviação, as vítimas das operações militares não se restringem a soldados mortos em batalhas e à população civil das cidades assoladas pela tormenta da guerra. — Toynbee, A Humanidade e a Mãe Terra, p. 171
O magnífico historiador do Séc. XX, além de corroborar o estudo acerca das raízes religiosas da Guerra, sinaliza uma mudança na natureza da Guerra dentro da Era Moderna. Rothbard (2012) percebeu a mesma mudança quando descreveu a transposição das batalhas entre exércitos do campo para dentro das cidades e contra populações civis. O abandono do terreno neutro onde aconteciam as batalhas pode ser entendido como resultado indireto da mentalidade industrial europeia que, conforme Josef Pieper, tomou os espaços vazios como objeto de repulsa, transformando-os, sejam territoriais, sejam temporais, em áreas “produtivas”. Isso, contudo, só foi viável após uma intensa secularização da Europa, devida ao Iluminismo e, conforme Oakeshott (2016), fartamente estimulada pelo Racionalismo, inimigo das tradições e dado a abstrações de toda a qualidade. É nesse ambiente racionalista que a Guerra, dessacralizada, é transformada num empreendimento lógico, baseado em ganhos e perdas materiais e de poder, e diante da qual as pessoas não passam de números — o nascedouro dessa índole está na Itália renascentista, conforme Burckhardt (2009). Mas, é claro, o que acontece nos gabinetes dos generais e dos políticos, todos estrategistas e empreendedores, não é o mesmo que acontecerá no calor sanguinário da batalha. Ali, o soldado continuará sendo movido por todo o tipo de paixão. De fato, a própria mudança tecnológica e espiritual favoreceu um regresso bárbaro, o retorno de uma mentalidade beligerante ancestral e altamente aniquilatória: a do caçador. O “cérebro predador”, gestado em trezentos mil anos de humanidade caçadora, é ativado, argumenta Eliade (2010a), sempre que há um contexto de disparidade de forças, incluindo o assalto. As hordas mongóis moviam-se sob esse espírito quando dilaceravam populações impotentes de aldeias pelo caminho. Os ocidentais, de mentalidade indo-europeia, sempre resistiram a transformar a batalha em selvageria: o guerreiro ocidental, seja grego, latino ou cristão, era sagrado — os guerreiros, dentre os quais o maioral seria o rei, eram ungidos pelos sacerdotes. O cavaleiro cristão é um tipo de guerreiro sagrado, virtuoso, e não pode dar-se à predação, sobretudo porque limita seu conflito ao duelo contra outro cavaleiro ou ao combate contra outros guerreiros (FLORI, 2005). Mas o soldado moderno que invade uma cidade já não é mais sagrado: ele está diante de uma população inofensiva e inescapavelmente se tornará um predador, um caçador. É assim que se sente um homem de tocaia com um fuzil, que se sente o piloto de um caça ou a equipe que dirige um tanque.
Indo mais fundo na questão, é duma paganização selvagem da Europa oriental que veremos, de maneira total, esse novo modo de fazer Guerra. Para Dawson (2018), o leste alemão foi cristianizado tardiamente e os deuses antigos não foram suficientemente exorcizados, vindo a encontrar ocasião de retorno quando as pressões circunstanciais foram excessivas, estimulando o despejo de uma onda de violência frenética e brutal por todo o Ocidente. O retorno pagão dos nazistas também foi notado por Bastide (2006), mas na figura daquilo que ele chamará de “sagrado selvagem”. Essa é a Guerra Total, uma inovação conhecida na Primeira Guerra Mundial e levada ao limite da insanidade na Segunda. Se o seu elemento religioso já não é mais o cristão, ele deverá ser outro, e será pagão, predador.
Num contexto de esfacelamento espiritual e cultural do Ocidente, numa era de confusão e de sede de absoluto, toda a qualidade de ideologias floresceu, cada uma sugerindo um diferente modo de interpretar e de conduzir a humanidade, cada uma absolutizando algum tipo de doutrina cristã ou trazendo à luz alguma forma oculta de gnosticismo ou paganismo. A mentalidade racionalista e ideológica se transformou numa imaginação de extremos, sempre oscilante entre totais, descrita de modo inflamado por Malcolm Muggeridge, citado por Russell Kirk (2013):
Eis os três cavaleiros do Apocalipse — progresso, felicidade, morte. Sob os seus auspícios, a busca pela riqueza total leva à miséria total; a procura pela paz total leva à guerra total; a educação total, ao analfabetismo total; o sexo total, à esterilidade total; a liberdade total, à servidão total; Procurando obter somente o acordo das minorias, encontramos um consenso baseado na consensocracia, ou na oligarquia da mentalidade liberal. — p. 210–211
É no contexto dos “totais” que conhecemos a Guerra Total, a Primeira e a Segunda. Antes da Guerra Total, o que tivemos foi a chamada Arte Total e o que aconteceu primeiro nesta, depois se desenrolou naquela. Essa é a tese de Modris Eksteins (2021). O nome de seu livro é também o nome de uma famosíssima ópera, A Sagração da Primavera, que estreou em Paris em maio de 1913, cerca de um ano antes da explosão da Grande Guerra. Enquanto Arte Total e origem do Modernismo na arte, foi uma obra subversiva e escandalosa, e nela se encenava um antigo ritual pagão de sacrifício de uma jovem moça à divindade, objetivando uma boa colheita na primavera, que fosse proveitosa à sua comunidade. Como demonstra Eksteins, o enredo da ópera foi seguido de perto pelos acontecimentos da Guerra, ajudando a compreender o pano de fundo imaginal que estava pairando pela Europa, capaz de cristalizar-se no drama e também no campo de batalha. Há, como vimos em Girard, aspectos comuns entre o rito e a batalha, sendo esta produto daquele. Além disso, seguindo igualmente Eliade, devemos compreender que o teatro tem uma origem ritual.
A Guerra Total, o sacrifício humano massivo e o seu impacto generalizado, deram nascimento a uma nova época e a uma nova forma civilizacional
Se olharmos atentamente, portanto, o sacrifício ritual da jovem na ópera não está longe do conflito mimético sacrificial da turba primitiva, ligado à guerra, de maneira que haveremos de pensar na própria Grande Guerra, ou na Guerra Total, como um banho de sangue sacrificial desejoso de fertilizar o solo ocidental para a emergência de uma nova era — e de fato foi o que aconteceu. Isso é sustentando indiretamente por Joseph Pearce (2017) quando descreve as mortes de muitos dos jovens europeus mais promissores, herdeiros da mentalidade antiga da Europa, e nos faz pensar sobre como essas mortes viabilizaram o soterramento do velho espírito e propiciaram o nascimento doutra coisa. A Guerra Total, o sacrifício humano massivo e o seu impacto generalizado, deram nascimento a uma nova época e a uma nova forma civilizacional. Tal como no primeiro sacrifício humano, o assombro de um evento jamais imaginado pela mente humana (a Guerra Total) pediu por renovação de mente e de conduta sob novos moldes, capazes de suportar tal qualidade de experiência.
Dei toda essa volta para retornar à questão inicial: o vocabulário bélico e religioso empregado na propaganda da Pandemia. Talvez o que tenhamos presenciado tenha sido a primeira “guerra mundial” sem armas, mas com todos os outros elementos: o ímpeto beligerante, o fervor religioso e mortes aos milhões. O impacto na sociedade, em sua psicologia e em suas estruturas, foi incomparável, de modo que é inegável que uma nova forma civilizacional foi inaugurada e uma nova era teve início. Ainda que a origem de tudo não tenha sido intencional (partamos desse pressuposto), talvez a função pandêmica enquanto incitadora e canalizadora de paixões e de fervores que estavam se acumulando no seio da sociedade ocidental, sugerindo nefastas resoluções em termos de ânimos militares, tenha sido mesmo a de uma expiação massiva ao redor de vítimas incontáveis. Mas, veja bem: independentemente das explicações a respeito das causas, jamais na história humana tantas mortes não surtiram profundos e duradouros impactos transformativos, ainda mais quando tão diretamente associadas a sentimentos religiosos e combativos inequívocos.
AGAMBEN, G. Reflexões sobre a peste. São Paulo: Boitempo, 2020.
BASTIDE, R. O Sagrado Selvagem. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
BURCKHARDT, J. A Cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
CAMPBELL, J. As Transformações do Mito Através do Tempo. São Paulo: Cultrix, 2015.
DAWSON, C. O Julgamento das Nações. São Paulo: É Realizações, 2018.
EKSTEINS, M. A Sagração da Primavera. Campinas, SP: Vide Editorial, 2021.
ELIADE, M. História das Crenças e das Ideias Religiosas (Vol. I). Rio de Janeiro: Zahar, 2010a.
ELIADE, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 2010b.
FLORI, J. A Cavalaria. São Paulo: Madras, 2005.
GIRARD, R. O Bode Expiatório. São Paulo: Paulus, 2004.
KIRK, R. A Política da Prudência. São Paulo: É Realizações, 2013.
LEVINE, P. O Despertar do Tigre, Curando o trauma. São Paulo: Summus, 1999.
PEARCE, J. Convertidos Literários. Curitiba: Danúbio, 2017.
ROTHBARD, M. A Anatomia do Estado. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2012.
OAKESHOTT, M. Conservadorismo. Belo Horizonte: Âyiné, 2016.
TOYNBEE, A. J. A Humanidade e a Mãe-Terra. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
VALLI, A. M. Vírus e Leviatã. Curitiba: Danúbio, 2021.
VAN GENNEP, A. Os Ritos de Passagem. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 16 de novembro de 2021.