A Perda da Encarnação e as Teologias do Corpo

De quando a Carne se evapora na Palavra

Natanael Pedro Castoldi
14 min readJul 25, 2023

Dentre as sentenças que melhor determinaram a natureza de meu pensamento, está aquela de Paolo Prodi, que aqui repliquei algumas vezes, mas que agora parafraseio: a história da nossa civilização pode ser pensada em dois momentos sucessivos, o da Palavra (ou Verbo) feita Carne e o da Carne feita Palavra. A fala do erudito é ainda mais enfática: a Carne se evaporando na Palavra. Eis, então, o estabelecimento do Mistério da Encarnação no cerne da Fé, ou do Culto da Cultura, e a destruição do Mistério pela fantasmagorização da Matéria — porque o Mistério da Encarnação, com subsequente Morte e Ressurreição no Corpo, era escândalo já entre os gregos, uma vez que os gregos, como bem demonstrou Voegelin, assumiam o Mundo Visível como dado e garantido em sua concretude, atentando para o Absoluto além e acima dele, e, conforme Paine (Chesterton e o Universo), não havia entre os antigos e medievais o chamado “problema do Mundo”, ou “problema crítico”.

De fato, a Encarnação era loucura ao gentio na medida em que o Mundo Visível, ou a Matéria, era de fato concreta, densa, ato de potência, e cada coisa e criatura, substancial, dotada de anima, ou forma, e enraizada no Ser — o que se via, cada parte do todo, tinha seu próprio substrato ontológico, e cada uma estava disposta e era significada nos termos do Todo, ou da Realidade. O Mistério da Encarnação só pôde ter o apelo revolucionário que teve, porque assumir Deus, que é Espírito, nascendo na Carne, ou o Criador, o Logos Divino, no corpo da criatura, era pensar o Senhor aparecendo aos homens na inequívoca solidez somática — o que significa que o Criador, no Mistério da Encarnação, estaria circunscrito ao corpo somático, nos termos na natureza visível que Ele assumiu, e não poderia estar fisicamente em todos os lugares, e não poderia ser Ele mesmo, nesse sentido, a própria matéria do Universo, já que visto e tocado como pessoa. A Encarnação impediria, pois, tanto uma visão panteística, porque o Cristo não poderia ser confundido com o Cosmos, quanto a visão gnóstica ou maniqueísta, que assumia a Matéria como uma degeneração ou queda do Espírito, com cada um de seus aspectos aprisionando dentro de si uma partícula da divindade, a ser libertada do corpo material. Ora, pela Encarnação, cujo Mistério resplandeceu na Transfiguração e pela Ressurreição no Corpo Glorioso, que Tomé tocou, não se pode pensar o corpo somático como uma degeneração ou solidificação do Espírito, mas como criatura de Deus — não parte d’Ele, nem Seu desdobramento interno, ou resíduo de um conflito com um “anti-Deus”.

O que viu o grego quando o apóstolo Paulo pregou o Cristo no Areópago? Veja bem: Platão corretamente pensou o homem como a unidade decorrente de uma síntese ordenada segundo a Transcendência (a realidade das Ideias), na direção da qual ele é arremetido por um movimento profundo e essencial em seu próprio ser. Fala-se “unidade” porque há diferentes “partes” constituintes do homem, e a própria alma (psyché) polariza internamente com sua contraparte terrena, voltada à vida somática, e aquela que é atraída, helkein, ao Um, o Divino, o Bem, pelo “fio de ouro”, ou Eros — chamada nous, guarda em si a reminiscência da visão perene no Hyperuranion, onde conheceu as Formas Universais, daí apreendê-las através das coisas visíveis e particulares, porque a alma, aqui, está sempre voltada para o Alto (anámnesis), para o qual intenta ascender através da purificação (kátharsis), que é a superação da hybris e das paixões concupiscentes da anthelkein. A unidade do homem, portanto, é dividenda de sua inclinação ascensional, rumo à Transcendência e ao Absoluto, ou ao Espírito, pela qual ordena seus apetites e dirige o seu corpo. O apóstolo Paulo assumiu elementos da antropologia platônica na doutrina do Corpo Espiritual disposta em 1 Coríntios 15: a anima, ou psyché, que anima o corpo carnal, soma psychikos, se não for dirigida pelo espírito (pneuma), sucumbirá às finalidades terrenas e perecíveis, por isso ela precisa ser dominada pelo espírito e regida pelo Intelecto (nous), arrastando consigo o corpo carnal, porque ela o anima, segundo o princípio da imperecibilidade — eis a soma pneumatikon. Todavia, como o apóstolo deixa claro, a soma pneumatikon, ou o corpo espiritual, só pôde ser realizado cabalmente no Cristo Ressurreto, de Corpo Glorioso, e isso é garantia de que será replicado nos filhos de Deus, renascidos espiritualmente em Jesus através do Espírito Santo, para serem renascidos fisicamente na Sua Ressurreição. O que significa que o Corpo Glorioso de Cristo, o Logos Encarnado, é a Forma Ideal do homem, em conformidade com a glória do Primeiro Adão, perdida no Pecado, mas desejada, de alguma maneira, por todos os homens de todos os tempos como memória sutil do Hyperuranion, porque o Adão Glorioso via Deus face a face. Aquilo que fora desejado pelos homens, nunca alcançado, todavia, porque inviável apenas pela vereda ascética ou ética, foi finalmente revelado pelo Pai em Cristo, e o Espírito de Deus, reabilitando o espírito do homem cristão, e com ele o Intelecto, pô-lo no Caminho Estreito — daí a santificação, pela via moral e à luz do princípio da imperecibilidade, ser de nobre utilidade.

Essa é a mensagem do apóstolo em Colossenses 2:17: toda a sabedoria dos gentios e todo o sistema ritual israelita eram “sombra” da Realidade (soma), que é Cristo. Algumas traduções trazem “soma” não como Realidade, mas como Corpo, e isso faz sentido: a sabedoria gentílica e o sistema ritual israelita eram como que a sombra projetada pelo Corpo, um fantasma ou espectro, reflexo tênue da pujante Realidade, ou Substância (Strong para “soma”), que é o Corpo Glorioso de Cristo. Também é isso que Paulo sugere em Atos 17, na pregação no Areópago, ao redor da citação de Epimênides de Creta: “Porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos”. O Logos de Deus, a Palavra, que é o Cristo, é a própria Realidade, uma vez, também, que por sobre a garantia eterna do Sangue do Cordeiro toda a Criação foi alicerçada (1 Pe 1:19–20), de maneira que os sábios gentios O buscavam, buscavam o Deus Desconhecido sem o saber, enquanto desenvolviam suas doutrinas, e tateavam no escuro, nas sombras, procurando encontrá-Lo. Como disse Epimênides, e Paulo o afirma astutamente, contudo, “somos sua geração” (genos = filhos [lembra o Er Panfílio, de Platão]), o que significa que Ele não pode ser semelhante a pedra, ouro ou prata, ou o que quer que seja produto da imaginação ou doutrina humanas, mas Homem — Ele não estava longe, mas perto, todavia só pôde ser conhecido no advento da Sua Ressurreição. O Deus que fez o Mundo, em cuja mente residem os arquétipos das Suas obras, estabelecidos -os arquétipos- criaturalmente no Céu, e que fez o homem, não pode ser concebido através de uma cópia, de uma imaginação humana baseada nas criaturas, e se somos “geração d’Ele”, somos Sua Imagem e Sua Semelhança — n’Ele está nossa verdadeira forma, porque d’Ele somos éctipo, e essa forma foi revelada no Cristo Ressurreto em Corpo Glorioso, à luz do qual recuperaremos a glória do Primeiro Adão. Então o arquétipo do homem, que estava no Céu junto de Deus, foi apresentado aos homens no Mundo, porque desceu da Destra do Pai.

É notável a retórica paulina para seu público ateniense. O homem perdeu-se no escuro, caiu de sua condição primeva para a circunstância da ignorância e buscou religar-se com o Divino com base em seus próprios recursos imaginativos, todavia, de Intelecto incorrigivelmente atrofiado, não pôde apreender naquilo que estava diante de seus olhos a Verdade. Para o grego, contudo, o caminho natural seria aquele da superação das diversidades e particularidades do Mundo Visível na direção ascensional ao Absoluto, ao Espírito, nunca a ideia de o próprio Divino, o Absoluto, descer encarnado no Mundo Visível, tornando-Se Ele próprio visível para resgate do homem, morrendo e ressuscitando em Corpo Glorioso. O Corpo Glorioso da Ressurreição é, então, apresentado na doutrina paulina como nosso arquétipo criatural, a forma visível do soma pneumatikon e segundo a imagem do Deus Encarnado — não é, ao fim e ao cabo, o Cristo Ressurreto que se parece com o homem em glória, mas é o homem em glória que é imagem do Cristo Ressurreto, porque Ele é o arquétipo e a Seu Corpo da Ressurreição é aquele que nos está reservado como retorno da antiga glória, já conhecida em Adão, imagem (imaginação) de Deus no Éden, que era Templo Cósmico do Senhor, e Seu sumo sacerdote. Disso não se apreende que Deus, Espírito, seja corpóreo, mas que o Logos Divino, a Palavra e o Filho, é Aquele por meio de quem tudo se fez (João 1:3), e que Seu Corpo, revelado aos homens na Encarnação, é o fundamento da Criação, e que Sua Morte e Ressurreição são tanto a sua base, quanto a sua finalidade — porque, se a Velha Criação é viável pela garantia do Sangue Eterno, a Nova Criação é iniciada no Mundo através do Cristo Ressurreto.

… o espírito não é propriamente uma imaterialidade, mas uma supramaterialidade

O que Paulo soube de sua Visão Celestial, é que o espírito, no sentido escatológico, não é propriamente uma imaterialidade, mas uma supramaterialidade, não contida nas modalidades terrenas do tempo e do espaço, porque doutra natureza, ou conforme a Natureza Última. O espírito, nesse sentido, não é propriamente etéreo ou sutil, fantasmagórico, mas, por assim dizer, mais sólido que a solidez, mais denso que a densidade, mais real do que a realidade — ele não é sustentado pela Matéria, mas a contém, ou a toma por sua sombra, ele é o Ser, e não pode ser nela contido, porque ele a contém. É o imperecível, porque imaterial, mas é imaterial porque supramaterial — é natureza qualitativamente distinta, e de fato é o Mundo Visível que parece poroso, pálido e volátil perto dele. O espírito, no sentido de Ser e de Una Luz, é também criatura do Deus Invisível, que é Espírito em sentido absoluto e Totalmente Outro, já que o Céu é espiritual não como se confundido com o próprio Deus, mas irradiação d’Ele, Sua obra em supramatéria. O Corpo Glorioso de Cristo, que vem da Encarnação do Divino e da Sua Ressurreição, é a infusão, no Mundo Visível, da Matéria Celeste, que é espiritual, e, desvelamento do Eschaton, o gérmen do que virá — a Nova Criação, que ora se alastra sob a superfície da Realidade e através da Igreja, e que finalmente esmigalhará o Mundo Vigente e Perecível num “átomo”, num piscar de olhos, quando tocar a Última Trombeta, e já não haverá mais distinção entre Céu e Terra, e renasceremos todos, de Cristo, no Corpo da Ressurreição, que é criatura de Deus, mas arquétipo da Criação Caída, e assim, Corpo de Cristo, coparticipantes da Natureza Divina. Isso os gentios não haviam compreendido. Noutros termos: a Una Luz que subjaz a Criação Visível é ela Criação Invisível, Ser, e espiritual enquanto supramaterial; dela resplandecia o Primeiro Adão, antes da Queda e da perda das “vestes de luz”, e desvelamento dela aos homens é o Cristo Ressurreto, promessa e garantia do retorno à Glória Primeira e Eterna.

O Mito da Caverna, de Platão, já apregoava a incapacidade de o homem, na condição de caído, libertar-se a si mesmo das amarrações da concupiscência. Para ser descolado da parede da Caverna, o homem precisa de um “puxão”, de um esticamento, desde o Alto, do “cordão de ouro”, correspondente ao seu incipiente desejo pelo Divino (zetein), mas um interesse incapaz, por sua própria força interna, de superar a contraforça, anthelkein, e a hybris, que a ela corresponde. O “cordão de ouro”, que puxa para o Alto, pode prevalecer se seu primeiro arrasto, que descola o homem da Caverna, for somado à vontade do eu (autos), movido pela razão (logos) e pelo juízo (logismos), que são operações do Intelecto (nous), manifestação do espírito reabilitado (pneuma). João, segundo a análise de Voegelin, respeita o esquema platônico ao encarar o Cristo como dispensador da helkein, da atração para o Alto. João 6:44. João 12:20–48 é-nos, nesse ponto, determinante: Ele foi enviado ao Mundo (kosmos [enquanto reino das trevas]) como Luz, para atrair a Si e religar ao Divino todos os que, de olhos abertos, O virem, e para que sejam futuramente condenados todos os que viram a Luz, mas não a reconheceram. Esse era o Juízo do Mundo: quando Ele fosse erguido da Terra na Cruz e o Príncipe do Mundo (o Archon Satânico), pois, derrotado. Levantado, o Cristo é posto, por conseguinte, na condição de opositor cósmico e escatológico de Satã. Di-lo quando os gregos chegaram a Ele, sinal da iminência de Sua morte, para que fosse erguido e, erguido, atraísse (helkein) os homens para Si. Aqueles que odiarem a sua vida (psyché) no Mundo (kosmos) serão, já no Mundo, guardados para a Eternidade, mas os que amarem a sua vida no Mundo, uma vez atraídos pela Luz de Cristo e tendo-a negado, morrerão junto do Juízo do Mundo, porque não serão nele guardados para a Eternidade. Convém indicar que o sentido de kosmos, que no texto joanino, quando da chegada dos gregos perante Jesus, aponta para a humanidade da oikumene (a face da Terra habitada pelos homens) e era aplicado pelos judeus à massa das gentes e das coisas, com o termo “massa” utilizado em Agostinho para a condição do gênero humano pós-Queda — é da massa que o crente, respondendo à helkein de Cristo, é separado. Erguido na Cruz, levantado, portanto, e depois Ascendido aos Céus, Ele atrai para si a humanidade, liberta das sombras e do domínio do Archon Satânico, para religar os homens ao Pai — mas nem todos os atraídos serão escolhidos, porque muitos deles preferiram amar mais as trevas do que a Luz. A helkein de Cristo acontece no Corpo, que morre na Cruz, e no Corpo Ressurreto, que é Glorioso e sobe aos Céus. Vai inteiramente nesse sentido a conclusão da supracitada pregação de Paulo em Atenas: Jesus, anunciado ao Mundo (kosmos), faz caírem as escamas dos olhos dos homens da Terra, possibilitando-lhes arrependimento para salvação ou, dos amantes deste Mundo, para juízo de condenação.

Evidentemente, como se apreende da análise acima, o Mundo (kosmos) não pode ser confundido com o Divino, nem a humanidade, enquanto massa humana, é divinal ou crística. O humanismo, desde o pensamento cartesiano, desloca o Divino, enquanto centelha, para dentro do homem, base da possibilidade de seu conhecimento do Mundo Visível, porque garantia de que aquilo que vê é real, e base de seu potencial autopoiético, ou autotélico, pelo qual, das descidas ao fundo celestial que insta na base de sua alma e da tomada de consciência e de posse desse si-mesmo “autêntico”, de um si-mesmo profundo, compartilhado por toda a humanidade, vai se redefinindo e vai remodelando o Mundo Visível, ou a humanidade enquanto kosmos, para progresso geral e evolução cósmica. Cristo, então, vira uma metáfora da divindade incipiente no homem individual, que compartilha com o “homem universal”, ou com a humanidade, porque essa divindade incipiente é acessível por todos os homens e é, n’última instância, a mesma, correspondendo perfeitamente a um vitalismo panteístico. Corpo de Cristo, nesse caso, será sinônimo de fraternidade univérsica entre os homens através de uma comunhão telúrica com a Terra, ou a substância energética fundamental do Cosmos, num processo dialético através do qual a humanidade coopera com “Pachamama” para completar a sua evolução biofísica, orgônica ou bioenergética e para ser por ela completada. Todo o humanismo, na medida em que pulveriza a Carne na Palavra, culmina nessas metáforas.

A Matéria é, então, reduzida ao seu substrato energético, reduzida a equações e partículas sutis, que são confundidas com o espírito, e é vislumbrada, portanto, como uma ilusão, como um véu enganoso que encobre um manancial indiviso, impessoal, magmático e fluído de potência quântica, impregnada de Vazio e erradamente assumida como espiritual. Nesse caso, a Encarnação não será mais do que uma miragem, mais um avatar de Brahma, mais um dos muitos Bodhisattvas, uma ilusão da divindade subjacente ao Mundo Visível e sua substância espiritual subatômica.

Nesses meandros, é notável como Paine vê já em Descartes um pensamento de temperamento tipicamente oriental, porque ele põe em questão a necessidade do Mundo enquanto Matéria para que se comece a filosofar — de alguma maneira, ele começa a sua filosofia pela negação hipotética do Mundo, e o ponto de partida de uma filosofia é, n’última instância, o seu ponto de chegada. O vício hinduísta, de modo sorrateiro, tem impregnado o pensamento ocidental desde então e não há exagero, portanto, em pensar os seus próprios termos como análogos aos já conhecidos na filosofia indiana, justamente porque os finalmentes da longa jornada da filosofia ocidental moderna, que acaba com a negação da metafísica em favor do domínio discursivo ou da Ontologia da Atualidade, são os lugares-comuns do hinduísmo.

Se Cristo não Encarnou, se o Verbo não virou Carne em sentido pleno, se a Carne é ilusória, “energia espiritual”, se Cristo é uma espécie de princípio energético, ou uma manifestação do espírito humanitário e da evolução cósmica, então é vã a nossa fé. Se Cristo não Encarnou, a Carne não sobrevive em substância e ontologicamente à investida da Palavra, ou do Discurso. De fato, se não há Encarnação, porque relativizada, o Mundo Visível fica desguarnecido e vai se fantasmagorizando, deixando de ser cosmológico para virar Tohu e Bohu — o Caos que serve de substrato à evolução crística da humanidade em direção ao Cosmos e do Homem Universal. Se não há Encarnação em um sentido inequívoco, o Mundo Visível não é nada além do pensamento, da verbalização, da imaginação da “Mente Universal”, que é o Nada pensando em si e de si mesmo. E se assim for, então tudo o que cremos experimentar e viver é produto de nossa imposição discursiva no Caos, de ficções compartilhadas, firmadas em contrato e confissões e sustentadas ludicamente. Porque se tudo o que há, no final das contas, é uma Mente Universal, pensamos os pensamentos dela, donde criamos nós mesmos o Mundo humanamente habitável — não sobrando nada além daquilo que somos capazes de pensar, porque tudo o que pensamos de maneira expressiva e compartilhada existe, e só é isso que existe, uma vez que não podemos pensar nada que já não tenhamos recebido da cultura. Daí recaímos em “comunidades hermenêuticas”, ou cosmovisionais, que não têm em comum com outras o terreno neutro da Realidade e por isso são incapazes de se compreenderem mutuamente, já que seus respectivos “mundos” são arquitetados segundo diferentes pressupostos — não há, portanto, qualquer fundamento intelectivo baseado na apreensão da Realidade mesma, apenas uma interpretação da “realidade” a partir daquilo que foi aprendido cultural e linguisticamente, e toda a “concretude” possível será aquela da expressão pública e comum, litúrgica, por assim dizer, das crenças compartilhadas localmente e inscritas ou corporificadas enquanto experiência psicossomática (construo a “realidade” na medida em que o discurso se agarra aos meus afetos, ao meu metabolismo, ao meu corpo, encarnando-se em mim e fazendo-me sentir, agir e viver, no meu corpo, segundo a sua trama discursiva, corroborada e corroboradora das corporificações da “minha comunidade de fé”).

Que insidioso! A Encarnação do Verbo, que é Ressurreto em Corpo Glorioso, é relativizada pela fantasmagorização da Matéria, que não é nada mais do que ilusão, energia ou pensamento de uma Mente Universal, e então os homens tornam-se eles mesmos “encarnações” da Palavra, porque seus corpos são reconstruídos, nos termos de afetos, paixões, inclinações e vontades, segundo assimilações imagéticas, meramente discursivas — então é como se os corpos fossem pensados, ou se desdobrassem da mente, e que todo o seu significado e o seu uso fosse determinado linguística e culturalmente. Assim, num mundo dessacralizado, porque imaterializado e tornado todo ele “espiritual”, não havendo nada fora da comunidade hermenêutica e discursiva, toda a concretude possível, ou toda a realidade viável, é aquela que se encontra na encarnação do discurso, da narrativa, da liturgia — que não dizem respeito a nada que literalmente exista, sustentando retroativamente a única realidade por eles criada: a do corpo enquanto corporificação do discurso, tal como o encontraremos em James Smith.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 25 de julho de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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