A Porta Esquilina

Diário de viagem #5

Natanael Pedro Castoldi
6 min readMay 2, 2024
Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 20 de abril de 2024. A Porta Esquilina.

Nesse dia, após um passeio matinal com meus pais pela Via Sacra, que está após o Coliseu e algo próxima da Via dei Fori Imperiali, e de uma subida pelo Monte Palatino, eu e a Gabrielle Castoldi decidimos explorar exaustivamente a Cidade Antiga. De fronte ao Coliseu e na terminação do Ludo Magno, decidimos subir pela Via della Domus Aurea, para cima do chamado Monte Ópio, pertencente ao Esquilino, e para dentro do Parco del Colle Oppio e delle Terme di Traiano — um vasto jardim com vista direta ao Celio e onde estiveram o Palácio de Nero e as termas de Tito e de Trajano, sobre os quais falarei melhor noutra ocasião. Ali, por razões inexplicáveis, já estávamos fora da rota procurada pela fatia mais larga dos turistas, e pudemos submergir no silêncio, este coroado pelo canto de aves por nós desconhecidas e pelas imensas ruínas das Termas. Foi a passagem para um verdadeiro mergulho na Roma Imperial, que nos fez entrar no espírito de abertura ao sublime e de recolhimento contemplativo que nos guiou até o fim da jornada, dois dias depois.

Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 20 de abril de 2024. As Termas de Trajano.

Seguindo pelas alturas do Equilino, fomos direto à Praça Vittorio Emanuele II, onde jazem as ruínas antigas do Ninfeu de Alexandre, ou Troféu de Mário, uma fonte de águas localizada na terminação de uma ramificação do aqueduto que chegava até a Porta Tiburtina, o portão da Muralha Aureliana pelo qual a Via Tiburtina deixava a Cidade. Esse ninfeu era, além de um santuário, um ponto de distribuição de água para o Esquilino, e é chamado de Troféu (embora erroneamente atribuído pelos medievais a Caio Mário), pois ostenta uma estatuária encomendada pelo imperador Domiciano para festejar sua bem-sucedida campanha contra os dácios e os catos em 89 d.C. Aqui estávamos, eu e a Gabrielle, no ponto mais alto do Esquilino, não longe das muralhas do norte da Cidade Antiga.

Meu interesse ali, todavia, era principalmente conhecer a famosa Porta Mágica, ou Porta Alchemica, porque parte da área do Ninfeu de Alexandre pertencera à Villa Palombara, construída em 1653 por Massimiliano II Savelli, marquês de Palombara. Conta-se que perambulavam pela Vila de Salvelli muitos alquimistas, magos e cientistas, porque ali se buscava, sob o mecenato do marquês, a realização da Grande Obra. Há uma lenda que diz que, dentre seus típicos hóspedes, Salvelli certa vez hospedou um desconhecido que afirmava conhecer a fórmula derradeira da Pedra Filosofal. Este estivera na Vila por uma noite e desaparecera sem rastros na manhã seguinte, deixando para trás uma pilha de ouro e uma lâmina de papel com instruções e fórmulas ininteligíveis, às quais o marquês inscreveu na Porta Mágica, que esculpiu para a finalidade de servir aos sábios e iniciados que se interessassem em tentar decifrar o enigma derradeiro para a finalização da Grande Obra. Por infelicidade, a passagem para a Porta Mágica estava bloqueada, de maneira que ela só pôde ser vista desde uma relativa distância, não valendo a pena o registro fotográfico. Seguimos em frente, pois o roteiro que montei apontava a proximidade da Basílica de Santa Praxedes, na qual residem famosos mosaicos e afrescos, além de uma tradicional relíquia cristã — a coluna sobre a qual Cristo fora flagelado por Pilatos -, e, após ela, da Basílica Papal de Santa Maria Maior, onde vivemos algo tão interessante, que vale um outro texto.

Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 20 de abril de 2024. A Porta Mágica.
Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 20 de abril de 2024. A Porta Mágica — detalhe.

Ocorre que Roma transborda de maravilhas e de preciosidades. À caminho de Praxedes, descemos pela Via Carlo Alberto e, sem ciência do que se tratava, descemos para um porão aberto, para o subsolo da Igreja dos Santos Vito, Modesto e Crescenzia, e de pronto estávamos, pois, na Cripta de São Vito sem o saber. Uma área arqueológica inteira se abriu aos nossos olhos, bem abaixo da Igreja, e o senhor que nos atendeu explicou, numa mistura de italiano com inglês, que ora víamos a parte mais antiga de todas as escavações em Roma — noutras palavras: ali estavam as suas ruínas em pedra mais antigas. O que se sabe sem dúvidas é que nessa cripta pudemos ver restos de muralhas romanas datadas de VI a.C., as mais antigas da Cidade, construídas por Tarquínio Prisco e depois concluídas por Sérvio Túlio. Essas muralhas tinham sete quilômetros de extensão e nelas se assentava a primeira Porta Esquilina, que era, de fato, a entrada da Cidade. Segundo minha pesquisa, essa primeira Porta, cujos resquícios estão na Cripta, não é exatamente a Porta Esquilina que hoje se vê sob a rua, sendo esta uma ampliação daquela. Voltamos à superfície gratos e surpreendidos — a satisfação de ter ido à parte mais ancestral da Cidade no dia anterior ao seu aniversário aumentou quando, no dia 21, tomamos conhecimento dos festejos.

Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 20 de abril de 2024. A Relíquia — Praxedes.

Institivamente descemos da Via Carlo Alberto para a Via di S. Vito, porque ali está a fachada da Igreja, na qual se localiza uma pequena e charmosa fonte, a Fontana dei Monti. Foi quando, virada a esquina e de fronte à Fontana, nos deparamos com o presente que foi a inesperada visão da Porta Esquilina tal como ela existira na Roma Antiga e Imperial. Na foto vemos o lado posterior da Porta, o qual não foi a primeira face que vislumbramos (a externa), mas a face que a representa melhor (na minha opinião). Chamada Arco di Gallieno, a Porta Esquilina pertencera às Muralhas Sevilinas, tal como terminadas por Sérvio Túlio, remontando, portanto e em suas fundações, ao Séc. VI a.C. Essa Porta instava nos limites nordestes de Roma e separava Roma do topo do Esquilino, a leste, de onde viemos e que, na época da República, servia de cemitério. Ao norte da Porta estava o áger, uma fortificação auxiliar da Muralha Serviana, e ao sudoeste estavam os pontos dos quais partimos na caminhada do dia 20 de abril: o Palácio de Nero, as Termas de Trajano e as Termas de Tito. Duas das principais estradas de Roma partiam da Porta: a Via Labicana e a Via Prenestina, separando-se após a passagem pelas Muralhas Aurelianas, mais recentes e próximas do Ninfeu de Alexandre.

Foto tirada pelo autor do presente texto no dia 20 de abril de 2024. A Porta Esquilina — face interna.

Segundo uma antiquíssima tradição romana, certos tipos de assassinato só poderiam ocorrer fora das muralhas da Cidade, de maneira que a Porta Esquilina está repleta de associações com homicídios famosos. Tanto Cícero quanto Tácito falam de execuções d’além da Porta. A importância simbólica e prática da Porta, como uma das principais entradas da Cidade, aparece em textos de Lívio, de Plutarco e de Cícero, nesses casos associada a estratégias de defesa contra atacantes etruscos, contra a rebelião do general Sulo e ao culto cívico dos Triunfos, um rito romano que servia para homenagear o general e as tropas vitoriosos em campanhas militares, tendo sob a Porta uma entrada triunfal. A Porta, para chegar ao Arco di Gallieno, foi de um simples arco no Séc. I d.C. para uma estrutura de 8.8m de altura no Séc. III d.C., uma ampliação realizada em 262 d.C. por Marco Aurélio Vitor em homenagem ao Imperador Galiano — a reforma de Marco Aurélio incluía mais dois arcos, dos quais apenas o arco central sobreviveu. Entre a obra original de Sérvio e a ampliação de Marco Aurélio, a Porta fora reformada em rocha perene pelo Imperador Augusto.

Do mergulho nos silentes jardins do Monte Ópio à passagem sob o Arco di Gallieno, dada logo após a descida à Cripta de São Vito e não muito depois do vislumbre da Porta Mágica, os espíritos meu e da Gabrielle foram indelevelmente marcados pelo vulto dos Séculos e da Civilização — uma marca diferente daquela da impressão do colossal, do ciclópico, do titânico que nos arrebatou na chegada à Cidade Antiga.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 1º de maio de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em antropologia e crítica literária. Casado com Gabrielle Castoldi.