A Prática das Virtudes como Terapia
da Logoterapia a Jesus Cristo
Francis Schaeffer (2007), um dos maiores apologistas cristãos do Século XX, diagnosticou o cerne dos problemas psicológicos e espirituais enfrentados pelo ser humano como desdobramento da ruptura adâmica com o Criador. Em termos de estrutura física, o homem realmente consegue olhar para baixo de si, para os animais, as plantas e os minerais, para a Criação em geral, e encontrar suficientes conexões para entender algo de sua constituição e de seu funcionamento. Mas há um problema: dotado de razão e integrado na qualidade de uma pessoa, se procurar por propósito na Criação material, fatalmente se frustrará. Não há nenhuma pessoalidade e, tampouco, quaisquer outros seres dotados de razão abaixo do homem. Enquanto racional e espiritual, o homem precisa encontrar um sentido para si, para justificar-se e direcionar a sua vida numa vereda de propósitos. Olha para baixo e não encontra explicação e sentido para sua pessoalidade. Olha para cima e, sem Deus, os céus estão fechados.
O famoso psicólogo austríaco Viktor Frankl (2016), conhecido por ter desenvolvido a sua psicologia, a logoterapia, desde a experiência nos campos de concentração nazistas, pensou o homem como uma “unitas multiplex”, ou seja: uma unidade integrada de diferentes camadas ontológicas, ou de naturezas distintas. O homem é biológico, pois possui corpo físico; psicológico, pois possui uma personalidade pessoal; e espiritual, já que a integração das duas camadas anteriores não aconteceria sem uma terceira. As camadas biológica, ou corporal, e psicológica, ou anímica, vivem sob uma tensão de interesses: cada uma carrega seus próprios apetites e elas competem entre si para monopolizar a existência do sujeito, com a finalidade de se suprirem absolutamente. São, pois, dois sistemas fechados e autorreferentes: ontologicamente distintos, o homem terá de ceder ao império de um ou de outro, sem um equilíbrio possível. O governo dos apetites do corpo é a ruína da psique e o governo das emoções e ideias distorcidas é a ruína do corpo. Por isso Frankl conclui que precisa haver aquilo que temos por espírito, que rompe a dialética corpo e a mente, absorvendo-as em uma unidade espiritual que não se sustenta pela autorreferência. O espírito é a qualidade autotranscendente do homem, que o coloca para fora de si e o impulsiona a procurar por sentido através de realizações, da entrega a atividades, pessoas e projetos. A camada espiritual integra corpo e mente numa busca exterior, de significado existencial, conforme os apetites do espírito.
O governo dos apetites do corpo é a ruína da psique e o governo das emoções e ideias distorcidas é a ruína do corpo
Como vimos em Schaeffer, contudo, sem um Deus Pessoal acima de nós, para nos entregarmos, só resta o que está abaixo de nossa pessoalidade e que corresponde, tão somente, à nossa vida biológica e às emoções mais elementares. O impulso autotranscendente, sem um objeto adequado para devoção, irá sucumbir à idolatria, que é a atribuição de qualidades ilegítimas em coisas delas desprovidas: se procurará sentido para a pessoalidade humana em ídolos feitos de pedra ou madeira, em totens de animais, dotando-os de uma humanidade divinizada que não possuem, pois o sentido deve vir de algo posto acima de nós, ou em atividades que, embriagando nosso corpo e dominando nossas emoções, pareçam nos dar algum nível momentâneo de sentido e de completude. Como vimos com Frankl, por sermos espirituais, não podemos encontrar sentido em nós mesmos, num fechamento autorreferente, mas sempre em algo que esteja além de nós.
A tradição cristã, desde o contexto dos Pais da Igreja (AZEVEDO JR., 2009), reconheceu nos desvios idólatras do corpo e da psique uma matriz espiritual, entendendo diversas doenças que abatem-nos desde os apetites e emoções como doenças espirituais. A primeira delas, que é a mãe de todas as demais, é a do amor-próprio desenraizado, chamado de filáucia. O amor-próprio, quando contido, é importante, pois todos precisamos ansiar por nossa autopreservação, pelo saciamento de alguns apetites e pelo crescimento pessoal. O problema é quando, desligados da fonte, que é o Criador, e desprovidos de legítimo propósito existencial, ficamos só com o amor-próprio, sem que este se veja retido e ordenado por um sentido claro. A filáucia sem propósito leva-nos a procurar saciar os apelos de significado do nosso espírito pela entrega a paixões de todo o tipo, qualquer ídolo que pareça nos produzir algum nível de segurança e que prometa, falsamente, a completude que perdemos quando nos afastamos de Deus. Por isso a má filáucia acaba transformando o amor-próprio num impulso de autodestruição: o amor irracional por nós mesmos, chamado de álogos, ou loucura, nos faz confundir o prazer, que é o saciamento dos apetites carnais, com a felicidade, que é a realização espiritual, de maneira que nos prostramos ao jugo do prazer, mais prontamente acessível. Toda a qualidade de vício corrosivo para a vinda orgânica e mental pode vir desse desvio espiritual.
Da filáucia, a doença primeira, emergem outras três doenças espirituais básicas, de onde ganham substância todas as demais: a gula, ou gastrimargia, a avareza, ou filargíria, e a vaidade, ou cenodoxia. O descontrole dos apetites do corpo e da psique fatalmente se cristalizará ao redor de uma ou mais dessas moléstias. No Deserto, Cristo foi tentado por Satanás justamente nelas três: a primeira tentação, dos pães, que consta em Lucas 4:3, diz respeito à gastrimargia; a tentação seguinte, da oferta de todas as riquezas e reinos do mundo (Lc 4:6–7), fala da filargíria; a terceira, da pressão para que Jesus saltasse do Pináculo do Templo para que os anjos o segurassem (Lc 4:9–11), aponta para a cenodoxia, traduzida por vanglória pela ostentação de supostos privilégios. Cristo não falhou porque, enquanto Filho de Deus, não padecia da má filáucia: o Seu amor-próprio não estava distante do propósito e do significado estabelecidos pelo Pai.
Como essas três doenças da má filáucia se desenvolvem em todos os demais desvios espirituais? Segundo a sabedoria clássica cristã, não se pode cair na luxúria, ou pornéia, que é uma distorção dos apetites sexuais, sem antes se perder na gula, a esfera anterior e mais geral dos apetites do corpo. Também a ira, ou thymós, aparecerá mais facilmente no coração daquele que luta por comida (gula), riqueza (avareza) e glória (vaidade). A tristeza, ou lýpe, se abate sobre quem foi privado daquilo que acende a cólera do irado. A soberba, ou hyperefanía, enfim, emerge do amor avarento ao dinheiro. A filáucia nos leva a buscar a felicidade, só que sem Deus sobram apenas os prazeres a serem obtidos na criatura: comida, dinheiro e fama. A busca da felicidade pela comida pode desembocar na luxúria, a busca da felicidade na fama pode inflar o orgulho. O idólatra sempre organizará a sua vida ao redor de uma ou mais dessas três estruturas demoníacas básicas, de onde enfrentará outras doenças correspondentes.
Qual é, pois, a cura para a doença primeira, a má filáucia, e a sua ninhada infernal? Naturalmente, o primeiro passo está na superação da idolatria, levantando a cabeça das coisas que rastejam pelo chão para olhar pro alto, pro Céu, pra quem está acima de nós, para o Deus Pessoal, que nos dá verdadeiros significado e propósito existenciais, como objeto legítimo de nosso impulso autotranscendente. Ainda assim, certas crenças distorcidas podem não ser facilmente superadas, por se enraizaram em nós como hábito, levando-nos a seguir recaindo em certos pecados e retrocedendo aos velhos ídolos. O que podemos fazer, então? Há uma diferença entre compreender algo e converter-se para ele: mesmo sabendo o que é correto, muitos vícios de comportamento e de pensamento continuam vivendo em nós até serem convertidos, como convertido foi nosso coração. Eis a luta.
Pascal Bernardin (2013) nos ensina que um caminho para a mudança de pensamento e para a superação de crenças indesejáveis está numa mudança voluntária e disciplinada de comportamento. Como somos voltados para um sentido ou propósito, fazer algo que contradiz nossas crenças distorcidas e pensamentos viciados gera um tipo de tensão mental, chamada de dissonância cognitiva, que tende a se resolver pela adequação de nossas crenças ao novo comportamento, de modo que as crenças, outrora distorcidas, se alteram e redimem. É similar ao que o psicólogo canadense Jordan Peterson (2018) demonstra. Se somos, por exemplo, acometidos por um quadro de tristeza baseado numa autoimagem de inferioridade pela incapacidade de conquistarmos determinados propósitos, tendemos a adequar nosso corpo ao nosso estado de espírito, andando de cabeça baixa, costas curvadas, semblante abatido e com passos tímidos, fazendo com que os outros realmente nos vejam como frágeis e até mesmo inferiores, levando-os a se comportarem diante de nós de maneiras que reforcem em nosso coração essa crença desfavorável a respeito de nós mesmos. Como saída, Peterson sugere o seguinte: mantenhamos as costas eretas, coloquemos os ombros pra trás e ajamos de maneira mais confiante. Isso causará uma impressão mais favorável a nós nas outras pessoas, que se portarão mais respeitosamente diante da gente, levando-nos a nutrir uma nova imagem de quem nós somos, como mais dignos, donde a confiança expressada nos gestos passará a habitar-nos de verdade. O resumo é: tome atitudes diferentes se quiser mudar!
Em Jesus Cristo, contudo, é que temos com mais clareza os recursos para superar todo o vício associado à gula, à avareza e à vaidade: contra cada vício, devemos levantar uma virtude oposta, associada a um comportamento virtuoso. São ações virtuosas que curam-nos das doenças espirituais. Nos Sermão do Monte, três atos que glorificam a Deus são destacados: dar esmolas (Mateus 6:1–4), orar (Mt 6:5–15) e jejuar (Mt 6:16–18). Veja bem: se quero alterar hábitos pecaminosos atrelados à avareza, nada mais eficaz do que destacar a virtude da generosidade por meio do ato de dar esmolas, de me disciplinar a um desprendimento cada vez maior dos bens materiais; se quero redimir meus afetos vaidosos, nada melhor do que me forçar a declarar verbalmente a minha podridão interior, já que sou pecador, a minha pequenez enquanto criatura e o fato de que, não sendo pela Graça de Deus, eu não teria nada além de condenação eterna; e se anseio por disciplinar meu estômago, o que será mais óbvio do que impôr-me momentos de jejum? Quantas doenças espirituais outras podem ser bem tratadas com essas três práticas! Quão saudáveis poderíamos ser se, alinhados ao nosso Criador, que sabe o que é melhor pra nós, pudéssemos dizer com toda a convicção o que o diz o Filho em João 4:34:
A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou, e realizar a sua obra. (ACF)
AZEVEDO JR., Paulo Ricardo de. Um Olhar que Cura: Terapia das doenças espirituais. São Paulo: Editora Canção Nova, 2009.
BERNARDIN, Pascal. Maquiavel Pedagogo. Campinas, SP: CEDET — Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico, 2013.
FRANKL, Viktor. Psicoterapia e Sentido da Vida. São Paulo: Quadrante, 2016.
PETERSON, Jordan. 12 Regras Para a Vida, Um antídoto para o caos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018.
SCHAEFFER, Francis. O Deus que se Revela, Contra o silêncio e o desespero do homem moderno, podemos de fato conhecer o Deus que intervém. São Paulo: Cultura Cristã, 2007.
Artigo publicado originalmente na Revista Fé Cristã, ano 1, nº 3, publicada em julho de 2020, p. 18–23 — A Prática das Virtudes como Terapia, por Natanael Pedro Castoldi