A Queda da Estrela — Um sonho escatológico

Como pretexto para uma amplificação simbólica junguiana

Natanael Pedro Castoldi
8 min readFeb 8, 2025

O sonho dessa última noite foi decididamente apocalíptico. Era uma noite de céu limpo e estávamos ao ar livre, entre as casas de um bairro, olhando para o firmamento, como quem esperasse algo. Então uma imensa estrela cadente despontou desde o Sul, singrando a Altura e deixando para trás de si um rastro azul. A estrela tinha o aspecto de um cristal de gelo, cheia de ângulos e de agulhas, e rasgava o véu noturno não como presságio, mas já como juízo. Nalguns momentos ela irradiou mudos pulsos luminosos que desceram como ondas de explosão. Alguns de nós se protegeram. A sua queda demarcou o Fim do Mundo.

A praga despejada pela Estrela na humanidade tornou os homens como que mortos-vivos, atingindo primeiro aos afetados pela sua radiação, em seguida aos que tomavam contato com os corpos-secos. Já era dia quando eu, agora sozinho, passei a fugir das massas cadavéricas, saindo do intrincado bairro na direção da subida de um íngreme outeiro — era como se a invisível moléstia da Estrela caída se distribuísse respeitando a força gravitacional, preferindo se acumular nas áreas profundas, para então subir lentamente, como uma inundação, para as partes altas. Notei, também, que os mortos tinham dificuldade de combater a “anthelkein”, a força primitiva que puxa para baixo, e de subir ladeiras. A escalada pelas ruas da encosta foi difícil, principalmente porque o sol estava escaldante, e eu notei que um ou outro dos cadáveres tentava me seguir, para me predar.

Quase no topo, busquei ativamente por alguma casa que parecesse especialmente preparada para dificultar o acesso dos mortos. Quer dizer: que tivesse boa cerca e que ostentasse uma entrada antecedida por uma rampa em vertiginoso aclive. Minha intenção era me refugiar numa tal fortaleza e, se possível, encontrar uma quantidade significativa de algum tipo de óleo, para que fosse derramado na rampa e pudesse descer pela rua, escorrendo para baixo o tanto quanto fosse possível, para tornar a subida suficientemente escorregadia para os trôpegos condenados.

Entre três casas de que me lembro, uma me chamou a atenção, todavia ela já estava habitada por duas moradoras, mãe e filha. Pude entrar. Mas não fui o único que esteve rodeando aquele lugar. O fim do sonho traz a cerca derrubada e a cena de um assassinato que eu pretendi conter, mas não consegui, e a transformação da mulher em morta-viva.

… donde a Queda da Estrela estar sempre ligada à Queda do Rei.

Aplicando a técnica junguiana da amplificação simbólica, noto aqui alguns elementos de largo interesse. A Queda da Estrela é um motivo universal, tradicionalmente ligado à queda de um anjo de grande patente, de superior hierarquia. Esse é o motivo de tal símbolo ser comumente utilizado nos antigos oráculos para anunciar ou aludir à queda de um grande rei — até porque as civilizações do Levante, sobretudo de matiz sumeriano, identificavam o nascimento de um rei com o nascimento de uma estrela e identificavam determinada estrela com o rei nascido, como se tal estrela fosse sua contraparte celeste e a demarcadora do seu destino terrestre, donde a Queda da Estrela estar sempre ligada à Queda do Rei. Resgato aqui um insight que tive ao redigir a análise até aqui: Estrelas são associadas a anjos, donde a Estrela de Gelo do sonho me remeter facilmente a uma das Sete Trombetas do Apocalipse, como se verá mais abaixo.

Nas Escrituras, o rei é caído após ter pretendido se elevar a um patamar divinal, para tal se valendo de um expediente titânico, isto é: de astúcia vil, de estratagemas, de poder militar, de riqueza e de feitiçaria. Ninrode é o grande arquétipo aqui, considerado na tradição oriental como o arquiteto de Babel, vista em determinados lugares como projetada segundo intenções de vingança contra Deus, que abriu as comportas do Céu e do Inferno para o Dilúvio, e derrubada pelo Senhor como uma punição exemplar contra tal presunção. Um mito filosófico platônico é análogo: o homem primevo, de formato circular — uma totalidade -, terrível em força e poder, se ensoberbeceu e atacou aos deuses, sendo por eles derrotado. Voltando à Bíblia, temos o exemplo de Faraó, sepultado no fundo dos mares, e de Nabucodonosor, transtornado em besta e recaído na condição dos jumentos. Mais impressionantes do que esses relatos, são os oráculos de Isaías 14 e de Ezequiel 28, os quais proclamam juízos contra os reis da Babilônia e de Tiro através do simbolismo da Queda da Estrela, que é segundo uma tradição antiga, e bíblica, da Queda de Satanás, um anjo elevado, ou querubim.

… proclamam juízos contra os reis da Babilônia e de Tiro através do simbolismo da Queda da Estrela…

De toda a variedade de expressões do motivo da Queda da Estrela, o único que me veio à mente assim que acordei, todavia, é um outro, diretamente ligado ao tema da Queda do Rei: quando a Estrela de Belém se formou em 7 a.C., conjugando Júpiter (“sedek” — justiça) e Saturno (Poder Planetário do Sábado) por três vezes no Signo de Peixes (signo da Palestina), ficara evidente que era nascido um novo rei dos judeus, o rei messiânico já aguardado, e que este rei, eleito de Deus, traria a reta Justiça. Segundo Margaret Barker (Natal), Herodes perturbou-se muito com o sinal da Estrela, pois não devia ser de seu desconhecimento, e nem do desconhecimento dos seus sábios, que a Estrela do Messias, que é Justiça, cairia sobre o Antigo Império do Mal — isso é dito por Inácio de Antioquia por volta do ano 100. É notório apontar que um profeta essênio havia previsto o término do reinado de Herodes para 7 a.C., o ano da tripla conjunção da Estrela de Belém, recaindo sobre ele o peso do Juízo divino exposto em Amós 5, tendo em vista sobretudo o versículo 7: ele arrancara a retidão da terra, envenenando a Justiça e a transformando em “absinto”, donde a perspectiva de que a Estrela do Messias viria sobre ele como uma Estrela de Juízo.

E o terceiro anjo tocou a sua trombeta, e caiu do céu uma grande estrela ardendo como uma tocha, e caiu sobre a terça parte dos rios, e sobre as fontes das águas. E o nome da estrela era Absinto, e a terça parte das águas tornou-se em absinto, e muitos homens morreram das águas, porque se tornaram amargas.
- Apocalipse 8:10–11

O Sul, local de partida da Estrela, convém observar, é o lócus, na cosmologia tradicional judaica, da origem das águas atmosféricas doces, embora seja considerado um lugar quente, no que polariza com o Norte, terra de escuridão dos celeiros de neve, de granizo e dos vendavais, e é para lá que vai a Estrela. Evidentemente, no Hemisfério Sul a perspectiva se inverte, embora eu opere melhor — isto é: mais naturalmente — no caminho cosmológico do Velho Mundo, segundo o qual o Sul é representativo do Oceano, da massa inabarcável das águas salgadas, chegando até o Polo Sul, onde está o Monte Purgatório. Nas tradições pagãs antigas, a desembocadura do Mediterrâneo no Atlântico, através dos Pilares de Hércules e na direção do Poente, era um verdadeiro caminho dos mortos. Notadamente Atlântida, o presunçoso reino julgado pelos deuses e submerso em eras passadas, estaria localizado em alguma parte do Oceano para além de Társis, ou Tartesso, e ao norte da África. Na Península Ibérica, o Algarve era uma espécie de Terra dos Mortos e se reconhecia nas cavernas e rios subterrâneos dos despenhadeiros de Sagres, onde esteve um importante templo de Saturno, considerado um portal do Submundo, os canais de passagem das almas dos mortos para o Oceano e para o Sul.

Ao Norte Extremo, às avessas do Sul, estivera localizada a terra paradisíaca de Hiperbórea, uma região de imortais na qual o mito acrescentou Apolo. Em Do Estado Social do Homem (1822), de Antoine Fabre D’Olivet, conforme Eco (História das Terras e Lugares Lendários), os “gibborim” de Gênesis 6, os gigantes e heróis valentes antediluvianos, jazem interpretados como sendo os próprios hiperbóreos, e sua altivez titânica, sua opressão ciclópica sobre os homens, sendo eles os rebentos monstruosos da coabitação das Estrelas, ou anjos, com as filhas de Caim — donde reis sobre a Terra -, foram razões suficientes para o Dilúvio. Uma tradição islamita os associou a Ninrode e, dos seus remanescentes, à construção de Babel. O significado originário de “titã” é “rei”, defende W. F. Otto, e os titãs foram os regentes primordiais dos Poderes Planetários da Semana, que são as Estrelas Móveis, estabelecidos por Eurínome desde o meio do Oceano. A Queda dos Titãs é análoga à Queda dos Nephilim, como a derrubada do “Império Maligno Antigo” e a substituição de seus senhores por um Novo Império e um Novo Reinado. A Queda dos Titãs e dos Nephilim é a Queda de Estrelas e a Descida da Estrela da Justiça é a vinda do Juízo Celeste contra o “sistema de trevas do Mundo” — vem no Dilúvio e vem no Apocalipse, também revolvendo as águas do Oceano, que se torna um Mar de Mortos, como se o Submundo, o Abismo, subisse à superfície, atraído para cima pela descida do Céu. Eis uma verdadeira reviravolta cósmica!

… quando Cristo desce […] os santos mortos de Jerusalém são levantados.

A Queda da Estrela de Juízo, vendo dessa perspectiva, torna mortos os vivos e torna vivos os mortos. O sentido escatológico disso é o seguinte: são atraídos para Cima os santos e filhos da Luz, e os santos mortos são ressurretos e emergem de suas tumbas, enquanto são atraídos para Baixo os ímpios e filhos das Trevas, e, se vivos na carne, tornados finalmente mortos pelo Juízo. Esse princípio está posto em Mateus 27:52: quando Cristo, a Estrela, desce, caído como morto, os santos mortos de Jerusalém são levantados. Similarmente, quando Cristo, a Estrela, descer na Parúsia, vindo como o verdadeiro Sol, Sua glória fulminará toda a carne corrompida, trazendo ressurreição e Corpo Espiritual aos justos e Morte e condenação eterna aos maus.

Seguindo Voegelin no Evangelho e Cultura, há aqui uma influência platônica, tal como encontrada no famoso Mito da Caverna: há os que são atraídos para o Alto pela força divina, “Helkein”, e há os que são puxados para o Baixo pela força ctônica, “Anthelkein”. Esse norte dá uma tônica filosófica e de aplicação presente ao meu sonho, que passa a transparecer um sentimento profundo sobre a condição atual de nossa sociedade e de suas massas e da necessidade, ou da designação, que é imperativa, de dela se destacar.

Continue o injusto a praticar injustiça; continue o imundo na imundícia; continue o justo a praticar justiça; e continue o santo a santificar-se.
- Apocalipse 22:11

A subida do Monte carrega toda uma tônica de privação iniciática, a elevação da Peste segue um motivo diluviano e a marcha ascensional dos mortos pelas margens da Montanha repercute a rebelião titânica de Ninrode.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 8 de fevereiro de 2025.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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