A Radicalização Cristã do Sacrifício

Uma volta no tema da Morte de Cristo

Natanael Pedro Castoldi
6 min readMay 20, 2024

Do estudo comparativo entre as vidas e as obras de Buda e Jesus Cristo, tal como realizado por Odon Vallet, causou-me grande impressão o que li no tópico sobre o lugar do Sacrifício nas doutrinas de um e de outro. Em ambos os casos, eu o disse noutro dia, houve inversão no sistema sacrificial das religiões primeiras (bramanismo e judaísmo), porque se saiu da hiperênfase na imolação de animais para a anulação completa de sacrifícios substitutivos — ao menos enquanto atos litúrgicos de valor religioso. Em ambos os casos, ainda, substituiu-se o sistema sacrificial da economia primitiva do Sagrado por uma intrincada ética de teor subjetivo, baseada no autossacrifício.

Todavia, as semelhanças terminam aqui: a rejeição búdica do sistema sacrificial brâmane, entre outras, sustenta sua razão na desilusão com relação à “capacidade” que têm os deuses de libertar os homens da dor e do sofrimento, de maneira que o intento de tentar agradá-los é infrutífero, restando, na medida em que não se pode mais recorrer ao amparo divino para a superação do sofrimento, a vereda altamente pessoal de redução da sensibilidade e do desejo, porque estariam ali as causas principais do sofrer — a necessidade e o querer. Embora exista uma espécie de escatologia budista na doutrina da “espiral das existências”, ela em si funciona como um sistema cíclico de evolução espiritual, que se desenvolve ao longo de múltiplas existências pessoais, entre mortes e renascimentos, e tende à conquista da Iluminação conforme se empreendem multigeracionalmente as disciplinas espirituais, tipicamente ascéticas, garantidoras da vitória sobre a própria consciência.

O cristianismo subverte o sistema sacrificial judaico a partir de uma superênfase no valor do Sacrifício…

O cristianismo não conhece a superação do sistema sacrificial judaico em uma desconfiança na capacidade de Deus de responder às necessidades dos homens — pelo contrário! O cristianismo subverte o sistema sacrificial judaico a partir de uma superênfase no valor do Sacrifício, anterior à própria Lei e garantia fundamental da própria Realidade, na medida que a Criação, realizada pelo Verbo de Deus, o Cristo, começa já sobre a Graça e sob a perspectiva do derramamento do Santo Sangue do Cordeiro Eterno. Assim, é pelo Sacrifício de Deus Filho que Deus dá a Sua grande resposta ao sofrimento dos homens — a oferta da Graça e a perspectiva da Vida Eterna. Nisso distinguem-se budismo e cristianismo novamente, porque aquele formulará sua queixa e buscará sua resposta no regime da imanência, enquanto este o fará desde a perspectiva da Transcendência.

O que faz o cristianismo com relação ao sistema sacrificial judaico é o seu desligamento do regime da Lei, tal como ordenado e regido desde a elite sacerdotal, e a recuperação de seu sentido cosmológico arcaico, donde o seu sentido escatológico — antigas figuras de alcance universal estão associadas ao entendimento da Cruz e da Volta, como a Arca e o Dilúvio, e mesmo a Queda de Adão, encarada, então e na ortodoxia, não como a falha de um só homem e com repercussões espirituais imediatas e pessoais, cujas consequências de longo prazo seriam de natureza mais incidental, mas como falha de um só homem com repercussões universais, de tipo cósmico (a Criação inclusa [de algum modo]), e prelúdio para o sacrifício perfeito do Segundo Adão, em igual medida com repercussões universais e de tipo cósmico. Nisso o cristianismo também diverge do Islã, o qual rejeitou o sistema sacrificial que o precedeu, mas vê o pecado de Adão como tendo efeitos circunscritos ao tempo de vida dele (não antevê o Pecado Original [Alimam Abul A’La Maududi — O Islam]), de modo que não demandará um evento sacrificial de tipo universal, já que não identifica o Sacrifício com a própria cosmologia. Acrescentem-se a essas imagens arcaicas aquelas do próprio Êxodo e de antes do empreendimento mosaico, como a imolação do cordeiro pascal para a libertação do Anjo da Morte e a travessia batismal do Mar Vermelho.

… o Corpo de Cristo vive segundo a condição de despojamento de Deus Filho quando de Sua Encarnação…

A ideia que o cristianismo terá do Sacrifício suspende o sistema sacrificial judaico não porque aquele era exagerado, mas porque não era radical o bastante — radical no sentido de chegar ao fundo de si e ao limite de suas próprias implicações, que são necessariamente universais, cósmicas e eternas, atingindo o âmago da própria divindade. Ele havia sucumbido ao regime da horizontalidade (preso ao escopo das “Obras”) e deveria ser lançado contra ele mesmo, para regressar à verticalidade. De fato, como disse o apóstolo Paulo, todo o regime da Lei e de seus sacrifícios foi apenas uma sombra do que se conheceu no Corpo de Cristo enquanto Corpo de Morte e Corpo de Ressurreição, feito de “matéria celestial” — a base da esperança de todos os crentes, que aguardam, tendo já passado pela Morte com Cristo pelo Batismo, desde o qual renasceram espiritualmente com o gérmen da Nova Criatura, a Ressurreição do Corpo. Esperança essa instituída sacramentalmente pelo próprio Senhor Jesus na Santa Ceia — o Seu Sangue Santo, “conhecido desde antes da fundação do mundo”, derramado em benefício dos homens, deveria ser “tomado” todas as vezes em que a Sua assembleia se reunisse, e a própria assembleia deveria, sempre e na ocasião, partir do Seu Corpo e comer da Sua Carne (eis o Vinho e o Pão) em memória do que foi feito “de uma vez por todas” e, enquanto afirmação da condição de parte do Corpo de Cristo, na obstinada confirmação da esperança da Sua Volta, que é quando todos os Seus serão também transformados. Até lá, até a esperança da Glória, o Corpo de Cristo se impõe no mundo, que O odeia, como motivo de escândalo e vive segundo a condição de despojamento de Deus Filho quando de Sua Encarnação, assumindo todas as perseguições e todos os sofrimentos como semelhança e imitação de Cristo — e, assim, mortificam-se diariamente os membros da Carne, já sentenciada de morte na aliança firmada no Batismo e testemunhada pela congregação. Eis aqui a excelência dos mártires, tão primitivamente admirados, que cristãos já no tempo de Paulo se batizavam em homenagem a eles, como se substituíssem-nos e de antemão aguardassem para si o mesmo destino, a saber, o da espada e da cruz.

Honestamente, desconheço qualquer religião que tenha posto o Sangue Divino e o Sacrifício em um lugar tão absoluto, ao ponto de lançar um paradoxo sobre o sistema sacrificial vigente, suspendê-lo dialeticamente como ora inútil e quebrá-lo por inteiro — “rasgando-o de alto a baixo”. Nem os judeus o entenderam, por mais zelosos que chegassem a ser, e nem os romanos, que souberam usar a centralidade eucarística do culto cristão como propaganda contra os seguidores d’O Caminho.

… ao ponto de lançar um paradoxo sobre o sistema sacrificial vigente e quebrá-lo por inteiro …

É fácil matar, mas impossível dar a vida, de onde se segue que os sacrifícios são inúteis — Buda aos brâmanes (Odon Vallet)

Mas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos, e foi feito as primícias dos que dormem.
Porque assim como a morte veio por um homem, também a ressurreição dos mortos veio por um homem. Porque, assim como todos morrem em Adão, assim também todos serão vivificados em Cristo.
[…]
Assim está também escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito em alma vivente; o último Adão em espírito vivificante. / 1 Co 15:20–22 e 45

E, assim como aos homens está ordenado morrer uma só vez, vindo, depois disso o Juízo, assim também Cristo foi oferecido em sacrifício uma única vez, para tirar os pecados de muitas pessoas; e aparecerá segunda vez, não mais para eximir o pecado, mas para brindar salvação a todos que o aguardam! / Hb 9:27–28

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 19 de maio de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em antropologia e crítica literária. Casado com Gabrielle Castoldi.