A Realidade é Cristo
Leituras na doutrina do apóstolo Paulo
Devo considerar que minha mudança de disposição espiritual (e nisso incluo a disposição intelectual) começou em 2017, quando abri Colossenses 2:17 na Linguagem de Hoje e li: “A realidade é Cristo”. Imediatamente tornei pública por aqui a minha “descoberta”, que é daquela categoria de coisas bíblicas que Dorothy Sayers entende como de tal modo profundas, que passamos por elas dezenas de vezes antes de sermos despertados para algo que já sabíamos, mas que ainda não nos havia impactado. Nesse dia, todo o meu ser foi abalado. Desde então, essa passagem se firmou como um verdadeiro lema. Foi dela que fui reconduzido, com todo o amor divino, a um gradual realinhamento de meus entendimentos — e toda a minha inteligência foi transformada. Por isso a noite de hoje foi muito especial para mim, quando finalmente me senti preparado para pregar essa passagem à congregação. E, para isso, dissequei versículo por versículo de Colossenses 2.
Vê-se logo no início do capítulo, no versículo 2, que Paulo procura, por meio da epístola, informar aos cristãos de Colossos o tamanho de seu interesse na sua causa, para encorajá-los e vê-los unidos em amor, e enriquecidos pela plenitude da inteligência, donde poderão conhecer o mistério de Deus, que é Cristo. É na vida da congregação, na ligação de amor entre os cristãos e na riqueza do ensino, que a sabedoria de Deus, o Cristo, é dada a conhecer entre os homens. Em Cristo, pois, estão “escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência”, de maneira que aqueles que n’Ele estão por meio da união no amor de Deus, não serão presas fáceis de “palavras persuasivas”. Fica entendido que o pertencimento e a participação na vida da igreja, no ensino e no amor, pelos quais é revelado o mistério de Deus, são a melhor garantia da permanência do cristão na Verdade. São os que estão desligados do Corpo, como os cristãos de Colossos, que estavam divididos entre cristãos convertidos, judaizantes e gnósticos, que as “palavras persuasivas” atingem e convencem.
Na tradução de Frederico Lourenço, o versículo 4 traz o termo “iluda” para as palavras persuasivas. No grego, é comumente usado para designar o mau uso de documentos para a construção de argumentos falaciosos, visando a manipulação das informações para a construção de pretextos intencionados na manutenção de interesses particulares. O que está sendo afirmado aqui é que a Verdade não está restrita aos argumentos, porque, por mais convincentes que sejam, não podem vergar a Realidade — a Verdade está na Realidade e na Revelação, de maneira que só pode ser adulterada se o texto for distorcido e se a Realidade for obscurecida pela vaidade.
Na sequência, temos um melhor esclarecimento sobre o status da Verdade na Igreja: saber sobre Jesus e recebê-Lo não é suficiente, porque o ensino da Verdade dirige-se à Encarnação da Verdade e objetiva a tradução da Verdade na vida da Igreja — é esse o propósito do ensino, porque, afinal, a Verdade não está nas abstrações e nos argumentos, mas na Realidade. Arraigados em Cristo, os cristãos são chamados à abundância em ações de graças — nota-se que o termo grego aqui é “eucaristia”, donde podemos entender que a Verdade ensinada é traduzida e anunciada pela vida da Igreja também em atos litúrgicos, que são símbolos da Eternidade, como o Partir do Pão. A participação na Verdade pela comunhão da Igreja é, repete-se no versículo 8, a proteção do cristão às filosofias e vãs sutilezas das tradições dos homens, que podem predar aqueles que estiverem suscetíveis, predação essa que significa, no original, propriamente tornar escravo do erro. Torna-se escravo do erro quem passa a basear a sua vida em algo que é deste Mundo, nalguma feitura humana, e não naquilo que é maior do que o Mundo.
Isso fica mais claro nos versículos 9 e 10, quando é dito que toda a plenitude da divindade está corporalmente revelada em Cristo, de maneira que n’Ele reside o que está acima do Mundo, e, portanto, é Ele a autoridade sobre todas as coisas. Isso torna absurda a submissão do cristão a algum tipo de filosofia ou sutileza humanas, porque, nesse caso, ele estaria se submetendo a alguma autoridade inferior, imanente, e deixando de se prostrar ao próprio Senhor do Universo. Veja bem, em acordo com versículo 11: o homem pode se submeter à circuncisão da carne, conforme a Lei e a tradição humana, ou se submeter à circuncisão de Cristo, realizada pela recapitulação de Sua Morte e de Sua Ressurreição através do Batismo. Foi n’Ele, que é autoridade sobre todas as coisas, e na Sua Cruz, que os decretos do Mundo, pelos quais estivemos condenados, foram anulados. Como Ele subjugou todos os poderes do Mundo pela Cruz, não insta nas coisas do Mundo nada que nos possa aprisionar.
É por essa razão, seguindo no versículo 16, que os costumes dos homens e a Lei, sob Cristo, não podem mais tecer decretos contra nós. Aliás, toda a sabedoria humana e a própria Lei foram apenas sombra e tipo daquilo que foi plenificado em Cristo — a circuncisão veterotestamentária era, portanto, um fragmento pálido e ineficaz da Circuncisão de Cristo, por exemplo. Dessa maneira, é estupidez firmar a vida em esforços humanos de ascese, tentativas ascensionais de elevação espiritual pela filosofia e a realização de boas obras, quando temos clareza de que tudo isso é respingo da Realidade, que é o Corpo de Cristo (v. 17). Convém, portanto, estar alicerçado no Cabeça, a partir do qual toda a obra e toda a sabedoria encontram contexto e significado, bem articulados ao redor do centro da Realidade. Que absurdo seria suster a esperança em um dos aspectos do Mundo! Nota-se como Paulo utiliza no versículo 19, quando fala a respeito disso, a sua linguagem habitual para se referir à Igreja, e como sabemos que o Partir do Pão e o Batismo foram estabelecidos por Cristo como imperativos fundantes do Corpo, que é a Igreja, devemos entender que a capacidade do cristão de ordenar sua vida ao redor do Cabeça, da autoridade sobre tudo, depende de sua integração na congregação dos crentes, porque é no culto que as riquezas da sabedoria de Deus são manifestas e nas quais se pode participar.
Se, conforme anunciado no Batismo, ministrado e testemunhado na Igreja, morremos e renascemos com Cristo, e para isso não dependemos das coisas do Mundo, seja Lei ou sabedoria humana, por qual razão, então, buscaríamos nos pôr debaixo delas, como se devêssemos alguma coisa ao Mundo e aos seus decretos? Renascidos em Cristo, que é maior do que o Mundo, não devemos mais viver como se fôssemos do Mundo, subordinados à ordenanças baseadas no uso daquilo que é perecível, porque não há nada no Mundo que tenha efeito real e duradouro contra as concupiscências da carne, e a tentativa de controlar e vencer o Mundo por esforço próprio só pode culminar em mais vaidade. Se urgiu sermos resgatados por Deus, que é maior do que o Mundo, quão terrível é voltarmos à dependência das coisas do Mundo, achando que nelas garantiremos uma salvação que já nos foi dada pela Graça!
A análise de Colossenses 2 abre a possibilidade de reduzirmos o capítulo a alguns tópicos principais:
- Cristo é a plenitude do conhecimento de Deus;
- As filosofias humanas buscam dominar a Cristo, porque afirmam sobre as Escrituras aquilo que elas não dizem apenas para justificar os seus próprios caminhos;
- Cristo, pela Sua Vida, Morte e Ressurreição revela, na vida da Igreja, o tesouro da sabedoria de Deus;
- Essa sabedoria de Deus anuncia que, em Cristo, são plenificadas todas as coisas, por isso Ele está acima e é Senhor de tudo;
- O conhecimento de Cristo é dispensado à Igreja por meio do ensino e da vida em comum, sendo Ele, a sabedoria de Deus, o exclusivo fundamento da Igreja, o Seu Corpo;
- A Igreja, portanto, está alicerçada na Realidade. Nela se realiza a plenitude da sabedoria de Deus, por meio da vida do Corpo, que está articulada à vida de Cristo, o Cabeça. O que veio antes, dos costumes à Lei, não era mais do que sombra e tipo.
… o Deus Invisível se fez conhecer pela Encarnação de Seu Filho e que, no Corpo de Cristo, está a síntese e a substância do Mundo
O cerne de todo esse entendimento depende de nos voltarmos para o versículo 17 e avaliarmos o seu significado. Como antecipado, na NTLH “corpo de Cristo” é traduzido como “a realidade é Cristo”. Uma tradução para o inglês traz o termo “substância”, compatível com o grego para “corpo”, que é “soma”, precisamente: realidade enquanto oposto de irrealidade, ou sombra, que é aquilo que não tem substância em si mesmo, mas é projetado por um corpo. Paulo, aqui, utiliza algo do platonismo, porque Realidade, ou Soma, é análogo ao platônico Mundo das Formas, do qual o Mundo Visível, aquele das aparências, é uma pálida sombra. Filon, o judeu helenista de Alexandria, afirmava que o Deus Invisível se fazia conhecer através das sombras do visível. O que o apóstolo está ensinando aqui é que o Deus Invisível se fez conhecer pela Encarnação de Seu Filho e que, no Corpo de Cristo, está a síntese e a substância do Mundo — que o Corpo é a própria Realidade, ou o fundamento de todas as coisas, ou, nos termos da filosofia, o Ser. A aplicação de Paulo, todavia, é tanto para aquilo que os filósofos conseguiram descobrir, quanto para aquilo que a Lei judaica representou: sombra e anúncio daquilo que é finalmente revelado em Jesus. Por isso Platão, quando chegou à Forma, estava à sombra de Cristo, mas não podia vê-Lo, embora não tenha mentido: ele apenas não pôde chamar de Cristo à Forma, de modo que o seu pensamento é uma preparação para o Evangelho. Similarmente, os rituais e a liturgia do Templo do Antigo Testamento eram um mero esquema das verdades redentivas do Novo Testamento.
Aqui podemos considerar aquilo que é dito em 1 Pedro 1:17–20 a respeito do Sangue do Cordeiro: conhecido desde antes da fundação do Mundo, o precioso Sangue manifestou-se, finalmente, na Cruz. Está implícito que o Mundo, criado no e pelo Verbo de Deus, depois Encarnado como o Cristo, foi erguido diretamente sobre a Graça, com a eterna previsão da Redenção, efetivada, enfim, no tempo histórico. Sendo o Sangue do Cordeiro conhecido desde antes da Criação, deve-se compreender que a liturgia vetertorestamentária, do derramamento de sangue no altar para a remissão dos pecados, possuía efetividade parcial em função de ser a sombra do Sangue Eterno — era parcial, por isso precisava ser repetida seguidamente, até que o sacrifício para o qual ela apontava fosse efetivado na Cruz, um sacrifício pleno, porque o Sangue Eterno finalmente foi derramado no Mundo, e, por conseguinte, jamais repetível. Daí, uma vez salvo em Cristo, ser tolice o homem voltar a se submeter às parcialidades.
Mas, se o Sangue Eterno estava antes da Criação do Mundo, e por isso a liturgia do Templo existiu e funcionou, e se Ele foi derramado na história, deve-se considerar que o Sangue Eterno estará no final de tudo, tal como Cristo é o Senhor de tudo. Assim, o Corpo de Cristo é a Realidade num sentido cosmogônico (porque é a causa do Mundo), num sentido cosmológico (porque é a substância do Mundo) e num sentido escatológico (porque é a finalidade do Mundo). Eschaton é, de fato, “a última coisa”, o objeto da esperança, e veio no Ministério, na Paixão e no Triunfo de Cristo, de maneira que pode ser pensado como Eschatos, que é a Última Pessoa — o Primeiro e o Último de Apocalipse 1:7–8, que estava no Início e que estará no Fim, quando descer em Corpo Glorioso das nuvens na Parousia. É o Corpo Glorioso de Cristo, mostrado na Ressurreição, a revelação plena da Realidade na Carne, ou a “plenitude da divindade corporalmente”. O Corpo Glorioso, visto pelos apóstolos na Palestina do início da Era Cristã, foi a própria Realidade pisando na Terra e o começo da Nova Criação dentro da Velha. Esse Corpo Glorioso é similar ao que teremos quando nós mesmos, após a Parousia, formos ressuscitados corporalmente (1 Co 15:46).
Podemos concluir, do acima arrazoado:
- Cristo é o fundamento da Criação, a base da História e o início da Nova Criação, apresentada à Velha pelo Seu Corpo Glorioso e inaugurada pela Igreja, o Seu Corpo;
- O conhecimento da Verdade, que é Cristo, está manifesto na vida orgânica da Igreja, no amor dos irmãos, no ensino, no Partir do Pão e no Batismo, que são memórias do que foi feito em Jesus, proclamação da Substância, anúncio do Eschaton e participação na Realidade;
- A Verdade do Mundo está, por conseguinte, na Igreja. É a Igreja, afinal, a única que vê a Bíblia toda assentada em Cristo, não distorcendo sua mensagem segundo a sabedoria dos homens.
Tais descobertas hão de nos conduzir, enfim, para quatro disposições de espírito, que devemos nutrir na condição de cristãos de e participantes da Realidade, que é Cristo:
- Confiança: enquanto Corpo de Cristo, estamos em posse da Verdade e somos, hoje, o início da Nova Criação. Nos encontramos, como Igreja e na posse da Verdade, acima dos fatos, acima da Cultura, acima da Ciência, acima dos Governos, acima de todas as tradições dos homens. Por isso não nos cabe temer as vãs filosofias!
- Semelhança: o Corpo de Cristo é a Verdade no Mundo, por isso devemos nos tornar parecidos com Ele pela retidão, já que somos Seus embaixadores (2 Co 5:20). Participamos da Verdade e, por conseguinte, o que nos cabe é mais importante do que tudo o que há no Mundo: pregar o Evangelho.
- Pujança: Cristo é a Realidade e tudo é d’Ele. Ele é a autoridade sobre o Mundo. Somos Seu Corpo e o Mundo é nosso, porque, n’Ele, não estamos aprisionados a nada! Marchemos, portanto, alegres e confiantes no Mundo! Veja bem: em Apocalipse 5:13 toda a Criação louva ao Pai e ao Cordeiro. O Mundo é d’Ele, e nós, já que Ele tudo santificou, podemos “matar e comer” aquilo que está servido na vastidão da Criação (At 11:6–9).
- Esperança: Corpo de Cristo, somos início da Nova Criação. Somos, pois, Povo do Senhor do Mundo e, portanto, não devemos temer nada. N’Ele já fomos feitos nova criatura (2 Co 5:17). N’Ele nos tornamos herdeiros da Terra (Sl 37:29). N’Ele julgaremos o Mundo (1 Co 6:2)!
“Tenho-vos dito isto, para que em mim tenhais paz; no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo.” Jo 16:33
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 25 de julho de 2022.