A Satanidade Humana

Elementos de hamartiologia e escatologia

Natanael Pedro Castoldi
4 min readJul 6, 2023

Quando o Ocidente, no Iluminismo, afirmou-se enquanto Civilização Ocidental e associou a ela um conceito de progressismo técnico e moral, entendo que o aumento de “cultura” ou de ciência e, portanto, de domínio da Natureza, resultaria num concomitante desenvolvimento da bondade humana, tornou-se terrivelmente ingênuo com relação à realidade do Mal. Perdeu de perspectiva, e talvez por isso terminou nas atrocidades tecnológicas das Grandes Guerras, que o Mal também é, por assim dizer, “civilizacional”. Quando o homem medieval pensava no Império de Satã, compreendia que o Mal era supremamente organizado, que atuava enquanto um corpo invasor ordenado, de legiões coesas e bem comandadas por Lúcifer, com propósitos sólidos e sistematicamente perseguidos — de modo à ordem da Igreja visível parecer muitíssimo frágil e consideravelmente pequena.

N’O Paraíso Perdido, Milton nutre esse entendimento quando descreve como os maiorais do Inferno, das mais altas patentes dos exércitos de Satã, assumem o lugar de divindades tutelares e proeminentes nos diversos povos pagãos do mundo. Subentende-se disso que esses generais demoníacos levaram consigo um tipo de ordenamento político, econômico e cultural, mas numa linha contrária à da Lei de Deus. Esse é o entendimento escatológico de Anomia, característica do Reino do Anticristo: não é meramente a ausência de lei e de ordem, mas o estabelecimento de uma lei e de uma ordem contrárias à vontade do Senhor — como os povos cananeus, que organizavam parte de sua vida pública ao redor do infant1cídio e da prostituição ritual. A Anomia está relacionada à negação dos Sete Preceitos Noáquicos, que são como uma espécie de Lei Natural pós-Diluviana: os institutos dos tribunais, a proibição da blasfêmia, a idolatria, o incesto, o derramamento de sangue, o roubo e a violência contra os animais. Noutros termos: a negação da reta Justiça, a propagação da blasfêmia, o culto aos ídolos, intercurso sexual antinatural (tome Natureza no sentido filosófico de Natureza Humana), o homicídio (que inclui o infant1cídio), a violação da propriedade (lembre da Vinha de Nabote) e a maldade perversa contra a Criação.

Isso leva à consideração de que o Império de Satã não é meramente uma negação completa do Ser, ou de tudo o que há, porque a existência dos anjos caídos é ela mesma uma dádiva de Deus, mas o interesse de tomar o controle da Criação e de redefini-la para propósitos luciferianos, ou titânicos — eis o coração da maldade, porque quer afastar as criaturas do Criador, o que é uma impossibilidade ontológica, que se obtém apenas parcialmente através do caos, que é a desordem, ou a infusão parcial de Não-Ser. É notável como Satã e suas legiões, desprovidos da Graça, não conseguem adentrar exaustivamente nas profundezas de si mesmos e na compreensão completa de sua condição de maldade e de pecado, que conduziria ao arrependimento — sem a Graça, não podem arrepender-se e não podem, portanto, vislumbrar a vastidão da própria miséria e da própria vilania (porque Satanás não é o Mal Absoluto, já que isso não existe), donde hão de sustentar até o fim seu empreendimento fracassado, com expectativas de vitória e com todas as justificativas que estão ao alcance do orgulho que jaz na máxima envergadura. Por isso Milton, ao acompanhar a rebelião de Satanás de sua perspectiva, acaba traduzindo a imagem que ele deve ter de si mesmo: uma vítima cheia de “boas” intenções (das quais o Inferno está cheio, não?).

Isso significa que o homem não está tão distante de Satã quanto ele estaria de um suposto Mal Absoluto

Isso significa que o homem não está tão distante de Satã quanto ele estaria de um suposto Mal Absoluto. Deus retirou-o do Éden para que não vivesse para sempre em estado de desgraça, aprofundando-se na maldade à semelhança dos demônios, e Deus destruiu a primeira humanidade com o Dilúvio quando o empreendimento satânico e o empreendimento humano se alinharam quase perfeitamente, ao ponto do hibridismo titânico, e mergulharam o Mundo em derramamento de sangue e irreverência. Na sua revolta contra Deus, o homem pode alinhar-se à narrativa de Satã e, de fato, se aliar a ele, ainda que indiretamente, e se associar ao seu projeto anômico. É a culminação disso, quando os povos da Terra se unirem como uma só nação ímpia, ordenada segundo a Anomia e sob o comando do Filho do Diabo, o Anticristo, que viabilizará o derradeiro e apocalíptico Juízo.

Diferentemente dos anjos caídos e de Satã, aqueles que chamamos de diabos, que agem com selvageria cruenta, dominando, oprimindo e animalizando pessoas como que por prazer, assemelham-se aos daemons desgarrados da antiga mitologia grega — sem ordem, sem lei, sobremodo caóticos. Mas essa categoria pertence a um outro estudo.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 5 de janeiro de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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