A Sociedade Decadente, a Barbárie e a Resposta Ascética
Elementos do éthos escatológico
Períodos de crise cultural, ou de definhamento de uma sociedade, estagnada e e envelhecida no excesso de burocratização e complexibilização (no sentido de uma horizontalização), defende Barfield, instigam indivíduos visionários, assim como os grupos que ao redor deles se reúnem, a uma recuperação das imagens universais diretamente em suas fontes — no magma vivo da profundeza do homem e da realidade, ou do Ser. Essas imagens aurorais são sempre prenhes de potência e conservam em estado latente possibilidades de reimaginar o mundo velho e a sociedade senil — são forças altamente inflamadas, que emergem como que por revelação, por experiência visionária, e estão desde pronto vinculadas à práxis, assim como os heróis fundadores do Mito estão sempre associados a gestos cosmogônicos.
… a experiência visionária que sempre eclode em diferentes pessoas no tempo da crise decorre da privação ascética para a qual se inclinam
Para Edinger (Arquétipo do Apocalipse), a experiência visionária que sempre eclode em diferentes pessoas no tempo da crise decorre da privação ascética para a qual se inclinam. Sentindo de maneira singularmente intensa a desgraça de seu meio, assumem uma postura de oposição, contestação e santificação, ou separação da sociedade comum e de seus hábitos excessivos e viciosos. É essa retenção da libido, essa autocontenção espartana, altamente disciplinada, que cria condições psicossomáticas para o colapso visionário, quando a energia represada estoura, não para fora, mas para cima, dentro da psique e rompendo momentaneamente o governo do ego. Nesse momento, as imagens universais, arquetípicas, vinculadas ao inconsciente coletivo, inundam a mente de súbito e totalmente, no peso pleno de sua presença, e aparecem tão soberanamente, que vêm impregnadas de numinosidade, como manifestação revelacional do Divino. Essa experiência pessoal, tão ardente, é descrita em termos altamente simbólicos e de maneira suficientemente apelativa (não num sentido negativo), ao ponto de agregar multidões de neófitos, também, mas menos severamente, atingidos pela miséria dos tempos. Essa comunidade apocalíptica assume o simbolismo profuso e procura sistematizá-lo — daí formando o que podemos chamar de “tradição”.
A estrutura do Tempo Escatológico está bem traduzida em Apocalipse 22:11 — “Continue o injusto fazendo injustiça, continue o imundo ainda sendo imundo; o justo continue na prática da justiça, e o santo continue a santificar-se” -, porque o mais característico sintoma social do envelhecimento da sociedade é o crescente hedonismo, o alastramento da barbárie e do filistinismo, a generalização e a multiplicação dos vícios e de toda a forma de depravação. É esse clima de degeneração, de altíssima e selvagem preferência temporal, que encontrará sua contrapartida naqueles poucos que sentirem no seu coração a demanda pela vereda virtuosa, estoica, justa e santa. Uma característica marcante dos “Tempos do Fim” é a da crescente polarização, que vai aos extremos: comunidades de fiéis vão se mortificando sempre mais, enquanto as multidões agravam o seu estado de bestialidade. É nesse caldeirão que são reencontradas as fontes eternas da Vida.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 18 de junho de 2023.