A Viúva Pobre e o Jovem Rico

Acréscimos ao tema da “causa social

Natanael Pedro Castoldi
8 min readMay 27, 2024

Na linha dos pensamentos recentemente cotejados ao redor de João 12:8 (“Quanto aos pobres, vós sempre os tereis convosco, mas a mim vós nem sempre tereis”), fui levado pelas elucubrações da madrugada passada à passagem da Viúva Pobre, que está em Lucas 21:1–4, concluída pela fortíssima sentença de Cristo: “ela, porém, na sua pobreza, deu tudo o que tinha para viver.” Nos dois casos há um contraste notável: a prioridade cúltica ao Senhor e a pobreza material, porque o contexto de João é o da contestação de Judas Iscariotes ao “desperdício” dos caros perfumes que a Mulher Pecadora deposita aos pés de Cristo e que o Senhor entende como Sua unção e preparação para a Morte — para Judas, aquele perfume poderia muito bem ter sido vendido com a finalidade de ajudar aos pobres, pelo que Jesus o repreende; o contexto de Lucas será, por seu turno, o das ofertas ao Senhor no Santuário, quando a Viúva Pobre é revestida de honra pelo Mestre ao depositar no gazofilácio o substancial do seu sustento, enquanto os demais, cheios de pompa, davam apenas do que sobrava. Veja bem: ela não foi coibida ou censurada por Cristo em Seu ensinamento aos discípulos, como se estivesse sendo imprudente, já que aquelas pequenas moedas lhe fariam falta — a sua atitude, pelo contrário, foi encorajada.

Não se trata, de maneira alguma, de um desinteresse pelos pobres. No discurso de Cristo, como insta em João, o “pobre” comumente aparece sob o grego “ptóchos”, utilizado para aludir ao extremo da pobreza, a miséria completa em contraste com a transbordante riqueza (“plousios”), donde se vê que estamos falando de categorias “ideais”, mais simbólicas do que propriamente literais, compatíveis com a dualidade típica da escatologia e, em ambos os casos, correspondentes a esferas da existência ou modos de estar no Mundo, incluindo a privação material e o seu excesso, mas assumindo-as como modelos ou formas correspondentes a disposições morais e espirituais, vertidas em sistemas de vida (do contrário, não se usaria “ptóchos”, hiperbólico, e esse mesmo termo não apareceria no Sermão do Monte em um sentido espiritualizado [os “pobres de espírito”], análogo aos “eunucos que castraram a si mesmos por causa do Reino” — Mateus 19:12).

… os pobres devem estar mais disponíveis ao abandono do pouco que têm para correr aos pés de Cristo…

Todas as vezes, pois, em que os materialmente pobres são elogiados no Novo Testamento o elogio se dá em vista de seu desprendimento, do desapego dos bens em benefício do Reino de Deus, em adoração ao Senhor, em favor da Boa Nova. Se trata, portanto, não de a pobreza ser uma virtude em si mesma, até porque, se a oferta de excesso é motivo de tentação (como se vê nas tentações satânicas de Cristo no Deserto), a miséria, a falta, é uma consequência da Queda e um fruto indireto do Pecado Original e de seu salário, a Morte. A pobreza poderá ser ou não ser virtuosa, e talvez os exemplos dados de autossacrifício dos pobres tomem base no quão surpreendentes sejam — porque eles põem em risco a própria vida -, mais do que na suposição de que sejam triviais, corriqueiros, naturais ou deles esperáveis. Ademais, e isso está implícito no Sermão do Monte, com muito menos “espinheiros” aos quais se prender, negócios a administrar, patrimônios a guarnecer, os pobres devem estar mais disponíveis ao abandono do pouco que têm para correr aos pés de Cristo — são os “fortes” aos quais Jesus se refere em Mateus 11:12. Realmente, as multidões que marchavam no encalço de Jesus eram eminentemente andarilhas, perfeitas de uma maioria de desprivilegiados, dos quais os discípulos são os primeiros exemplos — daí sabermos que a qualidade de “ptóchos” poder ser autoimposta em favor do Reino, mais uma virtude a ser desenvolvida do que a mera constatação de um fato “natural”, por isso o Mestre a vinculará à atitude daquele que se põe em último lugar (Mateus 19:27–30).

Isso vai de encontro ao que ocorre com o Jovem Rico, de Mateus 19:16–26, que dá o pano de fundo do dito imediatamente acima e, portanto, em contraste com os próprios discípulos. O Rico (“plousios”) cumpre todos os preceitos da Lei, mas a disposição de seu coração não corresponde ao que é demandado do verdadeiro Makários, que deve ser feito “pobre de espírito”. Poucos versículos antes Cristo falara dos eunucos, e o Jovem Rico devia sê-lo, semente de Abraão, pelas mãos dos homens (a circuncisão), mas não o era de mão própria, espiritualmente — seu coração estava indelevelmente preso aos seus muitos compromissos no horizonte da Economia dos Homens. Daí a ordem de Cristo para que ele removesse o problema pela raiz, donde tornado desimpedido de segui-Lo pela venda de todos os seus bens e pela sua distribuição aos pobres — não por conta da venda e da distribuição dos bens em si, o que não deixa de ser importante, mas porque deveria ter seu coração convertido. Portanto, note, era primeiramente em benefício dele que o gesto lhe fora demandado. Não fosse assim, teríamos um problema com João 12! E mesmo com o entendimento subsequente, que está no versículo 23, o qual antevê a dificuldade, mas não a impossibilidade de salvação do materialmente rico, uma vez que a riqueza em si não é exatamente o problema. O problema está na fraqueza da vontade do homem.

… a Viúva Pobre não é impedida de fazer aquilo que Cristo ordenou ao Jovem Rico.

O mais surpreendente dessa perspectiva se vê quando entendemos que a entrega, em nome do Senhor, de todo o sustento é louvada na Viúva Pobre, que, de certa maneira, não é impedida de fazer aquilo que Cristo ordenou ao Jovem Rico. Não se tratará, repete-se novamente, de um problema exatamente material, de uma redistribuição de riquezas baseada num tipo de “justiça social”, num fluxo de uma única mão, descendo do Rico em direção ao Pobre, mas de uma disposição do coração — se não à Viúva Pobre só caberia, aos olhos de Jesus, o recebimento, não a doação. Ele, todavia, não a impediu e nem Se comoveu, compadecido — comoveu-Se, pois, admirado. Naquele gesto de doação, a Viúva se enobrecia e ganhava, na sua humildade, vulto muito maior do que todos os demais, encontrando lugar de elevada estima junto de Deus. Consequentemente, ter sido respeitada em seu gesto heroico correspondeu ao reconhecimento da grandeza de seu ato — assim, o pequeno e fraco tornou-se grande e forte, desafiando, pela solidez de sua convicção e pela força moral, o sistema de Trevas do Mundo.

Está posta aqui uma hierarquia de valores radicada em uma cosmologia esclarecida. Toda a oferta cúltica do Senhor é assumida como sacrifício espiritual, se conduzida com intenção, e tem uma importância muito maior, uma vez que é qualitativamente distinta, do que toda a dedicação à “contagem de moedas” em favor do bem-estar material. A ajuda ao materialmente pobre, nesse contexto, se baseará na Piedade, a qual emerge do cimo do espírito, daquele Amor decidido e compassivo, fundado na operação do Intelecto, que discerne o Outro, o Homem que está além da pobreza, que discerne no Homem a natureza de sua dedicação e que saberá dar-lhe segundo aquilo que é necessário — é uma disposição, por conseguinte, Justa. Se tem fome, que coma; se tem sede, que tenha de beber; se está nu, que tome uma de duas capas; se está só pelo caminho, que encontre companhia; se está preso, que seja visitado. Que nunca, todavia, se queira tirar de seu arbítrio o gesto enobrecedor de autossacrifício, porque ele é Homem mais do que “pobre”, e se está servindo ao Senhor, que se lhe permita servi-Lo liberalmente, porque o discernimento que vem da Piedade vê nisso um valor que supera aquele do horizonte da “contagem de moedas”. O que quer dizer que, tendo ele fome, a entrega da Boa Nova de Salvação possui importância maior do que a entrega do trigo — e ele pode legitimamente preferir aquela a esta, embora deva receber as duas, se possível.

A Piedade, a atitude de Cristo perante a Viúva Pobre, difere da “aparência de piedade” de Judas Iscariotes diante do “desperdício” da Mulher Pecadora. A inclinação de Judas está mais distante da compaixão e mais próxima da “empatia”, que não é muito diferente de uma presunção baseada nos próprios afetos, uma suposição autocentrada daquilo de que “certamente” o outro precisa — uma suposição sempre subtraída dos valores pessoais e daquilo que é importante para o observador. Seria “empático”, por assim dizer, ter parado a mão da Viúva Pobre antes de ela depositar sua renda no gazofilácio, oferecendo-se para ofertar no lugar dela. Quem o fizesse, porém, estaria ocupando o lugar de honra que caberia somente a Deus, o objeto direto da adoração da Viúva, para ser honrado e admirado por ela, enchendo-se de vaidade e de amor próprio enquanto, ao preço de algumas moedas, revertesse a submissão dela ao Senhor para que ela, ainda que momentaneamente, se colocasse em uma condição de submissão e de inferioridade diante desse seu pontual salvador — porque ali ele é quem doa e ela é quem recebe, e já não é mais Deus que recebe dela o pequeno sacrifício, o qual, por sua vez, a elevaria.

Seria “empático”, por assim dizer, ter parado a mão da Viúva Pobre antes de ela depositar sua renda no gazofilácio…

A empatia, nesse contexto e via de regra, quando mal conduzida, produz uma inversão na ordem das coisas e das prioridades, inserindo um homem, que é o doador, no lugar do Senhor, já que é ele quem recebe as honras que seriam dedicadas a Deus e é elevado em lugar daquele que é salvo por ele — e que teria podido elevar-se no ato heroico da doação de si. Essa inversão sempre se valerá, também, de uma sobreposição de demandas de tipo horizontal e material, as quais suprimem o “sacrifício espiritual”, porque se trata de uma reação afetiva invariavelmente baseada na impressão emocional do sofrimento e do aspecto da pobreza, nunca no discernimento do Homem e da natureza real de seu gesto e de sua demanda — uma reação que tenderá a ser impulsiva, não exatamente porque sempre o necessitado pedirá por urgência (esses casos não nos são ignorados), mas porque o “empático” entra em um estado de sofrimento e de constrangimento do qual procurará se livrar o mais rápido possível. É que o Mal, quando encarado no âmbito dos particulares sensíveis, não poderá ser tratado se não como um problema a ser solvido o quanto antes — quem o vê desde este ponto de vista, que não é aquele o Intelecto, é incapaz de suportar a tensão do convívio com ele, que é, de fato, ontológico (“Quanto aos pobres, vós SEMPRE os tereis convosco”).

Não é de se estranhar que o mesmo que, pondo o regime da horizontalidade, da Economia dos Homens, acima daquele da verticalidade, do culto e da adoração ao Senhor, num aparente “amor” pelos pobres, aos quais teria desejado a distribuição das moedas correspondentes ao valor do Perfume, foi quem vendeu Cristo por trinta moedas de prata. Isso sempre acabará sendo assim. No final, o patrimônio comprado com o dinheiro da traição, um campo, foi salpicado de sangue e recoberto de vísceras. No extremo trágico, esse não deixa de ser um lembrete da Morte e da vaidade, literalmente vacuidade, de todos os empreendimentos focados no entesouramento de riquezas na Terra. No fim, tudo se vai, corroído pela traça e pela ferrugem, enquanto os ossos apodrecem no interior dos sepulcros, não importando se suas faixadas sejam ricamente ornamentadas.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 26 de maio de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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