A Visão Irrestrita

o progressismo e a tirania dos afetos

Natanael Pedro Castoldi
3 min readJul 24, 2021
Diana as Personification of the Night, Anton Raphael Mengs

O Mundo Moderno pode ser visto, em parte, como o produto do conflito entre Smith e Godwin. — Leituras em Thomas Sowell (2011) —

Para o primeiro, o valor real dos sentimentos morais humanos está em seu resultado concreto — mesmo que demandemos incentivos para a realização da reta bondade (você pode ser impelido a fazer algo bom em função de um senso profundo de honra pessoal [se sentirá bem agindo em conformidade com ele e mal se não o fizer, e também terá o ônus social do “olhar torto” dos demais cavalheiros]), a consequência real da piedade é a manutenção da ordem social, a viabilização de seu progresso e a correção de condições deploráveis e escandalosas. Nesse cenário, ninguém se preocupava tanto em saber exatamente quais os sentimentos e as intenções da boa ação — isso era de foro íntimo e só poderia ser julgado por Deus. Em termos mais claros: o dado natural a respeito do comportamento moral humano era esse, o de que o homem faz coisas boas com mais facilidade se estiver envolvido num jogo que inclui, também, algum tipo de recompensa ou punição, ambos assegurados pelo louvor ou pela rejeição da Comunidade. Por isso, a educação moral não se ocupava exatamente com teores emocionais, mas com a afirmação de objetos e de propósitos legítimos.

O foro íntimo, da intenção do coração, não é mais algo a ser resolvido com Deus, mas julgado em praça pública

Para Godwin, porém, o valor real da boa ação estava na intenção profunda, não havia validade num ato bom que fosse realizado a partir de um vício. Residia aqui uma leitura altamente subjetivista e essencialista: o efeito concreto não tinha valor em si mesmo, mas era qualificado pela direção interna do coração do homem. O fato de que a ação condicionada por algum nível de recompensa ser mais natural ao comportamento moral humano não significava nada — esse desvio, mesmo pertencendo à natureza criatural, poderia e deveria ser corrigido, levando a espécie a uma elevação virtuosa na qual as intenções se alinhassem perfeitamente bem às ações. Essa já é uma das matrizes do pensamento revolucionário. Infelizmente, parece que o caminho de Godwin está prevalecendo após a dispensação de Smith: o foro íntimo, da intenção do coração, não é mais algo a ser resolvido com Deus, mas julgado em praça pública, avaliado por aqueles em direção aos quais é realizada a ação benfeitora (ou por aqueles que afirmam ser seus representantes políticos). Todos precisam, pois, deixar às claras as vísceras, as intenções, os teores emocionais sempre que fazem algo considerado bom — pois esta qualidade só existirá de fato se o estado emocional e a resolução intencional estiverem de acordo (o outro, para se sentir “amado”, não quer assegurar-se apenas da coisa, mas do sentimento do doador, já que os afetos tornaram-se eles mesmos um tipo de capital). Chegamos, enfim, ao extremo de a boa ação não precisar mais carregar nenhum comportamento eficaz ou nenhum tipo de doação material: a mera afirmação de identificação afetiva e de “boas intenções existenciais” já é suficiente.

Isso tudo é produto de um extenso trabalho de reeducação afetiva, de transformação e remodelação dos pensamentos e das intenções, que há muito assumiram papel dominante na ordem dos sentimentos morais, relegando à periferia a antiga modalidade, que se preocupava apenas com a instrução sobre bons objetos e bons propósitos morais. A mudança está evidente no próprio vocabulário, repleto de adjetivos e calibrado perfeitamente bem para gerar reações e identificações emocionais.

SOWELL, Thomas. Conflito de Visões: É Realizações, 2011.

Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 3 de julho de 2021.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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