Afrodite Pandêmia e o Reino de Pã

pandemia e doença do espírito

Natanael Pedro Castoldi
2 min readAug 19, 2021

Uma curiosidade mitológica: Afrodite, ou Vênus, é uma divindade que condensa toda a simbólica feminina — está ligada ao mar e à terra, unindo opostos, e também à explosão de vida no mundo, donde encarna o amor, ou o Eros. Mas Afrodite tem dois aspectos: Afrodite Urânia, apolínea, elevada, uma personificação do amor espiritual, platônico, límpido, olimpiano, e Afrodite Pandêmia, ligada ao caos terrestre e aquático, refletindo não o amor filosófico, contemplativo, mas as paixões da multidão, de todo (pan) o povo (demos). O mito diz que, quando Saturno castrou Urano e seus testículos caíram no mar, um foi levado para Citereia e outro para Chipre, e cada um gerou, respectivamente, os aspectos de Afrodite.

A Afrodite Urânia é comumente retratada emergindo do Mar sobre uma concha aberta. A concha representa a mente iluminada pela sabedoria, retirada do caos aquático da inconsciência e da indefinição e, por isso, individualizada. A Afrodite Pandêmia, por sua vez, é comumente retratada em terra, junto de frutos e de um carneiro, que é o símbolo do deus do caos terrestre Pã (Pan), selvagem carneiro dos bosques, dado aos desmandos dos instintos e dos desejos do baixo ventre. Afrodite Pandêmia, ao contrário da iluminação pela sabedoria, que retira a mente individual da desordem oceânica, despersonaliza o sujeito, levando-o de volta ao caos da multidão, à mistura com a terra e à entrega aos prazeres viscerais. Aqui Afrodite é Pandêmia também no sentido de ser causadora de doenças venéreas que se alastram em decorrência da embriaguez coletiva, que é perpetradora de outras tragédias, originadas e fomentadoras da ignorância espiritual. Descreve, em resumo, a devastação pessoal obtida pela satisfação de desejos vulgares. No lugar da concha, Afrodite Pandêmia pode ser ilustrada como montada num dragão, símbolo do caos terrestre e aquático, que dirige com firmeza e vigor.

Uma doença generalizada que aflige as almas desde muito antes — essa é a verdadeira Pandemia

O símbolo da Afrodite Pandêmia é a definição mais completa da Pandemia como temos presenciado: um retorno ao caos, precedido pela ignorância espiritual que tem devastado o Ocidente nas últimas décadas e destruído as individualidades em nome da coletividade e dos prazeres fáceis da multidão, que é sempre mais bestial do que iluminada. O vírus veio e se alastrou pelo mundo, mas as reações de grossa fatia da população sinalizam, como bem mostraram Agamben e Valli, uma doença generalizada que aflige as almas desde muito antes — essa é a verdadeira Pandemia.

FORNORI, Livio. Bomarzo, The sacred alchemical grove (documentário audiovisual). Altra Civiltà Video: 2017. Disponível no youtube.com

Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 19 de agosto de 2021.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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