Ainda há um lugar para o pobre?

da dignidade da vida simples

Natanael Pedro Castoldi
6 min readJul 22, 2021

O homem antigo, ou o cristão pré-moderno, assimilava da cosmovisão geral uma narrativa para si — um ou outro mito particular (HOLLIS, 2005). Os santos, cada um encarnando uma possibilidade existencial dentro do corpus da civilização ocidental, por terem sido confundidos com arquétipos, foram se assentando como referências para a jornada individual, assim como personagens da Escritura, figuras do folclore popular e outros sujeitos de relevância cultural, como os cavaleiros e os reis. Inserido num contexto compreensivo e abrangente, o indivíduo assumia uma vereda existencial e decidia arcar com o seu ônus e o seu bônus, suas próprias dificuldades e virtudes e também aquelas inerentes ao seu mito pessoal. Era ele, tal como os santos e os cavaleiros, assumindo suas fortalezas e suas fraquezas.

O homem moderno ou hipermoderno, de estirpe racionalista, por sua vez, assumirá para si um certo ideal abstrato, gotejado de um sistema de pensamento puramente lógico e “científico”. Ele não tem uma imagem ou uma narrativa clara, nem um herói de personalidade rica o suficiente para encorajá-lo. O que ele tem é um desejo de “ser feliz” e “não sofrer” e, para tal, procurará aquilo que estiver sendo oferecido como prazeroso e realizador — consumirá coisas e ideias compulsivamente, sempre “em busca da felicidade”, e construirá colchas de retalhos de uma imensa e contraditória diversidade, sempre almejando o hedonístico cálculo da felicidade plena (um pouco de budismo light, um pouco de coach, uma mudançazinha de mindset, uma foto “escorando” a Torre de Pisa…). A mentalidade racionalista não é existencial, é metodológica e inteiramente focada na busca por soluções, na resolução de problemas, na dissolução daquilo que não caiba no cenário ideal. É isso que envenena a mente do homem médio de nosso tempo: o que não entra no polo apolíneo, olimpiano, de puríssimo prazer, é um problema, um desvio, um parasita, algo que não é propriamente humano. Quando pensamos no Bom Selvagem, afinal de contas, tomamos como verdadeiramente humano aquilo que é inerentemente bom — todo o resto, todo o desconforto que vai além dessa bondade e desse prazer primevos, é imposição cultural e espinho na carne, coisa a ser removida como menos que humana. Eis, aqui, o que Sowell (2011) chamou de Visão Irrestrita e que Oakeshott (2018) tomou, em termos mais amplos, como Política da Fé.

Os psicólogos racionalistas, que são atomistas e mecanicistas, procuram definir o homem desde de suas partículas mínimas e irredutíveis — a essência do homem, indo ao átomo, é o mecanismo (SCHULTZ, 1981). Essa descida à profundeza mais elementar e primitiva terá sua participação na psicanálise, que estimulará o processo cultural que considera essencialmente humana aquela parte da primeira infância, escondida no Inconsciente pela pressão legalista e castradora da sociedade, internalizada como Superego. Tudo isso potencializa o percurso vigente do homem racionalista, que quer purificar a sua vida de tudo aquilo que traz dor e frustração, como se a vida em si fosse um problema a ser solucionado e como se a vida de fato só existisse enquanto tal após todo um processo de libertação das “amarras sociais”. Ele não consegue suportar a contradição interior, os paradoxos e os antagonismos que habitam dentro de si, pois não é mais como o antigo cristão, que está inserido numa estrutura civilizacional contingente e assume para si um Destino (BERGER, 2012). Ele é dualista, e um dos polos precisa ser aniquilado para que o outro viceje.

Em termos culturais, a sociedade racionalista do Estado moderno, quanto mais dada ao aparato lógico e industrial, centralizador e burocratizante, legislativo e somatocrático, mais e mais divergirá do espírito cristão do Ocidente tradicional. Para uma mentalidade política e social movida pelo ímpeto metodológico da resolução de problemas, o que não cabe na forma ideal do Estado e da Sociedade conforme ideologizado, é ilegítimo, deveria não existir, só existe enquanto problema a ser resolvido. Na Índia atual, ainda em muito pré-moderna, onde as castas organizam a sociedade, há uma legitimidade e uma dignidade na pobreza, de modo que a casta dos intocáveis, que é a mais baixa, é assumida pelos seus representantes, via de regra, com orgulho pessoal. Não são incomuns relatos de camponeses europeus orgulhosos de sua posição, de seu trabalho e de sua condição.

Ele não cabe no esquema lógico e ideal, então, como numa equação, precisa ser eliminado

Isso tudo é possível num contexto civilizacional que consiga suportar a realidade como ela é, onde o pobre não é visto apenas como um problema estrutural, produto das excreções da Sociedade, algo que não deveria estar ali ou que não deveria existir (e não é esse um dos argumentos pró-aborto, de prevenção a um “futuro pobre”?). Ele não cabe no esquema lógico e ideal, então, como numa equação, precisa ser eliminado. Sua condição se torna de todo indesejável, ilegítima, e ele é lançado no caminho fluído em direção ao consumo e aos ritmos de trabalho de uma cultura materialista. Toda a estatura espiritual e toda a grandeza e dignidade que podem existir na simplicidade, são anulados e esterilizados, e o próprio indivíduo é esvaziado de orgulho, sentido e identidade, que reencontrará quando conseguir se sentir socialmente validado, após, principalmente, adquirir certos “luxos” materiais e assumir determinados comportamentos. Em geral, tudo o que não coube na equação do Estado racional, nos últimos séculos, foi escondido ou destruído — os chamados loucos, os pobres, os estrangeiros, os deficientes físicos, os cristãos… E assim tem sido até hoje. Nem quando a elite econômica e cultural desce às comunidades pobres para fazer turismo e acaba glamourizando aspectos do comportamento e da produção cultural das chamadas periferias, se tem uma legitimação real de sua existência: essa “gourmetização” da cultura popular ou periférica é, também, a sua higienização e reformulação enquanto produto para consumo daqueles que têm como pagar, apagando qualquer legitimidade e profundidade originárias, que não podem conviver com uma rotina industrial e materialista.

Os cristãos ocidentais pré-modernos não viam a pobreza com olhares românticos, como fazem hoje muitos ricos culpados e envergonhados (que acabam monetizando seus afetos politicamente corretos), de maneira que procuravam beneficiar aqueles que tinham necessidades materiais de todo o grau (muitos dos cristãos eram eles mesmos pobres). A pobreza sempre foi vista como, ao fim e ao cabo, um sinal da Queda e do Pecado. Mas o seu status e o status do pobre sempre estiveram garantidos, pois, como o próprio Cristo disse, “quanto aos pobres, vós sempre os tereis convosco” (Jo 12:8). Eis o que é: a pobreza não é um problema a ser resolvido enquanto categoria, pois sempre existirá — a pobreza é algo a ser tratado, sempre, diretamente com as pessoas que nela se encontram e conforme aquilo que essas pessoas querem para si mesmas. Num mundo misto, cinza, feito de contradições, a pobreza é inevitável e o pobre precisa ter o seu lugar e deve, sim, ter a possibilidade de, caso queira, se sentir satisfeito em sua simplicidade, se ela lhe dá condições mínimas para viver. Há muito tempo eu entendi que os moradores de rua, com os quais sempre interajo, muitas das vezes estão ali porque querem (isso já foi evidenciado em pesquisas de psicologia), porque assumiram para si esse estilo de vida, que os itinerantes narram em termos quase mitológicos. Daí eu preferir tratá-los com toda a igualdade e respeito, pois tenho como legítima a sua posição no mundo, e também é por isso que nunca negarei a palavra, bolacha e a moeda que tenho comigo, e quanto à moeda, não importando o uso que dela farão.

BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. Modernidade, Pluralismo e Crise de Sentido. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

HOLLIS, James. Mitologemas. São Paulo: Paulus, 2005.

SOWELL, Thomas. Conflito de Visões: É Realizações, 2011.

SCHULTZ, Duane P.; SCHULTZ, Sydeney E. História da Psicologia Moderna. São Paulo: Cultrix, 1981.

OAKESHOTT, Michael. A Política da Fé e a Política do Ceticismo. São Paulo: É Realizações, 2018.

Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 22 de julho de 2021.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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