Alma Humana e o Sentido Cosmológico do Sexto Dia

Acréscimos e suposições

Natanael Pedro Castoldi
4 min readJan 31, 2024

Para que se evite todo o equívoco, considere-se que meu dizer a respeito do Ser-Vocação do homem, da vinculação do Si-Mesmo à “forma ideal” do indivíduo na Mente de Deus, quando Ele cria a sua alma para insuflá-la no corpo informe, não compete a nenhum dualismo substancial. Porque o Si-Mesmo é uma totalidade que inclui o corpo, e sabemos de Sto. Tomás de Aquino que o ser do homem é o homem inteiro, donde ele pode ser apreendido como universal em sentido de espécie, e isso inclui corpo e alma como indissociáveis. Como diz Ameal a respeito da doutrina tomista, a alma humana

… não é espírito puro, nem mesmo substância completa. Não é espírito puro porque o seu caráter é tender a unir-se a um corpo; não é substância completa porque não pode, por si só, realizar todas as suas operações, como as da vida vegetativa e sensitiva. Isto impede-a, também, de constituir, por si só, uma pessoa […] — ‘o homem não é apenas uma alma, é um ser composto de alma e de corpo. — Santo Tomás de Aquino (livro), p. 327

Isso significa que a alma do homem não é como a dos seres simples, ou anjos, mas alma especificamente humana, porque é forma ou substância do corpo do homem — não há corpo sem forma e não há forma desprovida de corpo. Isso significa que Deus cria o homem quando insufla para dentro do corpo a alma, porque, criada a alma, ela é atraída ao corpo, ao qual se apega e só desponta de fato quando nele instalada. É incorruptível, encabeçada pelo espírito, e tende ao Divino e ao Absoluto — deveremos discutir os pormenores de sua natureza e de sua sobrevivência à morte do corpo noutra ocasião. O que se quer dizer aqui, ao redor do argumento inicial, é que o Senhor cria o homem individual no instante em que insufla no corpo informe a alma, e é nesse ato de criação direta e pessoal que apoiamos a “forma ideal” da pessoa humana na Mente de Deus, entendendo, também, que seu Ser-Vocação não é uma propriedade específica da alma, mas da pessoa e da conformação específica de sua natureza corpórea e almática, que se conjugam no ser do homem, porque a alma se une ao corpo como forma substancial, não acidente — “… a alma está unida imediatamente ao corpo, como a forma à matéria.” — Ameal cita Aquino.

A respeito do que se viu no concernente à origem da alma como obra de criação direta e imediata de Deus, em oposição ao corpo, que vem do corpo dos pais em sentido de “causa segunda” e como desdobramento tardio da criação do corpo Adão, este sim diretamente pelo Senhor, tenho algumas considerações adicionais. É sabido que a cosmogonia cristã termina com o Sétimo Dia de Gênesis 1 e que só terá um paralelo no termo da escatologia. Nem mesmo no Dilúvio Deus criou no sentido de ato criativo direto e ex nihilo, conservando vivos exemplares de todas as criaturas, sendo o Dilúvio mais uma purificação de tipo cosmogônico do que exatamente uma Criação em sentido stricto. Isso me remete a uma tradição judaica na qual o Senhor, assim que termina de insuflar vida em Adão (de tipo “Kadmon”), mostra-lhe, como que em Visão, a inteireza de seus descendentes, que são como anões aos seus olhos. Sem ignorar que esse conto tenha sido formulado para fins de instrução rabínica, há nele uma ilustrativa intuição: no ato mesmo do Sexto Dia, todas as almas humanas foram já criadas, tendo lugar na Existência enquanto prévia Possibilidade (para usar Lavelle com a licença de alguma imprecisão), e a cada alma já está dado o seu corpo, que também está na Existência enquanto Possibilidade, ou segundo a Onisciência Divina, de maneira que todos os homens têm preexistido na Mente de Deus desde quando foi criado o Homem, que é Adão, mas que também é, nesse sentido, Humanidade — têm preexistindo idealmente e são atualizados, ou efetivamente realizados, nos Séculos. Isso é possível, porque cada aspecto da Criação ou setor da Realidade, quando se fala de Texto Sagrado e de Cosmogonia, possui o seu próprio tempo interno.

… no ato mesmo do Sexto Dia, todas as almas humanas foram já criadas…

Nenhum texto como o de Gênesis 1 deve ser lido com olhos cientificistas, em sentido cronológico e sucessivo, mas em sentido mítico, que é espiritual e qualitativo e que se refere a processos criativos que podem ter sido sido sincrônicos, mas que correspondem a diferentes reinos e hierarquias criaturais (uma outra lenda judaica fala de Adão tendo sido moldado antes da Criação e tendo sido insuflado do Fôlego de Vida apenas no Sexto Dia). Assim, tendo sido concluída a Criação no Sétimo Dia, nem por isso cessaram os desdobramentos daquilo que foram efetivamente criado no Sexto Dia, não tendo encontrado termo o tempo interno da geração dos homens, cuja medida, todavia, fora firmada de antemão. Penso eu que o “tempo interno” e os desdobramentos do Sexto Dia têm extensão até o Final dos Tempos e o Fim da Era, e dele participa todo o drama escatológico, que é o da Encarnação, da Morte, da Ressurreição e o Retorno de Cristo. E então, de volta ao Sétimo Dia, cujos desdobramentos e o tempo interno são o próprio Eterno, estarão a Medida dos Gentios e o Remanescente de Israel no Paraíso.

Textos de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicados em meu perfil pessoal do facebook em 30 de janeiro de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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