Angústia no Mundo Velho

enfado e barbárie, sinais da senilidade do Cosmos

Natanael Pedro Castoldi
3 min readMay 19, 2021
Christ’s Descent into Hell, Hieronymus Bosch

Nos últimos meses, principalmente agora em 2021, tenho ouvido de muitas pessoas a queixa de que o homem parece estar se desumanizando e barbarizando. Em melhores termos: tem ficado cada vez mais egoísta e vil e parece estar perdendo habilidades e intuições morais e sociais básicas, para bom convívio e boas relações.

Nobert Elias (1990) associa a complexibilização das regras de etiqueta, de posturas socialmente estabelecidas de cortesia e civilidade não apenas ao aumento do Estado, mas também aos cumes de sua legitimidade — a vida pública é tão rica quanto rica é a res-pública, ou a coisa pública, e o fornecimento de identidade pelo pertencimento compartilhado a uma Nação e um estável senso de segurança que vem de um Estado forte e regido por um governo justo energizam o Mundo, energizam a Praça. Um Estado Justo, detentor de vigorosa Autoridade, que brota da fonte fresca do Autor (Deus, Mito Fundador, Contrato…), é um Estado dentro da legalidade e sentido como legítimo, justificado e justificador pela sociedade civil. Um Estado Justo, sempre renovado em sua Autoridade pelo contato do Autor, é um Estado Jovem, que rejuvenesce o Mundo e oxigena a sociedade (CACCIARI, 2020). Enquanto Puer, se ergue Heroico (HILLMAN, 1999).

Como Agamben (2015) bem demonstrou em seus escritos recentes, no Ocidente não há mais governo e nem instituição, não há mais ordem política transparecendo legitimidade. As fontes secaram e a Autoridade inexiste. As pessoas não conseguem mais encontrar no Estado suficiente legitimidade e, por conseguinte, vendo-o como injusto, não o podem tomar mais como justificador. Um Estado ilegítimo, que é um Estado Injusto, é também um Estado Velho, que envelhece o Mundo e resseca a sociedade. Sabemos que a sociedade está velha quando já não possui meios de se renovar, tendo perdido suas bases comuns no Autor (CACCIARI, 2020). Sabemos que a sociedade está velha quando as pessoas começam a sentir no próprio ar algo estranho, um aprofundamento da iniquidade e da maldade, um recrudescimento da degeneração moral e uma crescente “desburocratização” das relações — ninguém mais sabe como se comportar, poucos se lembram do básico do coexistir. Queixas similares aparecem em outros povos e em outros períodos, quando da decadência e do iminente colapso de civilizações e impérios. Eis a emergência do Senex, do Estado Senil, com seu Mundo Decrépito (HILLMAN, 1999).

A passagem do Tempo tem sido sentida com enfado, o Tempo é ligeiro, mas se desloca arrastado, pesado, áspero, em direção ao Vazio. As pessoas não conseguem ver nada no horizonte — e isso é porque não há raízes e nem reservas para onde retornar ou a renovar. Quando nada mais é visto no Amanhã, é porque o Império está morrendo, a Dispensação está se encerrando, as estruturas conhecidas já emperram e não há como saber o que virá depois, pois deverá ser algo novo. Ao fim e ao cabo, o Mundo está velho e, até morrer, agonizará, fazendo agonizar o Estado e a sociedade com ele.

Nos subterrâneos e nas fronteiras, ânimos se acirram e humores escatológicos, em brasas, são atiçados por ventos virulentos

Não tarda e as pessoas quererão que o Tempo se acelere de uma vez e que a tragédia se consuma sem mais cerimônias, que o Destino se cumpra, que a morte do Mundo, já certa, se efetue. Não tarda e os Estados, os governos, pedirão por um novo Rito da Primavera, pela eclosão de um conflito de larga escala, pelo morticínio e pelo caos, sacrificando o Mundo na esperança de que renasça renovado. O modus operandi do tempo vigente, como bem alertou Eliade, é o da retenção do Destino, é o da tentativa de impedir a História, de prevenir, via Lockdowns e Vacinas, a contingência. Mas nos subterrâneos e nas fronteiras, ânimos se acirram e humores escatológicos, em brasas, são atiçados por ventos virulentos.

AGAMBEN, Giorgio. O Mistério do Mal. São Paulo: Boitempo, 2015.

CACCIARI, Massimo. O Poder que Freia. Belo Horizonte: Âyiné, 2020.

ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador I. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

HILLMAN, James. O Livro do Puer. São Paulo: Paulus, 1999.

Texto de Natanael Pedro Castoldi redigido para este perfil em 18 de maio de 2021.

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Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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