Antigos deuses e novas doenças
sobre o aspecto noturno da vida moderna
Como disse Jung, noutras palavras, os deuses tornaram-se nossas enfermidades. Seguidor de Jung, Gilbert Durand entenderá que os elementos incompatíveis com a cultura formal, apolínea, aquela oficial de determinado momento histórico, ficam relegados ao âmbito de um “subconsciente social”. Os deuses antigos, todos nomeados, perdem seus nomes e se transformam numa generalidade anônima de demônios. Contudo, aquilo que eles encarnavam, num âmbito positivo, cumpria um papel no organismo coletivo, pois, enquanto metáforas de realidades humanas, davam forma e materialidade à inteireza do Cosmos, descendo do Olimpo às profundezas do Tártaro, territórios de mitos e tragédias que condensavam a totalidade da experiência humana. Relegados às trevas da obscuridade e jamais reprocessados para sobreviverem à Luz Diurna, continuam exercendo pressões subterrâneas, mas agora enquanto forças desconhecidas e horripilantes — ou seja, monstruosas.
Voegelin (2014) qualifica a Civilização Cristã, sobretudo até certo momento da Baixa Idade Média, como portadora de uma qualidade assimilativa (um marco fundamental de toda a civilização): os movimentos heréticos, os distúrbios sociais e toda a oposição pontual ao sistema civilizacional eram encarados como doenças coletivas, como sintomas de algum tipo de falta, de uma questão que foi aberta e que não foi corretamente sanada, de problemas que tendiam a ser solvidos não pela aniquilação, mas pela absorção contingente dentro do organismo da Cristandade. Um exemplo claro foi a capacidade, pelos doutores da Igreja, de digestão da filosofia maometana de inspiração helênica que floresceu na península Ibérica, sobretudo com Tomás de Aquino, donde o escolasticismo, representante do ápice de resplendor da Civilização Cristã, que veio junto da arquitetura gótica, também produto, em parte, da assimilação e do processamento de influências orientais. Compare isso ao que ocorrera quase simultaneamente com a heresia dos cátaros, que teve de ser dizimada pela força militar, já um sintoma da exaustão da capacidade assimilativa da Cristandade, que pouco antes foi capaz de encaixar o franciscanismo no edifício cristão como uma ordem monástica.
O Ocidente, desde os últimos setecentos anos, conheceu uma degeneração gradual dessa característica da Civilização Cristã, que conseguia renomear e reposicionar elementos potencialmente hostis dentro do corpo maior sem a necessidade de repressão e anulação completas — que apenas alimentariam os demônios. Esse modus operandi ainda nos cerca através de festas populares da Igreja, que vertem da conjugação de temas cristãos, de estirpe histórica, com temas pagãos, de matiz cósmico — esses, naturalmente, ficam subentendidos. Não é passível de questionamento, inclusive, o papel dos santos como substitutos funcionais de certas divindades pagãs, além de representarem, cada santo em sua terra de origem, algo dos cultos locais — o mesmo papel foi anteriormente assumido pelos anjos, quando a Pérsia monoteísta precisou redistribuir funções cósmicas de antigos deuses a entidades não divinas. A perda de poder político, de autoridade, que se deveu muito à redução do alcance do poder temporal e espiritual da Igreja e à formação dos Estados nacionais, produziu uma desarticulação na unidade espiritual da Europa e potencializou uma cisão civilizacional, polarizante, que degradou todo esse sistema: o movimento que inicialmente se apresentou como reformador, não pôde ser assumido dentro do corpus da cristandade latina, se radicalizou e, aliançado com príncipes germânicos, conduziu a parte norte do Continente para um outro caminho, superenfatizando aspectos legítimos da Cristandade que estavam em falta ao Sul. A reação de Roma, tendo em vista a abertura do Novo Mundo, não foi a de outras tentativas assimilatórias, mas de ganho de espaço noutras paragens e de reforço nas posições ainda mantidas, donde a Contrarreforma e a Guerra dos Trinta Anos. Passando ao largo dessa discussão, a questão é: na medida em que, desde o enrijecimento do espírito inquisitorial, a Cristandade se viu internamente dividida entre o Reino de Deus e o Império de Satã, o espírito polarizador se desenrolou numa incapacidade sempre maior de assumir o Contrário, que então fica relegado à Sombra, sem nome, sem definição, e podendo agir como uma força estranha, incontrolável, donde patológica.
Aquilo que Mathieu Bock-Côté (2121) descreve como a novilíngua do regime diversitário é, no meu entender, o extremo mais recente dessa jornada ocidental rumo ao abismo. A intenção, conforme apregoado pela intelligentsia, é diminuir o vocabulário, retirando de circulação todos os termos considerados ofensivos, desagradáveis, indesejáveis, fósseis de um passado opressor que se quer enterrar. O pressuposto é de que a inexistência dessas palavras torne seus significados inacessíveis e, portanto, transforme as realidades por elas nomeadas em irrealidade impossíveis de serem atualizadas — ou seja, sem a palavra, a coisa não mais existirá. No lugar desses termos antiquados, estão sendo propostas infinitas novas palavras, que podem ser inventadas de pronto combinando elementos que se queira exprimir, como meios de se tentar construir através do novo vocabulário uma nova realidade, tendo em vista que a palavra, uma vez existindo e contendo significado, garante de imediato a existência daquilo a que se refere. É nesse espírito que estão sendo excluídos do mundo visível livros, filmes e outros materiais do “passado” que possam conter elementos polêmicos e fomentadores dos “deuses antigos”. O que, contudo, os ideólogos por detrás desse tipo de deslocamento civilizacional não consideram, visto interpretarem toda a realidade como linguisticamente estabelecida ou estabelecível, é que a coisa necessariamente precede a palavra: o trovão vem antes do nome, e é exatamente pelo trovão ser um trovão que ele pede por um nome — como o homem suportaria viver sem dominar linguística e imageticamente algo tão terrível? Em melhores termos: aquilo que deixamos de nomear, não irá inexistir, mas, escondido no subconsciente individual e no inconsciente coletivo, aparecerá e pedirá por expressão em vias paralelas, Noturnas, sejam elas doenças físicas e psicológicas da pessoa, sejam elas loucuras generalizadas, doenças da sociedade. Queira ou não, o que tem nome tem função, de modo que a função será exercida com ou sem consentimento.
Nosso mundo é um mundo que se ilumina porque tem medo do escuro
Talvez a consciência de que as forças ignoradas, aquele magma pesado e profundo de tudo aquilo que se está querendo abolir, poderão subir à superfície quando menos se espera, consciência essa que não se pode ignorar, embora se queira fazer inexistir, é que esteja levando a nossa sociedade a um clima de cada vez maior tensão e maior medo, donde o imperativo cada dia mais inflamado por transparência online, por exposição, e a incrementação sempre crescente de novos aparatos de vigilância do discurso e de controle dos dissidentes. Nosso mundo está cheio de luzes, quer ser iluminado e exorcizado de todas as sombras, não porque é festivo, mas porque está sempre sob o peso tentacular e submundano do Inferno — é um mundo que se ilumina porque tem medo do escuro.
CÔTÉ, M. B. O Império do Politicamente Correto. São Paulo: É Realizações, 2021.
VOEGELIN, E. História das Ideias Políticas IV. São Paulo: É Realizações, 2014.
Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 8 de outubro de 2021.