As Duas Faces do Símbolo
O cúltico e o místico
“Como escreveu Thomas Merton, um símbolo contém uma estrutura que desperta nossa consciência para uma nova percepção do sentido interior da vida e da própria realidade”, responde Campbell ao seu entrevistado, Eugene Kennedy (Isto És Tu). O diz no contexto da distinção entre os diferentes estratos do símbolo: aquele objetivo, que sustenta a ordem social em termos coletivos e enquanto sinal para um conhecimento em comum, estruturando aspectos cívicos e a liturgia, e aquele subjetivo, porque deslocado do seu lócus público e tornado sinal estruturante para disposições almáticas particulares — este será mais universal, no sentido de corresponder à estruturas psíquicas atemporais e próprias do humano, às experiências humanas básicas e à posição humana dentro do Mundo, aquém ou além da circunscrição imediata das instituições sociais.
Há, por conseguinte, diferentes modalidades simbólicas, ainda quando o aspecto visível do símbolo é idêntico — o apelo da Cruz anuncia ao Corpo, ou à congregação dos crentes, a Morte e a Ressurreição de Cristo enquanto evento histórico e Verdade objetiva, a ser atualizada na interioridade de cada um a partir da aderência à vida sacramental, à liturgia e à ortodoxia. Esse é o símbolo da Cruz no primeiro sentido, e por isso ela aparecerá de diferentes maneiras em diferentes culturas, visando a sustentação do Mito Fundador da nação, da comunidade e da fé e do propósito histórico e escatológico associado ao grupo e necessário para a sua permanência temporal e para o seu apelo público. Todo o cristão bem instruído aprenderá da Cruz o seu sentido teológico, também, e saberá que nela está encapsulado o Mistério de Deus a respeito da Encarnação, da Morte e da Ressurreição do Filho — a realidade mesma, portanto, para a qual apontou a lei cerimonial israelita e a sabedoria gentílica, sem que os israelitas e os gentios o soubessem. O indivíduo só, que alguma vez tenha sido pego desprevenido pela Cruz fora do contexto do culto comum, da discussão especializada ou de alguma espécie de obra exterior, sentirá coisas outras, que não poderiam ser conhecidas doutro modo: ali, sem a articulação do Ícone com o seu entorno, sem o seu uso litúrgico e sem o intencional olhar analítico, ela impera por si mesma, na forma de uma presença total, e se impõe como momentâneo unum necessarium, desvelando sua face mais pessoal à visão do crente, que não chega ignorante de seu sentido diurno, mas é arrebatado por seu vulto de maneira nova — é como se pudesse descobrir existencialmente o seu significado ontológico, enquanto realidade ou símbolo de um aspecto da realidade, um sinal da infraestrutura mesma da Criação, do Logos Divino, presente e operante de modo mais concreto, mais real do que a própria madeira que forma a imagem, o veículo da visão e a porta pela qual o intelecto, enquanto operação do espírito, pode penetrar e ver além, vendo o que É. Nesse sentido, a compreensão cosmológica, enquanto experiência mística e simbólica no sentido mais preciso, acontece na pessoa, em seu espírito, fazendo-a submergir, num arrebatamento momentâneo e necessariamente na própria interioridade, naquilo que a doutrina procura informar verbalmente — então finalmente se saberá, mesmo que não se possa descrevê-lo por inteiro, do que aquilo tudo está falando. Essa é a experiência da conversão e aquela que faz eclodirem os renascimentos espirituais.
Discordo de Campbell, todavia, na sua tese de que o símbolo da Cruz tem sua matriz na psique individual, na experiência mística, porque essa é mais universal, e não na obra coletiva, em comum. Devo me remeter, aqui, a Furio Jesi e a Lundquist: a mística se origina da crise na autoridade do Templo, que permite a fragmentação de seu corpus simbólico e litúrgico, e na autoridade da Pólis, ou da Cidade. Apesar do signo da Cruz carregar elementos que são intuitivos, já que cruza os estamentos Horizontal e Vertical, induzindo certos sentimentos naturais e algumas compreensões espontâneas, o seu apelo para a inteligência individual demanda o reconhecimento de sua autoridade sagrada de símbolo da fé comum — o fato de estar vinculada a algo coletivamente apelativo e ter sido experienciada objetivamente enquanto receptáculo do Sagrado, a torna potente ou “energizada” para a sua imposição sobre a psique individual. Uma experiência idêntica não pode acontecer, por exemplo, com o signo do cifrão — mesmo que ele instigue, por suas formas arredondadas, vazadas e verticalizadas, e pela sua associação ao dinheiro, algumas emoções e alguns pensamentos imediatos. Via de regra, veja bem, todos os símbolos que nos arrebatam tiveram usos reais, muitíssimo primitivos, em religiões, associados a divindades de animismos e totemismos ancestrais, sempre vinculadas a fenômenos naturais, animais importantes e apreensões universais de aspectos do Mundo. Esses elementos primevos, instigadores de sentimentos intensos e característicos — o exemplo dos “deuses momentâneos” de Usener -, nas mais remotas eras se enlaçaram com estados interiores, de matiz subjetivo, e foram guardados no Sagrado através das religiões, que conservaram seus efeitos e seus significados, ampliando-os por tempo suficiente para se radicarem como formas básicas pelas quais os arquétipos se mostram, quando são movidas as mesmas tectonias da experiência originária. A dupla face, objetiva e subjetiva, está dada nos símbolos desde a origem, mas a face objetiva é a mais determinante na sua formação — no sentido da validade e autoridade e da potência sacrais advindas da experiência em comum.
Após centenas de milhares de anos de consolidação do simbolismo universal, desdobrado e atualizado nas mais diversas religiões primitivas e históricas, há uma predisposição natural no homem de inteligir alguns conteúdos não evidentes nas formas simbólicas básicas — os símbolos da Serpente e da Lua dizem-nos mais do que suas formas visíveis sugerem objetivamente, como se o soubéssemos inata e tacitamente. Todavia, é necessário que cada novo homem nascido seja apresentado aos símbolos básicos em cenários autoritativos, que são coletivos, para chegar a conhecer a experiência mística, subjetiva, desses mesmos símbolos, quando isolados e encontrados nos termos da solitude.
Um ponto pertinente é que o uso comum e coletivo dos símbolos dentro do contexto de uma comunidade histórica tende, com o passar dos séculos e devido à superênfase na sobrevivência da congregação, através da defesa de sua identidade e dos elementos gregários, à sua multiplicação e especialização, sempre mais rigidamente circunscritos a elementos muito específicos e abstratos, cada vez mais distantes da realidade e das demandas dos indivíduos em seus contextos e em suas necessidades, muitas das quais perenes e universais. O simbolismo, no sentido histórico e político, vai sendo cooptado sempre mais, em número e extensão, para usos pragmáticos e funcionais, ao ponto de se esterilizar na figura de estandarte confessional, partidário e identitário, mas já sem as vias abertas para a sua manifestação ontológica para fora e além da comunidade que dele usufrui. Isso cria, por exemplo, uma Cruz para aqueles que confessam uma crucificação não expiatória, nem propiciatória, mas meramente exemplar, e outra Cruz para aqueles que vão no sentido inverso — cada grupo assumirá “a sua própria Cruz” não no sentido evangélico das palavras de Cristo, mas no sentido de ver a Cruz ao seu próprio modo, conforme o apelo grupal, gregário, e a fidelidade para com seus irmãos e sua igreja. Poder-se-á incorrer, então, em veredas de matiz sectário, altamente combativas e sobremodo vinculadas a entendimentos equívocos, sempre mais relevantes e centrais na medida em que se estabelecem como marcos fundamentais da identidade e da sobrevivência comuns. Isso também dará em bizantinismos estéreis, potencialmente neurotizantes e corruptores da inteligência.
Reformas na Fé sempre começarão com indivíduos especialmente sensíveis e previdentes, que buscarão nos ermos e noutras paragens um resgate pessoal
Quando condições tais se generalizam numa sociedade, pela burocratização da religião oficial, ou do Culto da cultura, e se observa a proliferação de seitas e de fanatismos zelóticos, urge a demanda por reformas na Fé — elas sempre começarão com indivíduos especialmente sensíveis e previdentes, alarmados aos primeiros sinais da decadência, que buscarão nos ermos e noutras paragens um resgate pessoal da Fé, pautado em experiências visionárias particulares que se irradiam num círculo próximo de seguidores ou de irmãos, donde se começa a formalizar uma nova tradição (Edinger), um novo caminho, prenhe de possibilidades.
Essas experiências visionárias, místicas, são caracterizadas pela suspensão dos aspectos positivos, horizontais, coletivos e burocráticos da Fé histórica e pela descida, da intensificação dos símbolos mesmos, à negatividade lógica para a qual eles apontam — o universal que está para além do particular, o absoluto que está para além do relativo. Wilder (Mitos, Sonhos e Religião) vê nesses termos o cristianismo auroral, porque o nota recheado de referências ao mundo natural, aos elementos genesíacos, ao agrário, às matrizes mais primitivas do mesmo simbolismo judaico, antes de sua especialização e burocratização burocrático-institucional, matrizes essas que são o caldeirão ancestral compartilhado pela maioria das religiões nascentes da Europa, do Mediterrâneo e do Oriente Próximo, donde o apelo cristão nas instâncias gentílicas, greco-romanas, norte-africanas e mesopotâmicas, porque toca n’algo do homem mesmo, enquanto criatura e anterior à nacionalidades e às tribos. É essa a vereda que Prodi chama de Poder Carismático — mas, veja bem, seu apelo é sempre subsequente e posterior à complexibilização da vida civilizacional e à burocratização do culto.
Note, enfim: é verdade que a religião primitiva nasce do carisma mágico da hierofania, do “deus momentâneo”, do assombro — mas tudo isso se dá nos termos do Mito, que Jesi entenderá ser um artefato coletivo, de experiência sempre comunal, em função de sua articulação com o Rito, que é a tentativa de perenizar a experiência fundadora. A mística é diferente do carisma mágico antigo nesse sentido, principalmente: acontece no indivíduo já culto, porque cultural e civilizacional, que se desloca para fora da Cidade, e não na experiência de espanto da turba, quando esta, como horda indivisa, presencia o Numinoso “lá fora”.
… a última religião é a do misticismo, a outra uma religião da crença em objetos concretos. Deus como um objeto concreto. Para compreender um símbolo concreto temos que tirá-lo da mente. Quando você conseguir fazer o significado literal de uma tradição religiosa morrer, então ele voltará a viver. […] Descobrem [muitas pessoas] que os símbolos, quando não são pressionados literalmente, são capazes de falar claramente através de diferentes tradições. As igrejas devem perguntar a si mesmas: vamos enfatizar o Cristo histórico, ou a segunda pessoa da Santíssima Trindade, aquele que conhece o Pai? Se você der ênfase ao histórico, retirará a ênfase do poder espiritual que é o símbolo da consciência básica que está dentro de nós. — Campbell, Isto És Tu
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 8 de julho de 2023.