As Instituições Consagradas Existem Literalmente

inscritas filogeneticamente, inscritas na Realidade

Natanael Pedro Castoldi
10 min readJun 10, 2024

Tudo o que possui forma na mente tem qualidade psicologizável e, apreensível, passa a existir psiquicamente. As coisas que existem psiquicamente, todavia, não são exatamente as mesmas coisas que existem objetivamente, porque o modo de existência não é o mesmo. Conquanto o Intelecto atinja a essência dos particulares sensíveis, divisando a realidade das coisas em si mesmas no ato mesmo da contemplação, o modo como esses particulares são armazenados e passam a existir na memória e na imaginação não é idêntico a como eles foram vislumbrados no primeiro momento, porque ali eles já não são mais objetos diretos da intelecção — eles são objetos mentais.

É óbvio que essa forma psíquica carrega análogos das coisas mesmas, mas dificilmente as conservará em sua individualidade sensorial — uma vez que a impressão contemplativa já captou o universal, a impressão psíquica é mais generalista e simbolista (daí termos certezas abstratas e imagens sintéticas de “árvore”, “rio”, “céu”). Esses universais são desde sempre distinguíveis qualitativamente, porque o Intelecto percebe a realidade toda num relance e tem percepção intuitiva, espiritiva, das diferentes entidades que compõem o todo. Nessa percepção imediata há de antemão uma apreensão do valor ontológico de cada entidade e uma intuição hierárquica de tipo cosmológico — isso estará organizado, por exemplo, no Mito, como o Gênesis 1. Mas há um outro trabalho, de tipo afetivo, que interage com a percepção intelectiva e que opera por sobre os dados alçados pelo espírito, quando este se lança até os particulares sensíveis — aqui as diferentes entidades, conforme identidades gerais, são qualificadas segundo o modo pelo qual impressionam a psique, e isso dependerá do teor típico da experiência de seu vislumbre (se ameaçador [o sol do zênite nos trópicos], se gratificante [a árvore prenhe de frutos], se salvadora [a fonte d’águas que borbulha no deserto]). Das menores às maiores “coisas”, tudo impressiona a mente ao seu modo, e aqui o Intelecto e os afetos se revolvem. Os afetos têm uma matriz originária de tipo intelectivo, porque as qualidades substanciais daquilo que se divisa correspondem a emoções adequadas, mas lançam raízes profundíssimas no corpo, com ampla influência das excitabilidades orgânicas e das inclinações instintivas inatas, com seus apetites viscerais, e são lapidados muito mais pela relação existencial, contínua e multimilenária com os particulares sensíveis, isto é: cultural, do que do cotejar contínuo das contemplações.

… só poder ser símbolo ou arquétipo a partir do momento em que ele passar a exprimir algo da natureza humana universal…

O modo psíquico de apreensão e de habitação daquilo que insta no mundo exterior respeita a uma estrutura generalizante qualitativamente distinta daquela que pertence às coisas mesmas e às quais o Intelecto discerne (os universais), porque o que, percebido, impressiona e passa a habitar psiquicamente, na medida em que objetivamente possui qualidade psíquica (do contrário não poderia existir psiquicamente), assumirá lugar segundo seu valor psíquico — algo de intelectivo, mas sobretudo afetivo (com teor societário) e prático (mnemônico e instintual). A recorrência experiencial junto dos mesmos estímulos ambientais e segundo as pressões orgânicas, às quais reagem ao meio, compôs categoriais ínferas, um misto do conhecimento que a espécie tem das coisas com a inclinação habitual que se deve ter para com cada uma delas — daí não existir um arquétipo “cachorro”, porque todo o arquétipo é sobre a experiência típica da humanidade primitiva com o mundo, donde corresponder a uma relação recorrente do homem com as coisas e, por conseguinte, servir a uma função de movimento, como um tipo de especialização dos instintos. Não haverá um arquétipo “cachorro”, porque o arquétipo em si não é uma imagem ou uma coisa — ele é uma inclinação ou uma disposição inata, de tipo psíquico, vinculada à coisa exterior tal como ela habitualmente existe para o homem e segundo momentos estereotipados. Essas inclinações, despertadas pelo estímulo, podem assumir formas imagéticas que sejam análogos do objeto do estímulo e do significado psíquico deste objeto, junto da inclinação estimulada — donde a forma imagética, ou a imagem arquetípica, não ser impressão idêntica, como éctipo, dos particulares sensíveis, uma espécie de cópia, mas um verdadeiro símbolo, porque funde em si o signo da coisa e um significado de tipo existencial, relacional, que está para além da coisa em si, mas eminentemente no homem. Donde “cachorro” só poder ser símbolo ou arquétipo a partir do momento em que ele passar a exprimir algo da natureza humana universal, um aspecto perene da relação do homem com o mundo, o qual terá analogias com o que se observa do comportamento canino — essa percepção das coisas, eminentemente afetiva, mas bem servida das intelecções primárias, é a linguagem poética, ou hieroglífica, primeiríssima modalidade linguística da humanidade.

A instância Imaginal, o lócus das formas ou análogos psíquicos das coisas exteriores, gerados segundo estampagens do ambiente no sistema psíquico, que é conforme uma infraestrutura arquetípica visceralmente condicionada, é uma constante da experiência humana no mundo e deve habitar tanto os indivíduos, na medida em que as formas psíquicas vertem no sistema psíquico, instaladas por sobre os instintos e na matriz orgânica (tal como apreendida psiquicamente), quanto a comunidade dos indivíduos, com as qualidades universais daquilo que jaz radicado no mais íntimo da espécie. Tal instância, dotada de suas próprias leis formativas, é tão determinante e onipresente, que é necessário ao indivíduo, quando deseja retornar às coisas mesmas, recuperar a experiência primária e engendradora do símbolo e discernir, por anamnese, o mecanismo que a perfaz para, de posse deste conhecimento, remobilizar as operações intelectivas primevas, bem conduzindo, segundo certas leis lógicas (que não são exatamente as mesmas leis do Imaginal), a razão — para que ela se volte mais explícita e puramente aos objetos da experiência sensível, discernindo deles os universais, e se desvie dos apelos viscerais dos afetos imaginativos. É necessário impor um severo disciplinamento na alma para suprimir a potência viscerotônica arquetípica, a qual mobiliza todo o sistema afetivo e predispõe ações e movimentos internos e externos segundo o análogo psíquico e o estímulo desencadeador correspondente, para que se possa chegar às coisas mesmas, e não a si mesmo através das coisas. Por anamnese, o Intelecto também pode chegar ao núcleo de verdade primário que está na raiz da imagem arquetípica e do arquétipo mesmo, enquanto disposição instalada pela experiência originária na Realidade, o qual corresponderá à natureza substancial do homem (por detrás dos acidentes da experiência histórica) e aos universais que subjazem nos particulares sensíveis (eles, afinal, são os mesmos desde sempre). Se o substrato profundo do Imaginal é Psicóide, porque está instalado objetivamente na matéria orgânica (na medida em que se trata do armazenamento filogenético das experiências humanas recorrentes), sua matriz é metafísica, porque é uma cumulação de intelecções originárias, e aqui os arquétipos não são mais exatamente Psicóide, mas participam do Ser, ou, como C. Jung preferia dizer, da Realidade Unitária, onde o psíquico e o material coincidem metafisicamente — daí todas as coisas inteligíveis terem uma qualidade psíquica, da mesma maneira que toda a forma psíquica corresponde a um análogo substancial transcendente.

… sobe-se do Eros Pandêmio para o Eros Urânio num salto qualitativo a partir da dialética interna do símbolo…

O processo de depuração intelectual, espiritivo, das imagens arquetípicas é a base da espiritualização, ou da recuperação do insight primário, dos arquétipos, fazendo sobressaírem suas qualidades metafísicas, ou manifestando a instância superior e transcendental daquilo que em nível Psicóide ingênuo corresponderá a um instinto de satisfação inferior, tal como ele existe psiquicamente — símbolos idênticos podem apontar para o imperativo heroico de dominação sexual de tipo orgânico e para uma verdadeira hierogamia, ou unidade espiritual com a Alma do Mundo — sobe-se do Eros Pandêmio para o Eros Urânio num salto qualitativo a partir da dialética interna do símbolo e segundo o processo de amadurecimento psíquico, chamado Individuação. Se os símbolos de cunho sexual que emergem, por exemplo, nos sonhos da juventude, invadem a psique como potências autônomas de tipo instintual, mobilizando a ação ou o movimento horizontal do sujeito — reestimulado pela excitação orgânica -, símbolos similares podem eclodir na alma do místico como teofanias numinosas, enquanto Visão e manifestações do Absoluto, inflamando o espírito e mobilizando uma excitabilidade orgânica na direção de um movimento vertical.

Em ambos os casos, em se tratando da emergência de arquétipos, depurados na experiência visionária operada pelo Intelecto, ou daqueles ímpetos sobremaneira viscerais, uma vez que falamos de experiências típicas da humanidade atemporal e de inscrições filogenéticas de tipo Psicóide (o Inconsciente Coletivo), radicadas na universalidade da forma orgânica humana e na qualidade primária das intelecções, às quais discernem os universais eternos por detrás dos particulares sensíveis, é esperado que sejam encontradas na humanidade instituições consagradas capazes de estimular e de dirigir essas mesmas experiências. Essas instituições consagradas serão formas psíquicas de qualidade societária, ou cultural, daqueles análogos psíquicos arquetípicos, e corresponderão estruturalmente ao tipo de movimento energético que mobilizam no sujeito, segundo o tempo estereotipado de sua eclosão. Por conseguinte, se o modo de existência dos objetos apreendidos e guardados na alma é psíquico e segundo as leis internas do Imaginal, o modo de existência das instituições atemporais é o do análogo psíquico em sua tônica coletiva — são epifenômenos criativos da psique coletiva, obras do espírito da espécie e proporcionam a boa realização das inclinações universais, atribuindo moldura e curso a cada uma delas. Como o análogo psíquico dos particulares sensíveis é apreendido afetivamente, e esses afetos são estruturados segundo a experiência ancestral recorrente da humanidade, não se pode determinar com exatidão o quanto a instituição foi moldada e o quanto ela moldou esses afetos e os análogos.

Não se pode dizer com certeza se, por exemplo, a instituição do matrimônio, a qual Konrad Lorenz vê como a mais fundamental e universal de todas (uma literal especialização intelectiva dos instintos), é uma resposta societária, ou a forma psíquica coletiva de um correspondente arquetípico, ou se o correspondente arquetípico está ele mesmo imiscuído dos modos habituais de realização ritual do matrimônio — porque o matrimônio, enquanto ato comunal, é também uma experiência típica da humanidade e deverá ser internalizado sob forma Psicóide, instalado junto daquele instinto sexual que o justifica em termos biológicos. Isso configura a imagem arquetípica mobilizadora do intercurso sexual nos termos de um processo, de um movimento, de uma inclinação que pede pela obediência a um “script”, a uma programação inerente: para o homem, o intercurso sexual deverá estar visceralmente ligado ao processo existencial de condução ao e de realização do matrimônio. Dessa maneira, a satisfação sexual humana, em sentido instintual mesmo, demanda um movimento que não é apenas o da aproximação do par, mas o da efetivação, em éctipo, da hierogamia — para tal, o respeito a um desdobramento estereotipado básico é necessário, segundo o movimento que está implicado no próprio arquétipo.

… os grandes símbolos são a matriz hiperurânica desses instintos…

Todas as instituições consagradas, humanamente universais, do matrimônio à parentalidade, à família e à religião, existem concretamente no seio societário e são fatos tão corriqueiros e constantes quanto fenômenos meteorológicos, por exemplo. Existem objetivamente no aparato Psicóide e são fatos infraestruturais do homem, radicadas visceralmente mesmo no homem individual. Como tais, emergem em símbolos, imagens arquetípicas, nas quais podem ser discernidos núcleos de verdade a respeito da Realidade, seja do Homem, seja do Cosmos, donde essas instituições consagradas não serem apenas material filogenético, literalmente inscrito no indivíduo — daí a compulsão de sua realização comunal -, mas expressões necessárias do Ser, do Absoluto, do Transcendente — daquilo que está na base e na infraestrutura da Criação, tal como vemos nas teofanias e nos grandes símbolos visionários das religiões tradicionais, sobretudo no Cristianismo, com suas grandes Noções do Deus Filho, das Bodas do Cordeiro, do Vento genesíaco do Espírito de Deus… Por isso os grandes símbolos não são meramente elevações racionalizadas dos instintos humanos, mas a própria matriz hiperurânica desses instintos, porque suas realizações metafísicas últimas, e a base transcendental formal, a fonte nutritiva ontológica das instituições consagradas, para as quais são arquetípicos.

Isso significa as instituições consagradas existem literalmente, não no sentido de meros mecanismos culturais de tipo contingente, mas como necessidades cosmológicas, filogenéticas e ontogenéticas — inscritas tanto no cerne do indivíduo, visceralmente, quanto na Realidade, espiritualmente. Seus modos de apreensão serão de tipo psíquico, segundo seu modo de existência no coração do Homem, e de tipo intelectivo, segundo o seu modo de existência no coração da Realidade — ambos, como supracitado, coincidentes n’última instância. Dessa maneira, todo o instinto sexual conhecerá, arquetipicamente, um itinerário, uma espécie de liturgia, de tempo interno estereotipado, que conduzirá ao matrimônio tal como conhecido na instituição consagrada, e só encontrará real satisfação existencial se, da inclinação sexual, chegar-se à coincidência com o modo adequado e o objeto derradeiro ao qual induzem o arquétipo. Não se tratará jamais, portanto, da pornográfica busca pela “coisa em si” (o intercurso puro e simples, impessoal), porque a “coisa em si” não existe psiquicamente — sempre se trata de um movimento, de um curso, de uma relação — existencial e significativa — , por isso realizável apenas espaço-temporalmente, como um processo. Isso pedirá pela referência litúrgica e sacramental matrimonial, por exemplo, que está na base mesma da organização do arquétipo, para encontrar saciamento.

A escolha do indivíduo não será entre casar ou não, mas entre realizar ou não o apetite último do arquétipo…

Conclui-se, enfim, que nunca se trata, nos termos do empreendimento existencial genuinamente humano, de simplesmente escolher não passar pelo matrimônio como resposta adequada e inscrita no próprio instinto sexual, o qual existe psiquicamente. Sem o matrimônio, e o matrimônio enquanto um referencial litúrgico e sacramental válido, esse instinto não terá envergadura existencial satisfatória — ele não terá encontrado o verdadeiro objeto de seu movimento. A escolha do indivíduo não será entre casar ou não, mas entre realizar ou não o apetite último do arquétipo instalado no instinto. Porque todo aquele que consegue encontrar satisfação existencial a partir do saciamento verdadeiro do instinto sexual terá que passar por um casamento adequado — se não for com um par, que seja diretamente naquele patamar mais elevado e espiritualizado: uma vez que não viverá hierogamia através do intercurso erótico com outrem, poderá fazer-se esposo da Igreja, ou diretamente noiva do próprio Cristo.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 10 de junho de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em antropologia e crítica literária. Casado com Gabrielle Castoldi.