Aspectos de uma Antropologia Psicológica: Casamento, família, comunidade e sociedade
Com uma interpretação breve de nosso tempo
Sem entrar em detalhes teóricos desnecessários, chamou-me muito a atenção algo da antropologia junguiana da maior importância, e que não tem relação direta com a questão do Inconsciente Coletivo e dos Arquétipos: trata-se da Tipologia e das Quatro Funções da Consciência. Brevemente, em cada pessoa se manifesta como que espontaneamente uma disposição natural predominante, seja ela Pensamento ou Sentimento (as funções racionais), seja ela Sensação ou Intuição (as funções irracionais), estruturada segundo o temperamento, se Extrovertido, se Introvertido. As díades racional e irracional polarizam, de maneira que se a função principal for Pensamento, a inferior será Sentimento, com a segunda díade a ser progressivamente estruturada como suporte ao Pensamento, enquanto a inferior permanece na região limítrofe da Consciência, no limiar do Inconsciente, podendo ser assimilada apenas tardia e parcialmente.
Pela razão de um tipo Pensamento ser subdesenvolvido emocionalmente, terá o maior prazer de delegar esta parte da vida a uma outra pessoa, livrando-se do fardo da necessária consideração sentimental de si e do Mundo, razão pela qual tenderá a casar-se com alguém oposto e que, por conseguinte, lhe complementa — motivo de casais complementares se estabilizarem bem, um se acomodando ao outro e, portanto, sendo libertado da missão de desenvolver mais completamente a própria personalidade. Casamentos conformados por pessoas de mesmo tipo tendem a ser severamente conflituosos de início, pois um projeta no outro fardos e expectativas que, difíceis para si, também o são para o par, mas é justamente no impasse que os iguais são coagidos à busca por amadurecimento, por melhores recursos — do contrário o casamento se arruinará.
… razão pela qual tenderá a casar-se com alguém oposto e que, por conseguinte, lhe complementa…
Em grupos, com a família sendo o mais elementar de todos, o bom funcionamento do todo se valerá de uma distribuição espontânea de funções entre os membros, para que todos os aspectos da economia dos afetos e da vida doméstica sejam considerados e tornados funcionais, e para que se amenizem os conflitos. Assim, um dos filhos, que demonstra maiores aptidões sensoriais e práticas, será eleito o “futuro engenheiro” da casa, enquanto um outro necessariamente deverá se feito o “padre”, tendo demonstrado uma maior aptidão intelectual e uma notável intuição.
A divisão das funções, todavia, nem sempre segue a demonstração natural das aptidões, tendendo a ser arbitrária, ou segundo o valor predominante da família, e isso pode levar um tipo emotivo a se esforçar para se tornar um exímio pensador, o que também nos ajuda a entender como em muitos famílias há a chamada “ovelha negra”, aquele filho que não conseguiu se adequar ao valor predominante e que se estabeleceu como função inferior — a “ovelha negra”, por essa razão, é tanto o sintoma da doença familiar, por isso um bode expiatório, quanto um veículo possível para o amadurecimento da família. Em cenários nos quais há mais filhos, acabará havendo competição sutil ou aberta para ver quem assumirá o papel de destaque, segundo o valor predominante, e quem assumirá os demais papéis, com alguns tendo de exercer as mesmas funções, mas sem a responsabilidade do protagonismo — o que lhes dá mais autonomia com relação ao vulto do nome e do legado familiares -, ou se excluindo do exercício da função proposta e predisposta, já ocupado o lugar — e satisfeita a demanda familiar — por outro, talvez mais bem dotado para fazê-lo ou mais ambicioso e motivado para ocupá-lo. Em todos os casos, os conflitos entre irmãos e, em menor escala, dos filhos com os pais, quando há competição de função, podem ser importantes para o desenvolvido e a complexibilização das personalidades e para uma vida familiar mais rica e arejada, ou menos rígida e opressiva.
… os conflitos entre irmãos podem ser importantes para uma vida familiar mais rica e arejada…
No campo das sociedades primitivas, há uma forte tendência à estabilização e à rigidez, que se expressa em uma quase imutabilidade ou cristalização cultural, a qual pode perdurar por milênios. Os sujeitos introvertidos, mais intuitivos e irracionais, acabarão ocupando a vital função de bem comum do curandeiro e chefe religioso, visionário e semeador de ideias e de possibilidades, enquanto o sensorial poderá ser um excelente caçador ou sentinela, cumprindo um papel produtivo e defensivo, com as funções racionais (Pensamento e Sentimento) mais ligadas aos líderes e reis, que serão também os condutores dos negócios militares. Nesse tipo de sociedade, os sujeitos estão tão bem encaixados, e de uma maneira tão bem firmada pelos séculos, que se acostumaram a operar segundo uma única função, a sua principal (ainda quando não a de nascimento); cada um está tão inteiramente enraizado em sua própria “casta” e a vida comum está tão bem ordenada, que praticamente não há progresso ou novas necessidades de adaptação. Em crises severas, que ameaçam a estrutura social, a tensão é resolvida com o estabelecimento de um bode expiatório, um estrangeiro ou o próprio rei, e com o seu sacrifício pela turba — outros ritos comunais servirão para conservar o bom metabolismo da comunidade, abrindo algumas margens para modos de ser que não são permitidos na vida ordinária, ou diurna. Crises excessivas, de longa duração e de impacto terrível no ambiente natural e na estrutura comunal, quase sempre são insuportáveis para essas sociedades, que se extinguem ou entram em um processo severo de degeneração autoaniquilativa, dominados pelo seu negativo sombrio, feito das forças ínferas e demoníacas, as mesmas que antes conseguiam manejar simbolicamente no ambiente controlado dos rituais.
… entram em um processo severo de degeneração autoaniquilativa, dominados pelo seu negativo sombrio…
Em nossa sociedade, aponta von Franz (Psicoterapia), um exemplo de como tendemos a dar destino para as funções inferiores, que são necessárias para viabilizar a vida comum, está no lugar ocupado nas casas pela chamada “doméstica”, a quem são atribuídas as competências que não combinam com o valor predominante da família e que são indesejáveis para os membros da casa. O mesmo para o papel da “secretária”. Em sentido mais amplo, nas nações mais desenvolvidas são os estrangeiros que vêm ocupar os lugares vitais rejeitados pelos nativos, como as fábricas, a construção civil e outros serviços básicos — realizam, assim, operações que são da maior importância para a sobrevivência e para a ordem sociais, enquanto viabilizam uma acomodação mais completa e unilateral dos “da casa”, que vão se tornando cada vez mais incapazes de lidar, em termos coletivos, com as necessidades e as demandas da sociedade que seus pais fundaram, acabando por se guarnecerem nos lugares mais privilegiados e protegidos, enquanto se reduzem e enfraquecem paulatinamente, porque a própria necessidade reprodutiva fica em segundo plano.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 5 de outubro de 2024.