Barbárie Brasileira
Dos sinais de nossa derrocada civilizacional
Todo o dia estou tendo que bloquear vários anúncios do “tigrinho”, mais um negócio de apostas. A proliferação de jogos de azar em nossos dias, concomitante com a uniformização musical — e de dois ou três tipos musicais corruptores da inteligência e da moral — e a sexualização geral dos hábitos e condutas e dos pensamentos, são evidências óbvias de um franco processo de barbarização e de decadência civilizacional no Brasil. Isso não tem como não acompanhar um aumento vertiginoso na violência civil, baseado num alastramento epidêmico de todos os vícios, e não está desvinculado do estabelecimento de novos cultos de tipo mágico, altamente materialista e egocentrado, fundado em interesses de poder para status e enriquecimento fácil, tão vinculado que está ao consumo ensandecido, assustadoramente inflamado na loucura de massa que vimos nas ruas no final de 2023, a qual surpreendeu até mesmo os comerciantes e que não parece proporcional ao crescimento da pobreza. Como diria Hermann-Hoppe, o aumento da preferência temporal, que lança raízes no agravamento da violência e na instabilidade política e econômica, faz progredir o imediatismo, como sintoma do desespero das massas. Com esse tipo de imediatismo, nos ensina Jordan Peterson, progridem todas as imoralidades, com os atemporais sintomas babilônicos da proliferação das superstições e da magia negra, dos morticínios e dos festins orgiásticos.
É possível falar de decadência civilizacional do Brasil, sim! Porque uma civilização, conquanto não prescinda de uma robusta infraestrutura material, sem a qual é impossível, é um monumento da inteligência humana, uma expressão do espírito e um manancial de inclinações gerais, organizadas ao redor de princípios determináveis. Nosso vício moderno nos faz confundir civilização com riqueza ou “desenvolvimento humano”, levando-nos a ignorar o óbvio de que, conquanto deva haver substancial riqueza e uma certa superioridade na qualidade de vida, uma civilização é, sobretudo, um tipo de ordem social mais ou menos de envergadura continental, radicado num culto eficaz, legitimador de uma moral ligeiramente compartilhada, que viabiliza o compartilhamento de valores, sustentado pela coincidência de instituições, e que legitima um tipo de regime político guarnecedor das possibilidades comerciais e do intercâmbio de culturas. Nesse sentido, ainda quando o desenvolvimento social aparentemente progrida, a perda dos valores, que acompanha o definhamento do valor do indivíduo pelo enfraquecimento da família e de outras instituições basilares, abalados todos pela crise de legitimidade no Culto da Cultura, ou da Igreja, e pela subsequente tiranização do poder político, crescentemente desprovido de autoridade natural e dado, portanto, à imposição burocrática e ao constrangimento jurídico, deve sinalizar uma regressão do espírito, ou uma capitulação das potências intelectivas que, via tradição, conformaram a civilização. Essa diminuição do valor do indivíduo pela falência geral das esferas sociais, que dão numa supremacia do Estado, desponta com todos os sinais de bestialização já apontados.
Pode-se argumentar que a entrega mais geral aos jogos de azar e à libertinagem, assim como aos cultos de tipo mágico, se deve naturalmente a um aumento da liberdade pessoal, resultado de uma diminuição dos constrangimentos sociais — o que quer dizer: da transição de um cenário sociocentrado para um cenário liberal. Não rejeito esse apontamento, na medida em que ele não é de todo errado. É óbvio, claramente, que a quantidade de homens e mulheres moralmente robustos, espiritualmente acesos, nunca foi máxima e que sempre houveram degenerados, de tipo antissocial, imoral, cínico e antirreligioso, mas não se deve ignorar que a falência do Culto e de instituições como a família, sustentáculos da moral pública e do constrangimento social à expressão explícita e à promoção aberta de vícios e promiscuidade, tem diminuído vertiginosamente a amostra virtuosa da sociedade, e que essa desproporção inédita determina boa parte da vigente decadência, sendo ela seu resultado, mas também sua geratriz — houvesse uma grossa fatia da sociedade ocupada em se posicionar efetivamente em defesa da moral pública, dos bons costumes consagrados e através do fomento de instituições consagradas, obviamente os chacais não se sentiriam tão confortáveis na exposição notória de obscenidades e na promoção inflamada de toda a sorte de vícios, de procedimentos feiticeiros para o “sucesso” e de outras pulsões do baixo ventre. É claro que algo da moral geral foi de fato modificado, porque a mentalidade necessariamente muda para suportar constantes pressões de estímulos desvirtuados e para que o nível de tolerância ao feio e ao vulgar aumente, contudo, a fatia que se percebe apegada a certos princípios convencionais e a demais pudores é, como deve ser, maior do que aquela de estirpe filistina e barbárica. Todavia, ser uma maioria, e a história o demonstra, não é garantia de nada.
… é inestimável para a ordem social a proximidade da religião da cultura […] do poder político…
Lobaczewski identificou como suficiente para a desarticulação irreversível da ordem social consagrada a viabilização das ações públicas de uma minoria de seis por centro de elementos antissociais. De fato, uma minoria salteadora, quando deixada livre para agir, se não quando autorizada subterraneamente pelo Poder, perturbará a paz social de uma maneira tão dramática, ao ponto de conduzir a um aumento geral da preferência temporal e a um empobrecimento material de curto prazo, assim como a um empobrecimento cultural de longo prazo. Isso significa que a existência de uma maioria prossocial, conquanto seja necessária e incontornável, é um fator provavelmente menos determinante, para as garantias da ordem social, do que a existência de um Estado justo, com todos os seus poderes bem articulados e conduzidos virtuosamente, segundo o consenso do culto fundador, que é, no Ocidente, o consenso cristão, ou o Quatro Poder de Montesquieu, como base de equilíbrio e de regulação dos Três Poderes republicanos. O que significa que é inestimável para a ordem social a proximidade da religião da cultura, que é a religião massiva da população civil, do poder político, o qual autoriza como instrumento eficaz de justiça pública, ao mesmo tempo em que este, por seus apelos à moral cívica, consolida o lugar vital da religião majoritária — por majoritária, não necessariamente a mais numerosa num dado momento da história, mas a mais determinante para a formação de todas as instituições societárias da sua nação, ou da nação fundada desde dentro de si. Numa sociedade tradicional de tipo indo-europeu, vemos aqui a correspondência vital entre a casta guerreira, que é de onde vem o rei, e a casta sacerdotal, que unge o rei, mas que também instrui os rebentos da classe política, dando formação ao sucessor do trono desde a mais tenra idade. É altamente sensível a condição de uma religião tradicional, fundadora de nação, num contexto no qual ela esteja de todo excluída dos interesses do Estado, que a tenta dominar e reordenar, para que silencie suas vozes opositoras e, parasitando-a, destine seu vigor moribundo para a sustentação do regime, o qual defende uma moral pública contrária à dos preceitos religiosos, que ainda pertencem à mentalidade popular. A relação entre Igreja e Estado é, no Ocidente, um elemento indispensável da ordem pública — uma tensão que, da tendência à rivalidade ou polaridade, também converge em complementariedade, na medida em que ambas as instituições coincidem no apelo prossocial — que a Igreja fomentará pela via doutrinária, radicada na piedade, e que o Estado só poderá empreender enquanto for efetivamente justo, ou instrumento de reta Justiça, que é a atribuição de penas e de benefícios devidos a cada um conforme os méritos de suas ações.
No Brasil, como noutras nações ocidentais, a moral pública tem sido dilapidada pelas duas frentes: o esmorecimento da legitimidade social do Culto, que perde, nos sentimentos populares, o sentido primeiro e a eficácia ritual para a expiação das culpas morais e a retificação ou o disciplinamento dos erros e dos apetites, na medida em que se permite dessacralizar, antagonizado frontalmente pelos valores defendidos pelo Estado, o qual, por sua vez, inimigo declarado do Culto, donde o agravamento de sua ineficácia, já não pode mais ser moralizado ou autorizado pela Fé enquanto instrumento da reta Justiça, que é incapaz de aplicar verdadeiramente. Um Estado burocratizante, movido pela máquina legislativa, evidentemente pautado nos interesses internos de fomento de uma classe política e dos interesses de uma elite econômica e revolucionária, já não mais transparece legitimidade, donde, sustentado por uma intelectualidade titância ou filistina, autoriza veladamente toda a miríade de “subclasses” (Dalrymple) às ações mais subversivas, que deploram de todo os sustentáculos tradicionais da vida comum, escarnecidos e depredados literal e moralmente. Quando o crime passa a compensar, apenas a magnanimidade pessoal, obstinada ao redor dos valores antigos e dos hábitos, explica a permanência no Justo — principalmente em um contexto no qual, em crise a Fé, o senso do Sagrado sobrevive tão somente como um temor sutil, uma categoria remanescente no espírito, de inércia própria e mantenedora de certos escrúpulos. Um tal estado de coisas torna, contudo, a vida do espírito, que é também a vida civilizada, impraticável após o desenrolar dos tempos. É praticamente impossível que o homem médio suporte pressões tais por anos a fio, após os quais necessariamente se rende, exaurido de suas forças morais, sabotado nas virtudes pelos vícios crescentes, dessensibilizado diariamente por apelos públicos à visceralidade e, sempre mais solitário em sua luta, sem mais justificativas para resistir.
Carl Jung deixou claro que o homem médio, que é a amostragem comum de um povo, o que significa que não se fala daquele com vocação mística ou excepcionais vida de espírito e envergadura intelectual, depende largamente do amparo institucional da religião organizada, e de uma religião organizada cujos valores se encontrem espelhados no ambiente público, para continuar nutrindo experiências significativas com o Sagrado e com a fonte profunda dos valores e do sentido da vida. Se há larga dissonância entre os valores da religião organizada e os da praça pública, ele rapidamente se secularizará pelo simples fato de estar mais tempo e imerso de maneira mais completa na vida cotidiana, ou profana, e se a religião organizada já não mais consegue cativá-lo, por parecer-lhe sobremaneira irreal ou incognoscível, ele já não terá mais meios de experimentar elevação de tipo espiritual, porque provavelmente não conhecerá alternativas cultas análogas, embora menos prontamente eficazes, como a literatura consagrada ou outras expressões artísticas clássicas e sublimes. Ele rapidamente, portanto, sucumbirá, vulnerável, ao sistema de coisas da “praça pública”, que é aquele que lhe resta — sendo ele exteriorizado -, e buscará suprir seus apetites “religiosos” pendentes, agora regressivos aos níveis mais baixo pela perda do Culto, em religiosidades de massa, representadas por “cultos” do sucesso, por feitiçarias de prosperidade e por festins fundados em música “selvagem” (Bastide) e todo o tipo de vício, como verdadeiros frenesis dionisíacos.
… a moral pública é necessariamente vigiada e validada por um governo que seja virtuoso e justo…
A inteireza da argumentação culmina num ponto que hoje me é incontestável: a moral pública é necessariamente vigiada e validada por um governo que seja virtuoso e justo, um governo ordenado segundo a disposição bífida da Fé e do Estado. Mesmo que as pessoas comuns tendam ao conservadorismo, elas são altamente volúveis ao clima social e, embora sigam, em média, sempre na proximidade de uma mentalidade conservadora, se tornam facilmente reféns de uma minoria selvagem, quando desprotegidas de instituições legítimas e de considerável poder de constrangimento cívico. E mesmo essa média mais “conservadora” tende ao declínio vicioso, com facilidade espantosa, se a Fé perder o apelo público e a legitimidade radicada no Sagrado, deixando de oferecer um suporte exterior para os apetites espirituais do indivíduo, que direcionariam para o Alto o seu padrão de nutrição religiosa, porque ele, via de regra, depende excessivamente daquilo que lhe é oferecido para que possa desenvolver suas faculdades mais elevadas. Uma vez que a integridade do Culto é assaltada, o cidadão médio é facilmente arrastado para “fora” e seus apetites “espirituais”, rebaixados para o nível de sua própria personalidade, serão desviados para selvagerias e tribalismos debilitantes e potencialmente fatais.
Eis, portanto, uma das falácias do liberalismo ideológico: a de que a livre escolha pessoal sempre leva aos melhores caminhos gerais. É enganoso, pois, atribuir excessiva liberdade natural ao homem, e é ainda mais enganoso imaginar que o homem médio, se inteiramente livre, saberá como decidir e o que decidir, e se ele realmente estará decidindo o que acredita decidir quando o decide. O homem, excetuando-se casos extraordinários, tende a ser mais reativo ao meio do que propriamente emissivo, o que quer dizer que, de seu “cérebro-colmeia”, ele mais facilmente se adapta do que se opõe ao estado de coisas que lhe é oferecido. Digo-o em termos de cultura, e digo-o principalmente nos termos de uma cultura massivamente citadina e despersonalizadora. Sem a Igreja, ou o Sagrado, que o elevaria forçosamente para além do espectro material, realmente não lhe sobram meios de resistir à turba.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 15 de janeiro de 2024.