Civilização — Uma Síntese

Em Corção, Franca, Eliade, Jung, Otto e Giergerich

Natanael Pedro Castoldi
9 min readJul 8, 2023

A definição de Civilização como a envoltória solar ionosférica, que contém dentro de si as camadas diurnas (a Grande Tradição [ciência, arte, ética, as escolas filosóficas…] e o Consabido [os eventos culturais do momento, como as modas, os entretenimentos, as notícias e outras afirmações pontuais de valores compartilhados]) e as camadas noturnas, ou telúricas da cultura (o ambiente material, popularesco e local, e institucional e político que cerca o indivíduo), me magnetizou profundamente. De alguma maneira, o gérmen da Civilização é o que antecede, ao menos no que diz respeito à importância, todo o restante, porque lança raízes numa experiência intensa, quando não hierofânica, num dos aspectos da Realidade, ou mesmo do Ser — basta perceber como todas as grandes civilizações se desdobram a partir de um dos aspectos perenes do Ser, conforme concebido pelo herói fundador e pelo contágio generalizado de sua aventura espiritual.

Os persas clássicos foram inteiramente submergidos no impacto das intuições de Zoroastro a respeito da univocidade ontológica da Luz, legando aos demais povos uma herança mística e filosófica que frutifica até hoje; os egípcios antigos arquitetaram sua civilização a partir de um impressionamento irresistível frente à ideia da imortalidade, transmitindo ao mundo, além de seus complexos monumentais, um intrincado instrumental técnico que serviu aos mistérios, à alquimia e aos alvores da ciência europeia; os gregos, perceberam Brague e Campbell, foram arrebatados por um ímpeto naturalista da afirmação do lugar do homem dentro do Cosmos, e sustentaram sua autonomia e liberdade diante da Thêmis, ou da Lei Universal, e na relação com os seus deuses, desembocando na filosofia; os mesopotâmicos, já nos sumerianos, foram engolfados precocemente pela percepção da ação divina dentro da História, sobretudo através da atitude litúrgica de seu primeiro servo, o rei, já não mais divino em si, donde uma prolífica atividade no complexo Templo-Palácio, responsável pela abundante produção de registros escritos, dentre os quais os historiogenéticos, que conectam as dinastias reais aos primeiros homens e, então, aos deuses; os hebreus, imersos na nuvem faiscante do Sinai, foram desde o início apreendidos pela Palavra, ou pelo Nome, sustentando de maneira inédita a transcendência de Deus, a Sua Revelação e a obediência aos Seus estatutos, identificando a própria estrutura da Criação à forma do alfabeto e à infraestrutura da Lei, que também era o modelo de organização da sociedade.

Em nenhum dos casos supracitados, a experiência fundadora foi pura ou inteiramente inédita, porque sempre aconteceu dentro de uma estrutura civilizacional, ou tribal, anterior. Todavia, em todos os casos temos uma descompactação de símbolos anteriores e o destacamento inédito, e por isso numinoso, de um dos aspectos do Ser, que outrora jaziam ocultos sob a sombra ou o império de um motivo simbólico dominante mais antigo, que impunha sua lógica interna à toda a arquitetura imaginal do conjunto da sociedade. Quando um dos aspectos encapsulados no símbolo antigo é destacado, geralmente em função da experiência de um indivíduo de matiz abraâmico, ele se eleva sobre todos os demais como o sol auroral, impondo sua luz sobre tudo e o submetendo ao seu arbítrio — é assim que Edinger descreve, por exemplo, a superênfase pitagórica no Número. Esse despertamento hierofânico precisa se alastrar em toda uma comunidade de povos, dotando-os de uma nova consciência, geralmente a partir de um novo Culto e de uma nova ideia do Sagrado, que, pois, irradiará sobre todos os aspectos da cultura e os “reinformará” conforme as possibilidades de sua geometria interna. Inicia-se, assim, dessa nova aventura no espírito, o empreendimento civilizacional que se desenrolará por séculos ou milênios, até ver exauridas as possibilidades de seu arquétipo fundamental, quando a civilização, em progressão de complexidade, entra em crise e começa a definhar sobre o seu próprio peso, encaminhando-se ao colapso e à absorção de seu legado por uma civilização crescente, magentizada por um outro ímpeto hierofânico, caso não se reforme internamente.

Tomo emprestada a ilustração de Corção para Civilização: ela pode ser pensada nos termos do Inconsciente Coletivo segundo Jung. E, realmente, o Inconsciente Coletivo, conforme Aniela Jaffé, discípula e intérprete de Jung, não é propriamente um produto dos instintos, e nem a formação e a manifestação dos arquétipos resultam de inclinações instintuais ou pressões orgânicas (Campbell), porque o instinto não é mais do que um “‘tipo de natureza apriorística’ ordenadora da esfera biológica”, enquanto o arquétipo é um “fator estrutural da esfera espiritual-psíquica”. Ambos, instintos e arquétipos, são uma espécie de conhecimento a priori, e tendem a adequar o sujeito às demandas da vida — o instinto de fato corresponde à envoltória telúrica, enquanto o arquétipo terá sua matriz no andar acima do firmamento solar. Por seu comportamento, o arquétipo atuará como um instinto, já que estrutura a vida mental desde uma fonte ou de uma tectonia que não são exaustivamente apreensíveis pela consciência.

Caracterizando o arquétipo como instinto ou ‘padrão de comportamento’, foi registrado apenas um lado do modelo, ou seja, o aspecto biológico. O seu polo oposto é caracterizado, com igual justificativa, como o ‘elemento próprio do espírito’. Como vimos, o arquétipo age como uma espécie de ‘conhecimento’ inconsciente e, além disso, representa um ‘modelo espiritual’ no sentido platônico. — O Mito do Significado, p. 35

A qualidade espiritual do arquétipo, afirma Jung, está evidente no seu modo de manifestação: ele sobe à consciência, num primeiro momento, como um nume. Trazendo consigo, encapsulada na imagem, uma realidade inteira (W. F. Otto), a partir da qual todo o Ser pode ser referido, atua com alto nível de autonomia, porque nem sua causa e nem sua natureza são cabalmente inteligíveis — da imensa complexidade dos mundos exterior e interior, o que exatamente puxou o arquétipo, ou a sua forma, à consciência, é praticamente impossível de saber, de maneira que a sua forma de manifestação se parece com aquela da Revelação, donde o espanto e o medo. Disso se pode facilmente perceber que o modo de manifestação da forma arquetípica é sempre sentido como o de uma descida do divino, de um aspecto superior da Realidade, não como a emergência de ímpetos meramente bestiais. E é por meio dessa eclosão da forma arquetípica, que é propriamente um símbolo capaz de unir setores da realidade empírica ao Sentido, à Transcendência, que se sacraliza a vida cotidiana, totalizada no Divino através do Sagrado. Alguns arquétipos muito elementares são o fundamento e possibilidade de qualquer comunidade humana, como o de Centro, que emerge na consciência coletiva pela hierofania, ou demarcação do Sagrado na geografia (um “deus momentâneo” [como o rio milagroso, que aparece à visa na ocasião da sede], uma árvore ou rocha de proporções e formas anormais, o ponto exato de um derramamento de sangue…), e agrega ou vitaliza toda aldeia ao seu redor. Em todos os arquétipos estão encapsulados ou sugeridos todos os demais, e vai depender de quais experiências hierofânicas ou arquetípicas forem vividas por populações diversas para que suas culturas se especializem numa ou noutra direção, conforme a lógica interna daquele aspecto do Ser que dominou o imaginal.

É digno de nota que a teoria junguiana do Inconsciente Coletivo, quando amadurecida, não considera a sua existência como necessariamente devida ao progredir da história humana. Primeiramente porque, ele supõe, os arquétipos têm uma natureza que não pode ser chamada propriamente de psíquica, porque a natureza real do arquétipo dentro do Inconsciente Coletivo é irreconhecível e, não suscetível de uma definição final, se assemelha mais a uma entidade metafísica. Veja bem: o que realmente ocorre não é que vemos os arquétipos, mas as formas arquetípicas, que são símbolos com qualidades universais e atemporais, mas esteticamente adaptados às maneiras do imaginário local — o arquétipo, que é o “molde”, não é visto diretamente e, tampouco, o que está além dele e que o contém. Por isso, Jung o denominou “psicoide”, “semelhante à alma”: uma entidade de natureza dual, que aparece psicologicamente, mas que tem uma raiz não psicológica. Nesse ponto, adentramos no reino do Espírito e da apreensão Intelectual da Realidade e do Si-Mesmo. Wolfgang Giegerich (A Vida Lógica da Alma) assumirá o Inconsciente Coletivo nos termos do Absoluto, porque ele contém dentro de si a Anima, ou a Alma, e todas as possibilidades arquetípicas e imagéticas — o Todo é maior do que as partes, afinal. Todavia, nunca podemos pensar o Absoluto absolutamente, mas apenas indiretamente, através de uma das suas partículas, pela qual o sentimos, mas não o entendemos.

Toda essa argumentação deve culminar num retorno à definição de Corção para Civilização:

… além dos hemisférios inconscientes do psiquismo voltado para a sensibilidade, onde se alimentam as raízes de nossas emoções, de nossos afetos e de tantas reações nossas às vezes incompreensíveis, temos em nós instâncias psíquicas mais espirituais do que sensíveis, formadas por idéias, critérios, valores, experiências morais e intelectuais invisceradas, assimiladas profundamente, e organizadas num sistema interior, numa espécie de dogmática interna que o homem a cada instante, instintivamente, com o instinto dos ‘habitus’, consulta para aquilatar algo que o mundo lhe apresenta, ou com que a vida o desafia. É nessas profundidades da alma que se alimentam as raízes das virtudes morais e poéticas… — Dois Amores, Duas Cidades

Do encantamento pela hierofania, ou do apelo magnético exercido pela eclosão numinosa de um dos aspectos do Ser, um grupo populacional desenvolve e complexibiliza todo um sistema de valores e toda uma trama significativa, que abarca e cativa todas as áreas da vida, num processo cumulativo de milênios, até o esgotamento. Isso se dá porque, como afirma Corção, uma das mais ardentes necessidades humanas é a de pôr em concreto, com máxima literalidade, a forma interna de suas ideias e aspirações, e ele seguirá nesse empreendimento indefinidamente, até que os limites naturais de sua inteligência e de seus recursos, e até que os limites lógicos do objeto de seu apaixonamento, sejam atingidos. O gérmen da Civilização está nessa descoberta, via Intelecto, da Realidade, e a Civilização em si aparece na realização multissecular de um sem-número de pessoas, em maior ou menor grau integradas na aventura espiritual originária — e até inconscientemente, pelo simples fato de se servirem de instituições arranjadas dentro da envoltória solar. O Pe. Leonel Franca é preciso ao afirmar que a Civilização, enquanto empreendimento cultural de máxima envergadura, é obra da qual o homem não pode se esquivar, porque é a realização, o Ato, de suas possibilidades espirituais. Mas, como vimos, essas possibilidades aspiram, através da parte, o Todo, de maneira que o Ato, ou a realização máxima de todas as possibilidades humanas, só se satisfará com uma Civilização Universal, que seja palco, em visível, de tudo quanto esteja ao alcance do homem — isso apenas o próprio Criador do homem poderá fazer por ele, na Eternidade, quando o Absoluto, ou o objeto último do Intelecto, for desvelado aos salvos na Nova Jerusalém.

… a Civilização é obra da qual o homem não pode se esquivar, porque é a realização, o Ato, de suas possibilidades espirituais

A conclusão dessa extensa exposição é simples: a possibilidade da Civilização e de sua cultura é devida à Inteligência, ao Espírito, e não à fontes meramente materiais, geográficas e instintivas; a Civilização, o que está evidente em sua longevidade, sempre tem algumas raízes na própria estrutura da Realidade, de modo que pertence à natureza da Criação — quando Deus fez o Homem, fez, em potência, a Civilização; existiram povos e culturas vis, e civilizações doentes, porque a imperfectibilidade, ou a não-totalidade, ou o não-ser, são elementos inerentes à obra civilizacional, e a adoração imperativa de um aspecto da Realidade pode trazer consigo distorções compatíveis com a idolatria; o conceito de “cosmovisão”, tal como temos visto ser vendido no Brasil, não pode corresponder ao ao que ele afirma de si: não pode estar nessa ideia de cosmovisão a fronteira última do espírito humano e de suas possibilidades de compreensão e ordenamento da Realidade, porque a verdadeira infraestrutura do pensamento humano e de sua ação no mundo não está propriamente em crenças afirmadas ou doutrinas confessadas, mas nessa envoltória solar sobremodo inconsciente — n’última instância, o cosmovisionista reformacional se parece muito mais com um ocidental cativado pelo materialismo individualista, facilmente resumido em liberalismo, do que com aquilo ao que ele gostaria de se assemelhar (se é que consegue pensar-se para muito além dos limites permitidos pela arquitetura de seu universo mental). Ao fim e ao cabo, este indivíduo jazerá atuando dentro dos limites permitidos pelo habitus civilizacional.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 6 de fevereiro de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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