Cognição na Religião Primitiva
Da neuropsicologia da fé
Os grandes primatas e os seres humanos possuem uma inteligência social altamente especializada para a resolução de conflitos internos, evitando a violência intragrupal. Há, todavia, uma distinção muito clara entre esses e aqueles: enquanto os grandes primatas são dominados pela dimensão comportamental inata, etológica, os humanos são dirigidos pela chamada “dimensão específica”, decorrente da mistura entre etologia e cultura. Noutros termos: conquanto o homem possua certos comandos éticos de matiz etológico (animal), ele não está preso nessa dimensão.
Os chamados instintos são revestidos imageticamente e aparecem à psique na forma de arquétipos
A verdade é que o ser humano não tem mais acesso automático aos conteúdos etológicos (que estão retidos no inconsciente), precisando de sinalizadores ambientais de natureza social que evoquem imagens e respostas arquetípicas associadas a problemas morais presentes, imagens e respostas prenhes de conteúdo cultural. Isso significa que os chamados instintos, no homem, são revestidos imageticamente e aparecem à psique na forma de arquétipos — não se trata, por conseguinte, de uma obediência instantânea e involuntária ao ímpeto instintivo, como nos primatas. Por isso a mente humana é tomada como transdominial metarrepresentacional, qualificada “para recorrer metaforicamente a ‘conhecimentos’ inatos, presentes nos módulos mentais especializados que compartilhamos com nossos ancestrais, dando-lhe sentidos e usos absolutamente inovadores, culturais e circunstanciais” (Daniel Barreiros)
A cognição dos primatas superiores é modularizada: possui módulos mentais dedicados ao manejo das relações sociais. Contudo, esses módulos nem sempre se interpenetram. Os chimpanzés, por exemplo, regulam as relações dentro do grupo por meios diversos, dentre os quais demonstrações de força e de status, no entanto são incapazes de tomar algum objeto exterior, como uma pedra, uma pena ou um graveto, e utilizá-lo para os mesmos fins — sua relação com o ambiente material nunca é assumida nos termos de status. O homem, porém, possui uma estrutura transmodular, de maneira que é capaz de conduzir o jogo do status e da regulação social para dentro das coisas, transformando objetos em motivos sociais. Essa qualidade transmodular, ou transdominial, conduz à metarrepresentação, pois o homem se torna capaz de auto-observação, como se visse a si mesmo externamente. Essa capacidade, influenciada pela “bagunça” que a informação cultural lança sobre a etologia, também nos capacita a ver o outro, aquele que está fora do grupo, de uma maneira inclusiva.
Veja bem: a cognição do chimpanzé, modularizada, mas pouco dialética, é capaz de regular a violência interna do grupo, mas não possui recursos para aplacá-la na relação com um chimpanzé de outro grupo, que será morto na primeira oportunidade. O ser humano carrega uma predisposição intersocietária que inexiste nos primatas superiores, porque consegue refletir e realizar escolhas comportamentais, dada a sua qualidade transdominial metarrepresentacional: ele pode observar de “fora” seus algoritmos de forte carga etológica e decidir que tipo de vazão dará a cada um deles. Essa qualidade nos permite aplicar os algoritmos dedicados às relações intragrupais para indivíduos que não pertençam ao grupo, de maneira que somos capazes de vê-los como “um de nós”. Contrariamente ao chimpanzé, podemos aplicar nossos comandos de regulação social intragrupal a pessoas ou grupos externos.
Essa mesma vicissitude cognitiva é a que nos permite falar com animais domésticos, ainda que saibamos que eles não entendem, e a tratar criaturas doutras espécies como sujeitos. É, portanto, também daqui que tiramos nossa abertura animista à realidade, assumindo coisas ou fenômenos como manifestações de uma intenção pessoal preternatural. Na medida em que somos capazes de nos observar exteriormente e que esse mesmo mecanismo nos leva a interagir pessoalmente com seres impessoais, nossa mente transdominial metarrepresentacional não se contentaria com menos do que a projeção exterior de um Supereu, de uma Pessoa Divina que nos observa e com a qual interagimos por meios indiretos.
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Daniel Barreiros, de quem extrai as informações acima, desenvolveu seu argumento na direção do conceito de paz intersocietária — da qualidade humana de resolver conflitos entre grupos através de tréguas, tratados e etc. As aplicações à religião primitiva são por minha conta em risco.
Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 8 de março de 2022.