Como Jonas, no Ventre, Esteve no Santíssimo
Um estudo em mística cristã
Existem três conexões diretas entre a história do profeta Jonas e o Dilúvio. A primeira é o seu nome, que significa “pomba” e que está ligado ao seu papel de arauto da paz após um período de cataclismo terrível. É ele que em 2 Rs 14:25–28 profetiza a recuperação e a estabilização das fronteiras de Israel após um longo período de ataques e invasões sírias — isso de fato se cumpre, e o reino de Jeroboão II é um dos mais pacíficos e prósperos depois do reinado de Salomão. A pomba, enquanto arauto do apaziguamento do Mundo, aparece em Gênesis 8:8–12 — ela paira sobre a face das águas diluvianas e regressa com um ramo verde, anunciando que a Criação renascia. A segunda é a de como Deus, por meio da pregação de Jonas e do arrependimento de Nínive, poupa também as vidas de todos os rebanhos e animais dos ninivitas, porque já não julgaria a Grande Cidade como fizera com os antediluvianos e com os egípcios. A conservação dos animais, a preocupação do Senhor com cada um deles, é uma espécie de repetição antitípica da Arca. A terceira conexão, que conjuga Noé, Moisés e Elias, é o cercamento pelas águas como uma imagem da Morte (Jn 2:5) — não é sem razão que a Travessia do Mar Vermelho é uma imagem do Dilúvio e um tipo do batismo cristão, porque aos abismos se desce e por eles se passa, para deles retornar como quem vai da Morte para a Vida (daí a conexão que o próprio Cristo fez entre a Sua Morte no Sepulcro e o “Sinal de Jonas”).
A respeito do tempo diluviano de Jonas no ventre do Peixe e de seu magnífico salmo em Jonas 2, há uma outra observação de máxima importância. Tudo parece sugerir que Jonas começou a morrer quando estava em “Leviatã”, e orou uma vez ao Senhor, clamando aos gritos por salvação. Prestes a desistir e sucumbindo, lembrou-se de Deus, orou uma inflamada oração, e entendeu que as suas palavras subiram dos Abismos mais profundos, dos Infernos, e chegaram até o Trono de Deus, no Aravot, o Último Céu, adentrando pelo Templo Celestial. Sendo reanimado e aquecido em seu coração ao se perceber ouvido por Deus, convicto de que Ele o manteria com vida, proclamou o referido salmo, expressando-se de maneira muito similar a Davi no Salmo 139:
Para onde me ausentarei do teu Espírito? Para onde fugirei da tua face? Se subo aos céus, lá estás; se faço a minha cama no mais profundo abismo, lá estás também; se tomo as asas da alvorada e me detenho nos confins dos mares, ainda lá me haverá de guiar a tua mão, e a tua destra me susterá. Se eu digo: as trevas, com efeito, me encobrirão, e a luz ao redor de mim se fará noite, até as próprias trevas não te serão escuras: as trevas e a luz são a mesma coisa.
É literariamente mais correto entender que Jonas não se referiu ao Templo em Jerusalém. Estamos falando de um jogo de extremos: do Inferno ao Trono de Deus na Jerusalém Celeste. Ademais, Jonas era do Norte e a imagem do Templo de Salomão, conquanto o pudesse conhecer, não era-lhe tão familiar quanto deve ter sido para Davi. Seguindo nessa linha, devemos conceber que Jonas, no momento em que foi engolido pelo Grande Peixe, pelo Taninim de Deus, foi engolfado por uma das criaturas que receberam do Criador um status excepcional- esse Monstro Marinho é dos que foram criados no Quinto Dia e nenhuma criatura nomeada em Gênesis 1 o é da mesma maneira do que eles, com uma particularidade que os torna criações especiais. Os Taninim pertencem à categoria dos Monstros Cósmicos, que representam as potências caóticas da infrestrutura da Criação quando domadas por Deus — Leviatã, Ziz, Beemote e Reem, entre outros. Isso significa que a entrada de Jonas na barrida do Peixe é a sua saída do Mundo Visível, ou Comum, e o seu ingresso nos fundamentos da Criação, nos Pilares da Terra.
… a entrada de Jonas na barrida do Peixe é a sua saída do Mundo Visível, ou Comum, e o seu ingresso nos fundamentos da Criação…
De alguma maneira, ele desce ao Caos e ao Oceano Primevo de antes do Um Dia, Morre na Sombra e nas Trevas do Abismo (Tehom), e lá, no Vazio, é visitado pela Luz de Deus, que emana do Trono no Aravot, do Trono de Deus que pairava sobre a face do Oceano antes do Tempo. Nesse momento, é como se Jonas estivesse no Santíssimo, na Eternidade da Luz Una de Deus, e é por isso que ele sabe que a sua oração foi ouvida no Templo Celeste. Isso significa que Jonas teve, ali, uma experiência genuinamente profética, porque os grandes profetas conheciam visões do Templo Celeste e do Trono de Deus, no Santíssimo, uma vez que eram capazes de discernir os oráculos do Senhor na medida em que estiveram com Ele no Um, na Glória, e conheceram a Sabedoria, ou o Logos Divino, sobre o qual “tudo o que foi feito se fez” e a partir de quem se pode vislumbrar o porvir. Ezequiel, Isaías, Jeremias e Habacuque são apenas alguns outros exemplos.
Através da Palavra do Senhor o mundo no princípio era apenas água e água; fogo, vento e ar formavam como que um trono sobre a água, no qual estava sentado o Senhor em sua glória. O trono só pairava sobre a água devido à palavra de Sua boca, pois os animais sagrados ainda não existiam. — Bin Gorion, As Lendas do Povo Judeu
É interessante para essa leitura um instigante detalhe: segundo soubemos com Lundquist (O Templo), havia no Santíssimo em Jerusalém a chamada Pedra Angular, um pilar símbolo de Javé postado diante de Arca da Aliança e conhecido como uma imagem em microescala do Monte Santo de Sião. Essa pedra é como o betilo sobre o qual dormira Jacó e que, enquanto uma Axis Mundi, desvelou um pilar e uma escadaria que subia até o Céu, canal para o trânsito de incontáveis anjos. Como Axis Mundi, a Pedra Angular não apenas mirava o Céu, mas marcava os Pilares do Mundo (midras Tanhuma). Outros templos antigos portadores de um Sancta-Sacntórum, um Santíssimo, consideravam-no, enquanto receptáculo das relíquias mais sagradas, como um útero, o ventre da Montanha Sagrada. No caso do Santíssimo no Templo de Salomão, a Pedra Angular, conservada no Ventre, está posta sobre o Abismo e retém abaixo de si as águas caóticas do Oceano Primevo e do Dilúvio, porque o Templo de Salomão, como outros templos antigos, era representação em microescala da estrutura do Cosmos e uma imagem da Criação Jovem, do Jardim Auroral — a primeira porção seca que se elevou do Oceano, o início da Criação e, portanto, assentado como Montanha Sagrada sobre as Fontes do Abismo. Essa Pedra é aquela de Isaías 28:16 e de Mateus 16:13–19, que mantém cerradas abaixo de si as Portas do Inferno. O Oceano Primevo é Água Vivificante, uma vez que dele todo o mais foi submergido. Cristo, a Pedra Angular, o Logos Divino, Aquele que desceu ao Abismo e dele voltou, é o fundamento da Realidade e a própria fonte da Água Viva, a fonte da Fonte de Jacó (João 4:10).
Está escrito que houve uma rocha que o Senhor colocou no abismo, e na rocha enterrou o seu verdadeiro nome com quarenta e dois sinais e com isto tapou a boca do abismo, para que as águas não transbordem! Mas quando a geração do dilúvio pecou, o Senhor afastou a rocha e aí todos os poços das profundezas irromperam. — Bin Gorion, As Lendas do Povo Judeu
Jonas, por conseguinte, quando está no Ventre do Peixe, na máxima profundeza do Abismo, está simultaneamente no Santíssimo, imerso na Luz Una. Daí o salmo davídico carregar características de experiência visionária profética, do Um Dia e do renascimento do eleito no Ventre:
Se disser: Decerto que as trevas me encobrirão; então a noite será luz à roda de mim. Nem ainda as trevas me encobrem de ti; mas a noite resplandece como o dia; as trevas e a luz são para ti a mesma coisa; pois possuíste os meus rins; cobriste-me no ventre de minha mãe.
Eu te louvarei, porque de um modo assombroso, e tão maravilhoso fui feito; maravilhosas são as tuas obras, e a minha alma o sabe muito bem. Os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui feito, e entretecido nas profundezas da terra. — Salmo 139
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A Septuaginta para o Profeta Jonas sugere algo muito interessante, que amplifica bem a ironia do texto. Quando Jonas procura fugir do rosto de Deus, embarcando de Jope para Tartessos porque não queria colaborar com o arrependimento dos pagãos de Nínive, já que sabia que o Senhor lhes seria piedoso caso corrigissem os seus caminhos, o Criador faz o mar se revolver em tempestade. Isso apavora a todos os marinheiros, que pedem salvação cada um aos seus deuses particulares, porque o navio ameaçava se estilhaçar entre as ondas. Quando o responsável pela proa vai ao fundo do navio, no convés, e confronta Jonas, descobre que Javé, o Deus de Jonas, do Céu, do Mar e da Terra, havia encontrado aquele que d’Ele fugira, de maneira que o navio afundaria se Jonas nele permanecesse. Assim que tomaram a difícil decisão, que relutaram muito em assumir, de lançar o profeta nas águas, a tempestade findou. “E os homens temeram o Senhor com grande temor; e sacrificaram um sacrifício; e oraram orações.”
Segundo Frederico Lourenço, na Septuaginta, em geral, a palavra “Senhor”, Kúrios, ocorre sem artigo (o, ao, do), mas na referida passagem de Jonas (1:13–16) “Senhor” aparece duas vezes antecipado por artigo definido — o que é uma excepcionalidade no texto grego. Segundo o professor, o artigo aparece ali para sugerir a ideia de que os marinheiros gentios, do cataclismo e da salvação de Javé se converteram ao Senhor. A ironia é evidente: a fuga de Jonas do rosto de Deus, para que se evitasse a salvação dos gentios de Nínive, foi ela mesma o palco para a salvação dos gentios de Jope-Tartessos.
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E o Senhor ordenou a um grande ser marinho que engolisse Jonas.
- literalmente, ‘beber para baixo’ (katapínô). Imaginamos que o ‘cetáceo’ deva ter tragado uma grande quantidade de água do mar juntamente com Jonas, o que teria ajudado a ‘empurrar para baixo’ o profeta. Esse curioso pormenor não é sugerido pela fraseologia do TM. — Frederico Lourenço
Textos de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicados em meu perfil pessoal do facebook entre 25 e 26 de março de 2023.