Corpo de Cristo-Igreja

Um olhar desde uma perspectiva

Natanael Pedro Castoldi
5 min readMay 22, 2024

A Encarnação do Verbo de Deus, que é Deus Filho, não pode não verter numa verdadeira cosmologia, tipicamente cristã e profundamente vivida no tempo da Cristandade (até finais do Séc. XVIII), na medida em que a Palavra Divina, a Sabedoria e a “arquiteta da Criação” (Pv 8.) se dá a conhecer na pessoa de Jesus Cristo. Sem pormenorizar, a universalidade dos apelos da Boa Nova do Reino, que Amos Wilder (Mito e Sonho na Literatura Cristã [Mitos, Sonhos e Religião — Org. Joseph Campbell]) encontrará na recuperação do simbolismo natural e edênico, do qual partiram, ao seu modo, as demais tradições religiosas europeias, e a exaustão do “espírito” gentílico, cuja imoralização progressiva orientava as massas para o encontro de um “mito” de elevadíssima envergadura ética, instalaram o Cristianismo na privilegiada posição de esteio do novo éthos europeu (sem ignorar o norte da África e o Oriente Próximo), de modo que o lugar do Cristo no seu cerne foi conquistado de forma intensiva e extensiva (certamente porque soube absorver uma miríade de mitologemas ancestrais), instalando-se nos dois polos da nova cosmologia (Carne e Espírito) e no seu modo de acomodamento das cosmologias predecessoras.

Talvez essa “absorção” e o desdobramento lógico, a partir de suas prerrogativas básicas, de toda uma cosmologia, configurem a primeira explicação necessária para o alinhamento de Jesus a toda uma iconografia, dada em profusão, aliançada com os temas do sofrimento e da morte, instalados no aspecto frágil e puro da face e de uma carne lacerada e, depois, empalidecida pela exaustão fatal e pela morte física — o olhar flamejante e profundo no rosto do Cristo agonizante transparecerá a ideia de Sua opção voluntária pelo despojamento da Glória Eterna em favor da semeadura no Corpo da Morte para, feito “homem de dores”, experimentar-Se nos “trabalhos” (Is 53) e terminar imolado, tal qual Cordeiro de Deus, para a salvação de muitos.

… viviam sob o vulto dos mártires, expectando similar destino…

Enquanto os cristãos pereciam nas perseguições romanas, imolados nas arenas e nas ruas, assumiam a imitação de Cristo na mortificação completa e ao ponto das torturas e da morte pública. Esses cristãos tinham predileção pelas imagens vigorosas do Bom Pastor e do Cristo Solar, radiante como Apolo, enquanto viviam sob o vulto dos mártires, aos quais honravam em seus cultos e em seus batismos, expectando similar destino e o compartilhamento, com eles, da Glória do Filho Entronizado à destra do Pai. Quando, todavia, o cristianismo atingiu patamares globais, alcançando os limites do Império e o próprio trono de Roma, religião ainda mui citadina (reminiscência da predileção missionária apostólica pela Diáspora e pelas principais cidades), o problema dos confortos do Mundo e das tentações carnais se acendeu, dando maior relevo -já com os Padres do Deserto-, e assim o foi durante a Idade Média, à supracitada iconografia de tipo “dolorosa” — porque a imitação de Cristo, tão evidente sob as pressões persecutórias da Roma Imperial, deveria agora se impor num modelo expressivo e pedagógico de estágios de sofrimento e de amadurecimento análogos à jornada da Via Crucis. Nos dois momentos, a imitação de Cristo em Suas dores e na Sua morte se conservaram — no primeiro de maneira mais objetiva, exteriorizada, donde o incentivo do Acalento do Pastor e da Visão da Glória; no segundo de maneira mais subjetiva, interiorizada, donde o incentivo do Acolhimento da Cruz e da Visão do Calvário.

Em todos os casos e desde o começo, a Igreja, na parte da Igreja Universal que se encontra no Mundo (a não naquela dos mártires e dos santos em Jesus, que já está na Glória), percebeu-se como o Corpo de Cristo segundo a Sua Encarnação, segundo Ele na condição do despojamento da Glória Celeste, segundo a Sua semeadura no Corpo da Morte. Está, pois, no Mundo, nesse Mundo que tem o gérmen da Morte e no qual ora impera o “sistema de trevas” do Pecado, nesse Mundo que é para deixar de ser, desfeito em elementos abrasados, mas não é do Mundo, porque contém a Semente Divina da Nova Criatura, porque é habitação do Consolador, do Espírito Santo de Deus, e princípio, nos Tempos, da Nova Criação, após a Era. Na condição de Corpo de Cristo, comunga o Pão Despedaçado, que é o Corpo Partido do Jesus Morrente, e o Vinho, que é o Cálice do Santo Sangue do Cordeiro de Deus Imolado, “parecendo ter estado morto” (Ap 5:6) — a Igreja, no Mundo, toma parte, então, do Corpo da Cruz e, bebendo do Cálice, assume o compromisso de tomar parte do mesmo “destino” de Cristo Jesus. Enquanto está no Mundo é Corpo para a Morte, assumindo as privações, as perseguições e os sofrimentos todos na figura do Makários, tal como o Senhor o diz no Sermão do Monte, em vistas da mortificação dos “membros da carne” enquanto contínua oferta de sacrifício vivo a Deus (Rm 12:2), enquanto sempiterna consagração e separação, porque santificação, para a Volta do Salvador. Donde o partilhar comunal do Pão e do Vinho ser uma afirmativa da Igreja-Corpo de Cristo em sentido de Corpo da Morte e como confirmação da esperança de, na Sua Vinda, ter Corpo da Ressurreição, Corpo Glorioso, tal como Cristo Ressurreto, as Primícias — para tal, todavia, o Corpo do Pó tem que morrer, como Cristo precisou morrer.

A Glória se nos virá, enquanto Igreja, quando da Morte…

Isso põe em questão o que se vê nos movimentos cristãos de tipo triunfalista, ufanista e politizado — no sentido revolucionário, da redução da Igreja a um agente socialmente construtivo na Terra, apregoando em obras a chegada do Reino, o qual, quando vier, virá naquilo que já veio (ou seja, uma espécie de paraíso terreno de antemão estabelecido pelo empreendimento humano); no sentido reacionário, da redução da Igreja a um instrumento conservador de subversão política e de restauração cultural contra a ação degenerada dos satanistas que controlam os assuntos terrestres (eu creio que isso seja mesmo assim [até porque coaduna com a expectativa do Anticristo, que é um sistema de trevas e que será uma pessoa]). A verdade é que a Igreja, tão somente enquanto Igreja, é, neste Mundo, para a Morte, não para a Glória, tal como Cristo, Encarnado, veio ao Mundo para a Morte após despojado da Glória. A Glória se nos virá, enquanto Igreja, quando da Morte, nossa pessoalmente e nossa escatologicamente, ou apocalipticamente, quando a Velha Criação foi derruída, desmanchada, pois portadora do salário do Pecado, no mesmo momento em que Cristo Ressurreto, o Cristo Régio que já não sofre e nem agoniza, rasgar os Céus com Suas hostes angelicais para trazer Juízo sobre a Terra — porque ali, nosso corpo mortal não podendo subsistir à presença do Santo Senhor, ele se desfará, despido como roupa velha, para dar lugar ao Corpo da Ressurreição que se nos virá de Cristo e a partir da eclosão da Semente Divina que foi posta em nós pelo Espírito de Deus quando, convertidos, anunciamos a nossa participação na Morte e na Ressurreição de Jesus (isto é, no Batismo).

Na Encarnação se apreende, portanto, o Corpo da Morte, que se desfará de todo — hiperbólica e metaforicamente a própria Velha Criação; na Ressurreição se apreende, enfim, o Corpo Glorioso, que perdurará para sempre — hiperbólica e metaforicamente “o Novo Céu e a Nova Terra”.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 21 de maio de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em antropologia e crítica literária. Casado com Gabrielle Castoldi.