Cristianismo e Crise Civilizacional

Do potencial revigorante da fé carismática

Natanael Pedro Castoldi
5 min readJul 8, 2023

Muito sucintamente, a tese defendida por Amos Wilder no Mito e Sonho na Literatura Cristã (Mitos, Sonhos e Religião — Org. Joseph Campbell) é a de que tempos de crise civilizacional, enquanto períodos de catástrofe simbólica (o velho sistema de símbolos é, pois, disfuncional frente à experiência presente), inspiram criatividade subversiva, a demanda subterrânea por um novo mito e a abertura de alma a uma nova experiência no Ser, que será suprida na receptividade ostensiva, sobretudo da parte dos populares, à novidade. Todavia, essa novidade só funciona como revitalizadora para a psique coletiva e ressignificadora da existência individual se se conectar a algum dos aspectos, dos símbolos ou dos mitos antigos dessa mesma cultura, negligenciado pela excessiva complexibilização, burocratização e racionalização (decorrente em engessamento) da vida da Cidade e, por isso, buscado junto às fontes primeiras, da experiência ingênua e potente (antes do desgaste) dos primórdios. Por conseguinte, um evento ou experiência novo servirá de canal para o retorno do primevo, dotado de ampla aura carismática, e todo o sistema simbólico da cultura tenderá a ser reenergizado e reorganizado ao redor do fascínio desse símbolo atualizado. Essa é basicamente a intuição que tive a partir de uma leitura junguiana de Corção (Dois Amores, Duas Cidades), que associei ao que Jan Assmann assumiu como o “retorno do recalcado” freudiano em sua leitura do pavor egípcio do monoteísmo. Esse ímpeto mitopoético criativo, sustenta Wilder, vem na dinâmica mitoclasma-mitoplasma, porque representa continuidade e descontinuidade com o passado, se dará como reação ao “mito esmaecido” e, via de regra, emergirá contestando a autoridade estabelecida, tradicionalista no sentido de agarrada ao status estruturado segundo o esquema vigente (que se sustenta no “mito-logos”, ou na racionalização palaciana e sacerdotal do Mito [Jesi]). Em suma: toda a cultura nasce de uma aventura no Ser e do símbolo que é dele descompactado e vai se formalizando, institucionalizando e domesticando com o tempo, até que o Mito, domado pelo Logos, ou pela Lei, perde seus efeitos e seu caráter carismático e, portanto, autoritativo, até a instauração da crise e a demanda por um retorno às origens, antecipado sempre, como já vimos em Erich Neumann (Psicologia Profunda e Nova Ética), por figuras individuais, as quais podemos chamar de místicos e filósofos.

A grande crise religiosa […] da Grécia clássica, afastou a evidência do mito da experiência do interior das consciências. A via pessoal do acesso à verdade, aberta e tornada inevitável para um grande número de pessoas no limiar do helenismo, excluía o grande denominador comum do mito e sua ancestral veracidade coletiva. Além disso, sobreviviam evocações solitárias do mito: caminhos individuais ou de pequenos grupos em direção à verdade salvadora, que podiam também ser acalmados e tranquilizados por epifanias míticas repentinas. A verdadeira experiência do mito, coletiva e universal, permanecia latente ou se manifestava de forma absurda — Jesi, Spartakus

Disso podemos apreender aquilo que também está claro para Wilder: nas bases do Mito sempre há um altíssimo grau de universalidade (daí ser eminentemente coletivo), porque ali jazem as experiências primordiais, que são atemporais e de tal maneira fundamentais, que habitam as raízes de quase todas as culturas, que vão se especializando e se distinguindo ao ponto da incomunicabilidade apenas ao longo dos séculos. É essa descida às experiências originárias, aos primeiros símbolos e mitos, que Wilder identifica nos alvores do cristianismo que, já em Cristo, vai buscar referência nos mais potentes arquétipos israelitas e orientais, se não na própria Criação. Quando restaura a vitalidade carismática dos antigos arquétipos da alvorada de Israel, muitos vinculados às nações que o antecederam, contra o formalismo estéril do complexo Templo-Palácio, estabelece pontes com aspectos de todas as culturas do Oriente Próximo e do Levante, e quando vai buscar sentido na Criação em si, estabelece pontes ainda mais claras e utilizáveis com motivos gregos e latinos. A partir de Jung, Fierz (Psiquiatria Junguiana) elucida esse fenômeno desde suas causas psicológicas:

Jung descobriu, a partir de suas observações e de sua experiência, que nas situações difíceis as pessoas percebem imagens que têm significado geral. O surgimento dessas imagens se faz acompanhar de movimentos de consciência semelhantes à psicose, e é seguido por uma reordenação da consciência que resolve a dificuldade original. A natureza genérica das imagens levou Jung a chamá-las de imagens típicas. O fato de precisarem ser observadas não apenas no presente, mas também em um passado bastante longínquo fez com que ele se referisse a elas como imagens arquetípicas. Do ponto de vista do indivíduo envolvido, a impressão é que a perturbação da consciência e sua subsequente reordenação são ocasionadas por uma energia mediada pela imagem.

Se procurarmos em Voegelin, poderemos associar essa “energia” imagética à potência encapsulada na experiência no Ser — toda a experiência de descompactação simbólica, de descoberta de um aspecto novo da Realidade, tem teor numinoso e, portanto, um grande potencial excitante, porque significativo e salvador, tanto para o indivíduo quanto para a comunidade. Donde a recuperação da experiência originária, o retorno à causa geradora do símbolo e o abandono do formalismo excessivo e estéril derivado e há muito deslocado da Fonte poderem remobilizar todo o organismo social.

… uma nova experiência no Ser, na Verdade, possui envergadura universal e é capaz de absorver em si o húmus das experiências anteriores e de suas culturas correspondentes

Essa é a diferença entre uma nova religião no sentido pensado por Kolakowski (que sobre à ionosfera do Mito e é civilizacional por excelência) e uma seita: enquanto uma nova experiência no Ser, na Verdade, possui envergadura universal e é capaz de absorver em si o húmus das experiências anteriores e de suas culturas correspondentes, opondo-se ao status quo no sentido de distinguir-se de seu burocratismo elitista e melancólico através da busca por um novo canal até a Fonte, a seita é desde o começo um organismo altamente burocrático e legalista, que rivaliza com o status quo não pela descida ao Ser e à universalidade, mas pela mais do que rígida circunscrição de seus limites distintivos, que se tornam motivos idólatras, porque assombrosamente restritivos.* Daí a proliferação de seitas ser tão somente mais um sintoma da anomia reinante em uma sociedade e em uma religião decadentes. Eis o que a seita é: um prolongamento da própria doença e um agravamento da crise, mas não uma reação criativa e genuína — antes uma reação baseada em toda a sorte de vícios e medos.

  • Isso pode sustentar o entendimento de Orlando Fedeli (Antropoteísmo) de que as seitas, as heresias e a sua prole, as ideologias, têm por base uma cabedal doutrinário rígido, bem estabelecido, sendo muito mais do que apenas o arranjo apressado e improvisado de justificativas para a concretização pública de paixões doentias, embora as reflita (nesse sentido, uma ideologia será produto de uma hiperênfase numa experiência sensualista, de cunho venal, decorrente do tédio de uma cultura decrépita, cujo apelo fomentará um rearranjo legalista [formando o secto ou a militância], e não de uma aventura espiritual, radicada no Intelecto [porque o alastramento universal e sistemático de uma forma de maldade sempre demanda a tomada do poder institucional e a imposição de uma rígida ordem titânica, do demoníaco satânico, que é doutrinário e “lógico”, não diabólico, que é anárquico e selvagem]).

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 2 de março de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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