Cristo Como o Verdadeiro Augusto
Uma análise do oráculo escatológico de Jesus
Lendo a descrição escatológica de Lucas 21:25–27, proferida por Jesus Cristo, atentei-me para o final do verso 25: “na terra [gēs] angústia [synochē] das nações, em perplexidade [aporia] pelo bramido do mar e das ondas”. Veja bem: o pavor diante dos mares e de suas ondas sucede aos sinais celestes -”no sol e na lua e nas estrelas”- e vem com desmaios de terror pela expectativa do que estará para acontecer (v. 26), porque “as virtudes [dunamis] do céu [ouranōn] serão abaladas”. É possível apreender que esse abalo das “virtudes do céu” começa pelos sinais celestes, porque essas “virtudes” são propriamente os poderes ou as glórias pertencentes ao “exército do céu” — as potências astrais, Sol, Lua e Estrelas (como anjos), serão abaladas, o que quer dizer “movidas”, alteradas. Dessa maneira, a mudança no aspecto visível (físico mesmo) das Virtudes Celestes é sinal para revoluções na Terra (gēs [terra literal]), porque anuncia o descontrole das potências terrestres nos termos de manifestações físicas, sobretudo dos Mares (thalassēs). Nota-se que esses “Mares” o são em sentido universal, enquanto potência terrestre, à imagem das potências celestes, e estão associados, diferentemente delas, ao princípio cosmogônico do Caos e do Abismo (Tohu / Bohu), de modo que alterações nas formas das Virtudes Celestes, sendo elas princípios da Ordem, prenunciam desordens terrestres. Vê-se na Lua a potência celeste ligada aos ciclos das águas, vê-se no Sol a potência celeste ligada à estabilidade uniforme e inviolável do Céu Diurno, vê-se nas Estrelas uma série de funções elementais em diferentes setores da Criação, sobretudo a água.
De fato, como diz Graves (Mitologia Hebraica), “as estrelas são imaginadas como pinos brilhantes cravados no firmamento, sobre os quais ficam as Águas Superiores” (p. 105). O que significa que as Estrelas garantem que o Céu Noturno não seja infiltrado pelas “Águas de Cima”, que são também as Águas do Abismo. O simbolismo do Arco-Íris enquanto expressão da abóbada celeste é análogo, mas garantidor da sustentação do Firmamento em sua face diurna, sob o governo do Sol. Estrelas como as Plêiades foram vinculadas à chuva, porque sua morte e nascimento no horizonte emolduravam o período mais propício para as navegações no Mediterrâneo, e parece que uma das Plêiades extinguiu-se no final do segundo milênio a.C., sumiço esse provavelmente associado à versão mais antiga do Dilúvio Grego, o Mito de Deucalião — se, na Palestina, a deusa Ishtar, marcada com uma Estrela, foi a responsável pela renovação do homem em vista da catástrofe, entre os gregos temos Têmis (Ordem) cumprindo esse papel. Mais do que apenas o Dilúvio, que é um mito cosmogônico de recriação do Mundo, está incipiente em diversos trechos do Antigo Testamento uma antiquíssima cosmogonia hebraica, na qual se descreve um combate de Deus contra o Abismo e seus Mares, que foram derrotados pelo Vento (Rúach) do Senhor e aprisionados no Submundo e no Vazio, cativos de limites impostos pelo Criador na Extremidade do Mundo (Efes) — no Dilúvio, esses limites foram rompidos, as Águas Primordiais subiram do Abismo e as Águas Superiores despencaram em torrentes de chuva, e um evento idêntico era aguardado quando da ocasião do Fim do Mundo. O apelo psicológico da ruína global pela imposição do Caos do Abismo através do avanço dos Mares (Yam [forma monstruosa do Mar enquanto dragão primevo]) é tão perene e tão potente, que Deus, da Aliança Noáquica, relembra ao homem, sempre e em cada Arco-Íris (símbolo do sustento do Firmamento), que o Mundo não será mais uma vez destruído pela Água. Como veremos, não será por Água, mas pelo Fogo, porque Deus pretende uma Nova Criação na qual não exista mais o Mar.
Há elementos, ainda assim e por conseguinte, para se estabelecer conexões entre o Dilúvio e a descrição escatológica de Cristo. Essa não foi a única aproximação de Jesus entre os dois temas, como atesta Mateus 24:37–39, que culmina no mesmo clímax de Lucas 21: na Terra, os homens estarão vivendo suas vidas, tal como nos dias de Noé, embora assombrados com expectativas cataclísmicas, até que, num repente, o Filho do Homem virá entre as nuvens e em grande glória. O relato anterior, em Lucas 21, acrescenta uma série de calamidades e guerras, que muito lembram o cenário da Roma imediatamente antes da ocasião da coroação do Imperador Augusto — a série de guerras civis sangrentas e outros tipos de distúrbios fizeram os sábios romanos, assim como a plebe, se alarmarem com a expectativa da Morte de Roma, porque anunciavam o fim de seu tempo de vida, e jaziam todos apavorados com a iminência de uma destruição completa da Cidade e do Universo através do fogo (ekpyrosis), para que um Mundo Novo renascesse das cinzas. De fato, com a entronização de Augusto e a pacificação de Roma, renascida em glória, muitos crerem, dentre os quais o poeta Virgílio, que Augusto era um enviado dos deuses, uma divindade terrena, um Filho do Céu dado aos homens para inaugurar, sem a necessidade da ekpyrosis total, o Mundo Novo em uma Nova Roma, porque se passou a compreender que todo o caos predecessor já havia sido uma espécie de “ekpyrosis parcial” — uma suficiente morte do Velho Mundo.
Os gentios voltarão a aguardar uma aniquilação do Mundo, mas o Mundo não será destruído antes de o Filho do Homem descer do Céu numa nuvem de glória
A expectativa do Fim do Mundo era conhecida pelas nações da Terra, portanto, e associada a um predecessor cabedal de tragédias e de violência beligerante. Por isso os gentios, lendo os sinais celestes e os interpretando à luz da desgraça terrestre, se alarmariam, em angústia e perplexidade, aos sinais nas potências terrenas, sobretudo oceânicas. Cristo, aqui, está desafiando a crença gentílica e imperial na suficiência de Augusto enquanto Senhor e Salvador, porque descreve um quadro escatológico indiferente à doutrina da Cidade Eterna, de pujança edênica sem limites territoriais e temporais, prevendo uma recaída global numa generalização de maldade e tribulação análoga à Última Geração do Dilúvio. Os gentios, não erradamente, voltarão a aguardar uma aniquilação do Mundo, mas o Mundo não será destruído antes de o Filho do Homem, o único e verdadeiro Senhor e Salvador, descer do Céu numa nuvem de glória, e será Ele, o Cavaleiro Branco (Ap 6 e 19), o perpetrador de todos os juízos de Deus e o ministro da ekpyrosis total, porque Seu juízo será tal que os “céus, incendiados, serão desfeitos, e os elementos abrasados se derreterão” (2 Pe 3:10–13) — isso é, observo, uma destruição de tipo solar, não ctônico, à luz do Último Saeculum romano, o do Sol, que se acreditava que terminaria numa fulminação do Universo.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 14 de Agosto de 2023.