Cristo e o Bode Expiatório, Aquele de Azazel

Aproximações entre o Iom Kipúr e o Calvário

Natanael Pedro Castoldi
11 min readOct 18, 2024

O O sumo sacerdote entrava no Santíssimo do Templo apenas uma vez no ano, na ocasião do Iom Kipúr, o Dia do Perdão, marcado para o décimo dia do Tishrei, o primeiro mês do calendário civil e o sétimo do calendário religioso. Considerado o dia mais santo de Israel, era a culminação de todas as atividades sagradas do Templo — todas elas, dirá o rabino Yisrael Ariel, eram mera preparação ou sombra do que ocorria no Iom Kipúr. A severidade dos ritos era tamanha e o fardo do sumo sacerdote era tal, que sobejam relatos de pontífices que se viram, no adentrar e no sair do Santíssimo, acompanhados de um velho vestido de linho branco — segundo a tradição, ninguém menos do que o patriarca Abraão, encarregado de encorajar e de auxiliar o sumo sacerdote.

A complexidade e a dimensão dos rituais do Iom Kipúr demandavam uma preparação de sete dias, nos quais o pontífice se retirava para um recinto consagrado e, acompanhado de sacerdotes e sábios, estudava todos os passos, relembrava todos os usos, treinava todos os procedimentos. Durante esse tempo era eleito um vice sumo sacerdote, para o caso de o sumo sacerdote falhar — isto inclui morrer -, e nomeado, de entre os sacerdotes, o Ish Ití, guia do bode expiatório no deserto. O sumo sacerdote não podia dormir na noite do Iom Kipúr, devendo passar a noite estudando e lendo a Torá junto do Sinédrio e dos ilustres de Jerusalém, sendo corrigido quando equivocado e mantido desperto por auxiliares quando ameaçasse dormir — eles o faziam estalando os dedos. Ao longo do serviço, o sumo sacerdote se purificava em banho ritual cinco vezes, lavava mãos e pés dez vezes e andava quarenta e duas vezes de um lado para outro do Pátio e no Santuário, até que cumprisse todos mandamentos do dia, iniciados no amanhecer e terminados no entardecer — trocava as suas vestes habituais pela túnica de linho branca uma vez pela manhã e outra vez pela tarde, para poder ingressar no Santíssimo. Não poderia cometer nenhum erro na ordem e no desempenho dos ritos — diz-se que um erro demandava a recapitulação de toda a ordem, de maneira que ele era prévia e formalmente convocado pelo Sinédrio para jurar que cumpriria os deveres corretamente.

… e andava quarenta e duas vezes de um lado para outro do Pátio e no Santuário…

Entre os sacrifícios do dia, havia o da oferta contínua (Tamid) e o da oferta especial (Mussaf). Duas ovelhas — uma de manhã e outra de tarde — eram o Tamid e dois touros e sete cordeiros eram o Mussaf. Dois cabritos gêmeos, ou idênticos, também eram separados para este dia e, no momento oportuno, sorteados. Uma caixa com duas peças de mesmo tamanho, uma com o Nome de Deus, era entregue ao oficiante, que deveria tomar as peças aleatoriamente nas mãos. De frente para os bodes, aquele que estivesse posicionado junto da mão que segurasse o Nome de Deus era separado para o sacrifício, enquanto o outro era separado para Azazel — este era marcado com uma fita de tecido nos chifres, aquele o era ao redor do pescoço. O bode do sacrifício era ungido na testa com a peça do Nome de Deus e consagrado para o holocausto. Seu sangue era misturado ao do touro no Mazrec, um pote de prata capaz de recolher até quinze litros, e esta mistura de sangues, mexida o tempo todo para não coagular, era aquela que o sumo sacerdote aspergia, a partir de dentro do Santíssimo, no topo da Arca da Aliança, na frente do Véu e no Altar de Ouro — o Incensário — do Santo Lugar. Este procedimento, intrincado, computava quarenta e três aspersões, com o restante sendo despejado em um orifício especial na base sudoeste do Altar do Pátio, sendo dali canalizado para o rio Kidron (Cedrom), avermelhando as suas águas, consideradas sagradas. Essa água-sangue era vendida aos jardineiros como fertilizante e seu uso sem prévia compra era considerado um roubo e uma profanação do Sagrado. Por meio desta aspersão no Santíssimo e no Santo, todo o Templo era purificado — quer dizer: limpo de todas as impurezas espirituais que ele acumulou com os inúmeros sacrifícios pelo pecado nele realizados ao longo do ano. As impurezas eram varridas para fora do Santuário, no sentido do Santíssimo ao Pátio, com o Santíssimo, enfim, transbordado da Presença de Deus pelo depósito, à tarde, dos incensos abrasados pelos sacrifícios queimados no Altar do Pátio, o qual também era depositado no Incensário. O touro e o cabrito com o Nome não eram, todavia, queimados no Altar do Pátio, mas em um altar especialmente erigido na parte externa dos muros do norte do Templo.

Neste ínterim, ao bode que não recebera o Nome era canalizada toda a carga dos pecados da nação de Israel, todos aqueles que haviam demandado sacrifícios ao longo do ano e os demais — assim, a purificação do Santuário era completada pela transferência de suas impurezas para ele, realizada por meio de uma imposição de mãos e de certas declarações do sumo sacerdote. Guiado pelo Ish Ití, que o segurava pelos chifres amarrados com a faixa escarlate, o bode de Azazel saía pela Porta de Shushan, na parte leste do Monte do Templo, rumo à solidão do ermo. Para que a marcha não fosse perturbada pelas multidões, havia um caminho estreito no trecho entre o Monte do Templo e o Monte das Oliveiras — ele impedia a passagem de um grande número de pessoas. Após ele, o bode ingressava no deserto, através do qual completaria sua jornada de doze quilômetros.

… havia um caminho estreito no trecho entre o Monte do Templo e o Monte das Oliveiras…

Durante esse caminho, dez tendas com água e alimento se intercalavam entre espaços de aproximadamente um quilômetro, para o caso de o sacerdote designado precisar descansar e comer. Ao fim do percurso, o guia subia com o bode de Azazel para o topo de um despenhadeiro — o demônio do deserto, Azazel, era ligado aos rochedos. No cume, partia a fita escarlate em duas, amarrando uma metade em uma pedra do local e mantendo outra entre os chifres do cabrito. A parte amarrada na rocha, se Deus aceitasse o sacrifício e segundo a tradição, branqueava — os pecados de Israel, “como a escarlata”, haviam sido lavados (Is 1:18). Quanto ao bode, ele era empurrado para baixo do despenhadeiro e se despedaçava nas rochas abaixo — um símbolo do despedaçamento dos pecados de Israel. Nesta altura, o sumo sacerdote começava a ler a Torá, especificamente trechos de Levítico 16–18, junto ao Portão de Nicanor, no Templo, enquanto alguns sacerdotes e levitas encaminhavam o bode do Nome e o touro para o altar exterior.

Registro pessoal do livro do rabino Yisrael, O Templo Sagrado de Jerusalém.

É evidente, em vista do acima descrito, que os cantos do Servo Sofredor de Isaías, sobretudo o do capítulo 53, estão repletos do simbolismo ligado ao Iom Kipúr, principalmente ao do bode expiatório, como se vê:

Era desprezado, e o mais rejeitado entre os homens, homem de dores, e experimentado nos trabalhos; e, como um de quem os homens escondiam o rosto […]. Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido.

Mas ele foi ferido por causa das nossas transgressões, e moído por causa das nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados.

[…]

Ele foi oprimido e afligido, mas não abriu a sua boca; como um cordeiro foi levado ao matadouro, e como a ovelha muda perante os seus tosquiadores, assim ele não abriu a sua boca. Da opressão e do juízo foi tirado; e quem contará o tempo da sua vida? Porquanto foi cortado da terra dos viventes; pela transgressão do meu povo ele foi atingido. - Isaías 53:3–5, 7–8

Nisto se vê a necessidade de Cristo, já na madrugada anterior à Páscoa, achar-Se de todo desamparado. No Jardim das Oliveiras, Jesus orou amargamente ao Pai, indo por vezes acordar aos discípulos, que deveriam vigiar com Ele, mas que sucumbiam ao sono. Ali e com a chegada de Judas e dos guardas do Templo, os discípulos começaram a debandar, deixando Jesus cada vez mais sozinho, até o clímax no cantar do galo da alvorada, quando Pedro O negou pela terceira vez — os ofícios do Iom Kipúr começavam com o cantar do galo. Cercado pelos Seus inimigos, representativos políticos e religiosos de toda a Israel, como “ovelha muda” Se permitiu levar a todos os flagelos e à Cruz; no lugar da faixa escarlate, ostentando uma coroa sangrenta e um manto tinto. No topo da Caveira foi Elevado e, do topo, Descido, morto, tendo expirado pouco antes, quando o Sol apagou, a terra tremeu e o Véu do Santuário se rasgou, e Ele bradou: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt 27:46), pelo que cumpriu o oráculo do profeta Davi no Salmo 22:1.

… se vê a necessidade de Cristo, já na madrugada anterior à Páscoa, achar-Se de todo desamparado.

Abandonado até pelo Pai, receptáculo expiatório dos pecados da humanidade, porque a promessa do Seu Sangue foi a base da Fundação do Mundo (1 Pe 1:20), de cujas garantias e méritos deveram todos os sacrifícios realizados por Israel em todos os tempos — por isso eram mera sombra do Corpo de Cristo (Cl 2:17) -, desceu à morada solitária de Azazel, tragado por Leviatã, a Antiga Serpente do Mar (Is 27:1). Arrastou, pois, consigo e para o Abismo os “pecados do Mundo” (Jo 1:29), dos quais encheu-se o Seu Corpo da Morte. Razão pela qual os rudimentos dos gentios, no pouco que apresentaram de virtuoso, se valeram da eficácia do Sangue Eterno, que é a Verdade do Mundo (Cl 2:17; Gl 4:1–9). Diz-se isto em vista da abrangência universal do Poderoso Sangue derramado, suficiente para resgatar o remanescente de Israel, e a própria Israel antes do Fim, mas também a “plenitude dos gentios” (Rm 11), que é uma medida de homens que vêm de todas as tribos, povos, línguas e nações (Ap 7:9–10) — todos os que ouvirem e crerem na Boa Nova de Salvação:

‘Assim, visto que somos descendência de Deus, não devemos pensar que a Divindade é semelhante a uma escultura de ouro, prata ou pedra, feita pela arte e imaginação do homem. No passado Deus não levou em conta essa ignorância, mas agora ordena que todos, em todo lugar, se arrependam. Pois estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio do homem que designou. E deu provas disso a todos, ressuscitando-o dentre os mortos’. - At 17:29–31

Sem entrarmos em todos os méritos de tão intrincado tema, ao menos leve-se em conta como a purificação do Templo no Iom Kipúr comportava em si um simbolismo univérsico, embora se aplicasse, no tempo bíblico, à circunscrição da nação hebreia, inclusa a Diáspora. Importa identificar que a arquitetura do Santuário funcionava como éctipo ou cosmion da Criação em si, com o piso e o teto apontando, respectivamente, para a Terra e para o Céu, com as paredes indicando os Quatro Cantos, dirigidas que estavam no sentido da Rosa dos Ventos, e o Santíssimo, após o Véu, no seu formato perfeitamente cúbico e todo revestido de ouro, simbolizando o Eterno, a Luz do Um Dia, o próprio Santuário Celestial e o fundamento imutável do Mundo — donde o Véu, segundo as cores dos tecidos, ser como que a divisória entre a Matéria e o Espírito. Cristo proclama a iminência de Sua Elevação na Cruz, pela qual atrairia todos para Si, no instante da chegada dos gregos à Sua presença (Jo 12:20–33), fazendo cumprir cabalmente a Promessa Abraâmica (Gn 12:1–3) e ofertando, por meio de Seu sacrifício, a Nova Aliança às Setenta Nações, rejeitada por primeiro por Israel. Michel Remaud (Evangelho e Tradição Rabínica) sustenta que o apóstolo Paulo conhecia uma tradição judaica segundo a qual a Aliança Mosaica fora primeiramente ofertada por Deus a todas as Setenta Nações, cada uma delas tendo rejeitado os seus termos, sendo dada por último a Israel, que a aceitou, motivo de o processo de atingimento das Setenta Nações pelo Evangelho depender de uma oferta inicial para Israel e de sua negativa obstinada.

… vindo a morrer pela libertação do jugo satânico que pairava sobre os gentios…

Jesus, o Cordeiro de Deus, enquanto amaldiçoado pelas autoridades sacerdotais do Santuário e encaminhado para o Madeiro, no cimo do Calvário, vindo a morrer pela libertação do jugo satânico que pairava sobre os gentios (Gl 3:8–14) — à semelhança do Cordeiro Pascal que, aspergido o sangue nas portas e despedaçado entre os convivas das casas, libertara os hebreus do Egito -, representou o verdadeiro cabrito de Azazel; como Cordeiro “sem mácula” (1 Pe 1:19), expirando no momento da degola dos cordeiros pascais no Templo, igualmente representou o verdadeiro cabrito com o Nome, tendo invadido o Santíssimo através do Véu, rasgado de alto a baixo (Mt 27:51), como sumo sacerdote eterno a ingressar, d’além dos Querubins, no Trono de Deus, conforme se lê em Apocalipse 5:6 e 9–10:

Então vi um Cordeiro, que parecia ter estado morto, de pé, no centro do trono, cercado pelos quatro seres viventes e pelos anciãos. Ele tinha sete chifres e sete olhos, que são os sete espíritos de Deus enviados a toda a terra.

[…] ‘Tu és digno de receber o livro e de abrir os seus selos, pois foste morto, e com teu sangue compraste para Deus homens de toda tribo, língua, povo e nação. Tu os constituíste reino e sacerdotes para o nosso Deus, e eles reinarão sobre a terra’.

Reconhece-se nisto, pois, à imagem das aspersões dos sangues do touro e do bode no Santo e no Santíssimo, uma verdadeira purificação do Mundo, compatível com o aprisionamento de Satanás (Ap 20:1–3) e com a maturidade ou abertura dos “olhos do espírito” dos gentios para o discernimento do que É, desvelado até aos Confins o Mistério de Deus em Cristo. Esta maturidade das nações é atingida no ato da Elevação do Filho, na medida em que ela muda o status espiritual do Mundo e encerra em si o termo, e realiza em ato, todo o fragmento de sabedoria e de verdade que teve algum valor no “tempo da ignorância” — porque, assim como os sistemas legal e sacrificial judeus, não eram mais do que sombras ou prenúncios do Corpo de Cristo.

Viu o céu aberto e algo semelhante a um grande lençol que descia à terra, preso pelas quatro pontas, contendo toda espécie de quadrúpedes, bem como de répteis da terra e aves do céu.

Então uma voz lhe disse: ‘Levante-se, Pedro; mate e coma’.

Mas Pedro respondeu: ‘De modo nenhum, Senhor! Jamais comi algo impuro ou imundo!’

A voz lhe falou segunda vez: ‘Não chame impuro ao que Deus purificou’. - At 10:11–15

Os primeiros sinais que comprovam a eficácia universal e de valor retroativo do Sacrifício expiatório de Cristo são, um, o reconhecimento d’Ele enquanto Filho de Deus, na ocasião da Morte, pelo centurião que participou da Sua crucificação (Mt 27:54) e, dois, a ressurreição dos mortos, dos que jaziam sepultados nas redondezas de Jerusalém, no mesmo instante da ruptura do Véu (vv. 52–53 [1 Pe 3:19). O primeiro sinal da eficácia futura deste Sacrifício é indicado antes mesmo de Jesus morrer, nos Seus momentos finais, quando Ele prometeu ao ladrão arrependido, crucificado ao Seu lado, a entrada no Paraíso “ainda hoje” (Lc 23:43). Este é, portanto, o Sacrifício arquetípico, aquele que é “de uma vez por todas” (Hb 10:1–14).

Se o Iom Kipúr era a expiação do próprio Santuário, purificado da cumulação das impurezas de todos os sacrifícios por todos os pecados do ano, que eram preparatórios e antecipatórios para e dele, a Morte de Jesus o é nos termos de todos os tempos e de todas as nações.

Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele.

Quem crê nele não é condenado; mas quem não crê já está condenado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus. - Jo 3:16–18

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 17 de outubro de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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