Cristo, o Cabeça ou a Finalidade dos Rudimentos do Mundo

Da realização das virtudes primeiras

Natanael Pedro Castoldi
8 min readJan 22, 2024

Quando os cristãos da Galácia, tendo sido achados por Cristo incircuncisos e salvos pela Fé na Promessa e segundo a Graça sem a demanda por outros mediadores, donde a sua libertação no Salvador diretamente desde o seu próprio paganismo, começam a aceitar a persuasão dos judaizantes e a aderir à circuncisão na carne, ou por mãos humanas, estão, afirma o apóstolo Paulo, desfazendo absurdamente o que já havia sido feito. Ainda mais irracional é estarem sendo convencidos à aderência aos rudimentos judeus, que são a Lei e a liturgia do Templo, que nada têm a ver com eles — eles não foram resgatados pelo Senhor Jesus de condição outra que não aquela gentílica, de seus próprios rudimentos ou princípios, a saber: das filosofias e tradições pagãs, com seus ascetismos, culto a anjos e doutrinas extáticas e visionárias, principados, ou reinos espirituais (também em sentido de mentalidades), guarnecidos por divindades “que não são deuses”. Que sentido haveria, portanto, na conversão primeira ao judaísmo — que, em sentido estrito, era a Lei -, para que se pudesse, posteriormente, tornar-se cristão?

… os rudimentos dos gentios, assim como os rudimentos dos judeus, foram tutores autorizados por Deus para a formação da consciência moral e do Pecado, assim como para a formação da consciência da Culpa e do Juízo entre as nações

Nota-se que me refiro aos gálatas, mas cito também a polêmica de Paulo com os colossenses, porque os cristãos de Colossos enfrentaram problemas muito parecidos com aqueles da Galácia, com o agravante de que, diferentemente dos gálatas, que estavam sendo persuadidos à Lei por meio da circuncisão, os colossenses retrocediam tanto à seita judaizante, quanto aos seus próprios rudimentos pagãos, voltando-se a uma amálgama de superstições de tipo mágico e de doutrinas do cosmoteísmo romano — porque as potestades que guardavam os rudimentos pagãos eram suas divindades, legitimadoras de sua contraparte terrena, os governantes dos sistemas políticos. Convém observar, segundo o princípio da Aliança Noáquica e de seus Preceitos Noáquicos, que havia fragmento de verdade e de virtude nas filosofias gentílicas, nos seus sistemas éticos, com suas doutrinas ascéticas, e em seus sistemas litúrgicos, que conservavam a vereda sacrificial como retificação da culpa. Onde havia, pois, algo de bom e de verdadeiro, necessariamente este algo lançava algum filete de raiz na Verdade de Deus Criador, por isso, segundo o apóstolo Paulo em Romanos 13, o Império Romano era dispensador legítimo de reta Justiça, na medida em que a aplicava de maneira ligeiramente eficaz, distribuindo a cada um aquilo que lhe é devido. Por essa razão, os rudimentos dos gentios, assim como os rudimentos dos judeus, foram tutores autorizados por Deus para a formação da consciência moral e do Pecado, assim como para a formação da consciência da Culpa e do Juízo entre as nações pagãs, até o Tempo da Maturidade, ou a Plenitude do Tempo, quando o remanescente de Israel estava preparado para discernir a Graça de Deus em Cristo como o Mistério guardado atrás da Lei, impraticável e necessária para colocá-lo por inteiro sob indesculpável conhecimento da pecaminosidade e da impossibilidade de agradar ao Senhor, donde a predisposição à Salvação no Messias, e a medida dos gentios se encontrava no limite de suas especulações filosóficas, como o testemunha a pregação de Paulo em Atenas — já haviam os platônicos e estoicos desenvolvido a doutrina do Criador, mas este ainda seguia sendo-lhes o Deus Desconhecido.

Tanto os gentios quanto o remanescente de Israel, afirma Paulo, foram mantidos sob ignorância da Verdade ou do Mistério de Deus no tempo da imaturidade, guardados pela tutoria dos seus respectivos rudimentos. Ambos foram conservados sob o regime dos princípios da carne, na medida em que os rudimentos guardavam, da Verdade, apenas os fragmentos que tornavam os gentios e os judeus conscientes de sua condição falha, culposa e digna de condenação — isso significa que os encerrava numa circunstância de culpa cumulativa, de sentido apenas condenatório, porque dava a consciência do Pecado sem a possibilidade de aperfeiçoamento ontológico, implicando apenas na Morte, que é o salário do Pecado, de maneira que todos os procedimentos éticos e litúrgicos ligados aos rudimentos não eram mais do que aparência, forma material que se desgasta pelo uso, que degenera e que morre segundo o princípio da Morte, e que as buscas pela acumulação de algum mérito salvífico no contexto dos rudimentos eram como “semear na carne”, sempre redundando, ao fim e ao cabo, na Morte, dada a ineficácia dessa semeadura. Ademais, da intuição de fundo a respeito de sua nulidade, essa semeadura acabava servindo para “acumular tesouros na Terra”, alimentando senso de superioridade moral e religiosa, ou intelectual e virtuosa, sempre contra as outras pessoas — “se mordeis e devorais uns aos outros, cuidado para não vos destruirdes mutuamente!” — Gl 5:15. Esse encerramento na ineficácia, pondo tudo sob o Pecado, argumenta Paulo, foi necessário para o cumprimento da Promessa dada por Deus a Abraão, pai de vastíssima descendência, para que “todas as famílias da Terra” pudessem receber a Cristo Jesus pela Fé, que é essa Promessa realizada — em Romanos 11 ficamos sabendo que a Boa Nova pela Fé aos gentios é o próprio cumprimento da Promessa a Abraão. Disso apreendemos que os gentios podem ter parte na Israel de Deus, que é a Igreja, desde Abraão, Pai da Fé, sem que lhes seja necessário passar por Moisés e pela Lei, e que recair da Fé pelo retorno aos rudimentos, assumidos como mediadores adicionais, como se Cristo e a Cruz não fossem o suficiente, é cair da Graça, é ser o “enxerto quebrado”.

… quem ingressar no sistema dos rudimentos judaicos por qualquer porta, e sobretudo pela circuncisão por mãos humanas, recai da Realidade na Sombra

Se havia algum mérito nos rudimentos judeus, nos termos dos sacrifícios no Templo, esse mérito não era suficiente para aperfeiçoamento — do contrário, como lemos em Hebreus 10, ele não precisaria ser repetido sazonalmente. A Lei, afirma o autor de Hebreus como o diz Paulo em Colossenses 2, era apenas uma sombra “dos bens vindouros”, não “a imagem real das coisas”. O que quer dizer que, se no regime da Lei houve verdade, o foi apenas a partir do nexo ontológico estabelecido com o Corpo de Cristo — como Sombra do Corpo, as expiações do Templo eram relativamente eficazes na medida em que se valiam dos méritos previamente garantidos da Plenitude do Corpo de Cristo, cujo Santo Sangue fora conhecido desde antes da fundação do Mundo (1 Pe 1:20). Assim sendo, toda a oblação, em pomba ou cordeiro, era tipo, eco e sombra do Sacrifício do Cordeiro de Deus, este sim realizado de uma vez por todas, por ser a Realidade “das coisas”. Dessa maneira, revelada a Realidade, que é o Corpo de Cristo (Cl 2:17), a Sombra não já tem valia alguma e toda a cumulação de dívidas nela escrita é despejada, finalmente, na Cruz, decretando do “Está Consumado” em diante que esse sistema, ou rudimento, de nada mais vale, tendo sido de todo realizado — o Véu do Templo se rasgou, afinal. Por conseguinte, note bem, quem ingressar no sistema dos rudimentos judaicos por qualquer porta, e sobretudo pela circuncisão por mãos humanas, recai da Realidade na Sombra e se implica num pacto com Deus baseado na Lei inteira e já sem possibilidade de expiação parcial dentro de seu regime, donde não pode falhar em nenhum ponto sequer — impossível, certamente, por isso, caído imediatamente da Graça por aderir ao princípio do Pecado e da Morte, só lhe resta Juízo, segundo o mesmo livro de Hebreus o diz nos versículos 26 a 31 do capítulo 10.

Similarmente, a recaída do gentio na condição dos rudimentos pagãos é a colocação de si no antigo principado e sob a velha potestade, ou aquela divindade “não divina” que protege e tiraniza os princípios — sejam ascéticos, sejam religiosos, sejam filosóficos. Mesmo o sincretismo, que os colossenses estavam imiscuindo na igreja de Colossos, já é a recaída por completo nos rudimentos do princípio da Morte, porque inserem outros mediadores que não Cristo entre Deus Pai e os homens. Tendo sido Deus Filho revelado como o Mistério de Deus oculto na sabedoria dos homens, voltar aos rudimentos dos quais foram libertos é tornar os gentios, caídos da Fé, igualmente inalcançáveis pela Cruz, já que, tendo-a conhecido e adquirido, dela, o conhecimento da Verdade, acabaram por negá-la em favor de meios carnais. Deixando de viver pela Fé, se cortam da Promessa e do seio de Abraão e já não são mais Israel de Deus em Cristo Jesus — e fazem-no contra suas próprias consciências íntimas, cinicamente e para proveito humano, conforme os discursos de Paulo em Romanos 1 e em Romanos 2:14–16.

Em termos mais claros: quando o apóstolo Paulo diz de Cristo que Ele é o Cabeça de todo o principado e potestade, ele usa um termo que implica uma verdadeira “decapitação” quando da anulação do “escândalo da Cruz” (Cl 2:19). Como Cabeça, entenda-se segundo a Vulgata Latina: Ele é o Principal (“caput”), o Fim e a Realização dos rudimentos do mundo, que são as filosofias e as tradições dos homens. Os princípios ou as mentalidades dos homens, os seus rudimentos, naquilo que têm alguma virtude, são Sombra da Realidade, o Corpo de Cristo, e se realizam por inteiro n’Ele, que é a sua retificação e a sua superação total e completa. Dessa maneira, pela Cruz, e na Morte e Ressurreição, Cristo Jesus destrona todas as potestades, os governos espirituais dos rudimentos, ou principados, porque realiza no Seu Corpo, no drama da Encarnação, a plenitude dos Mistérios de Deus — na Cruz cancela o “escrito de dívida” acumulado contra os d’Ele e baseado na contínua transgressão, donde dá termo e finalidade ao princípio da Morte, radicado na Lei e na tutoria gentílica para este mesmo fim. É assim, portanto, que Cristo despoja os “guardiões” e seus princípios, pondo-Se por Cabeça ou Rei dos Reis e submetendo-os ao Seu princípio, que é a Vida e a Novidade de Vida, ou a Liberdade no Amor de Deus.

Eis o que é a semeadura no Espírito, não na Carne: aquilo que a circuncisão judaica fazia como sinal, ou Sombra, que é um símbolo de mortificação, Cristo o fez por inteiro e completamente na Sua Morte e no Seu Sepultamento, e o dissolveu terminantemente quando da Sua Ressurreição, à qual aderimos pelo símbolo do Batismo, fazendo morrer o Velho Homem nas águas, que se tornam sua sepultura, e nascer a Nova Criatura, que emerge das águas como Jesus do Sepulcro, e assim assumimos, sem a necessidade da circuncisão na carne, a verdade espiritual que sempre estivera escondida e prenunciada nesta circuncisão, e realizamos de todo a inteireza das suas implicações, adentrando diretamente no arquétipo, ou na imagem real das coisas, sem permanecermos retidos no éctipo, que é a sombra projetada pela imagem. Feito isso, não há mais nada a fazer em termos soteriológicos — estando sob o Cabeça, já somos n’Ele perfeitos (Cl 2:10). Estamos, pois, já na Promessa, de maneira que basta vivê-la em Novidade de Vida enquanto aguardamos a Ressurreição do Corpo em Corpo Celeste, que ainda está por ser efetivada, e essa, então, será a última etapa do drama divino vivido corporal e plenamente por Cristo a ser replicada em nós mesmos.

Textos de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicados em meu perfil pessoal do facebook em 22 de janeiro de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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