Cultura e Massacre

o sacrifício na origem da sociedade

Natanael Pedro Castoldi
3 min readMay 10, 2022

O instante da Revolta é o instante de uma suspensão do Tempo e do Espaço Profanos. Num momento estão os indivíduos, cada um por si, vivendo suas vidas rotineiras, partindo de suas “mitologias pessoais” (Jesi — Spartakus), e seguindo seus rumos, noutro estão abandonando a si mesmos e se lançando na Turba. Quando a Revolta eclode, o Tempo Forte (Eliade) entra no mundo, de maneira que o tempo comum fica em suspenso. Quando a Revolta eclode, o Mundo Imaginal (Corbin) coincide com o mundo normal, e a realidade visível se confunde com o símbolo. Nessa hora, tudo o que é feito nos termos da Revolta é justo em si mesmo. Nessa hora, o espaço da cidade, outrora fragmentado em propriedades e negócios, se revira num Campo de Sangue, num Local Sagrado, na Axis Mundi: a cidade se transfigura no lócus da Guerra Santa e, portanto, é santificada, e já não mais existe enquanto terreno das amenidades diárias.

A Guerra é a origem da Civilização

Voltemos, pois, de Jesi para Girard, que estabeleceu a origem da Cultura na Religião, que nasce do morticínio primordial. O conflito mimético ao redor do objeto de desejo estabelece duas partes rivais, que se mimetizam mutuamente num conflito interminável e altamente sanguinário. Cada parte se conforma em horda e, para a horda beligerante, o oponente é, tal como ela, um bloco monolítico, unívoco e puro — no caso, ele é a encarnação do símbolo “Inimigo”. As hordas, fadadas ao colapso da destruição mútua, acabam, pois, de unindo em Turba para o dilaceramento selvagem de um terceiro, o chamado Bode Expiatório, que assume sobre si, por caracteres distintivos, a responsabilidade pelo caos geral. Enquanto Turba, a multidão age como um único corpo, e se lança irracionalmente sobre a presa, que pode ser um indivíduo ou um grupo de pessoas. A ocasião do massacre corresponde ao Tempo Forte, por isso será repetida periodicamente através do Mito, e o local do assassínio, onde o sangue é vertido e recobre o chão, corresponde ao Local Sagrado, que é “reaquecido” periodicamente pelo Rito. O Centro do Mundo, ou Umbigo da Terra, é o primeiro Ponto Quente que se distingue da uniformidade universal, e esse Ponto Quente pode vir pela emergência teofânica do “deus momentâneo” (Cassirer), ou pelo sacrifício humano, pelo homicídio primordial. Daí toda a cidade antiga ser fundada sobre um cadáver. Daí a cidade, na ocasião da Revolta, recuperar seu status de Campo de Sangue, de Lugar Santo. A Guerra é a origem da Civilização.

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Não sem razão a maior parte das cosmogonias, sobretudo as indo-europeias, tomam uma guerra cósmica como a causa do Mundo. Os gregos, por exemplo, o viam no combate entre os deuses e os titãs, num roteiro muito similar ao cananeu e ao babilônico. Na Bíblia, o conflito não acontece, todavia Deus “combate” o Caos, o Abismo (Tehom/Tiamat), ordenando a Criação. Similarmente, as origens dos povos, das cidades e das nações estão, via de regra, vinculadas a homicídios e guerras. A identidade portuguesa jaz enraizada na luta multissecular com os mouros, que aparece no folclore brasileiro nas cavalhadas e em outras festas populares, e que também influenciará o imaginário gaúcho no que concerne à Guerra dos Farrapos, transformada em mito fundador do Rio Grande do Sul. Não são incomuns as tentativas de encontrar na Guerra do Paraguai o mito fundador do Brasil.

Textos originalmente publicados em meu perfil pessoal do facebook em 18 de fevereiro de 2022.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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