Cultura e Selvageria
violência, sexualidade e consumo no Ocidente
N’O Julgamento das Nações, Christopher Dawson descreve o processo de deterioração da unidade europeia a partir das antigas fronteiras orientais do Império Romano, nas terras germânicas bárbaras nas quais o processo de cristianização foi incompleto e os antigos deuses não foram suficientemente exorcizados. Veja bem: o problema interno das nações europeias, ligado ao alastramento do liberalismo e ao esfacelamento da autoridade da Igreja, não representava uma ameaça civilizacional tenebrosa enquanto a Europa, econômica e militarmente superior, conseguisse se manter protegida do jugo exterior (foi assim que os europeus sobreviveram ao império maometano). O cataclismo veio dos arredores, inspirado na recuperação de forças demoníacas que jaziam escondidas dentro do próprio seio do continente, muito mais potentes do que os modismos intelectuais e políticos. É ainda assim hoje, como é afirmado a respeito do pensamento de Peter Jones: as ideologias que vemos sob a superfície não têm substância para mais do que alterações circunstanciais, o que realmente muda a face da civilização está no espectro religioso, nos retornos pagãos, muito mais antigos, perduráveis e próximos das inclinações humanas mais sérias e menos caprichosas.
As potestades que se levantaram no leste europeu, sob o espírito de negação da civilização latina e romana (essa tendência apareceu, segundo Dawson, também na Reforma), não vieram sob luzes positivas, mas lunares, e canalizaram um tipo de “força [que] não deriva de ideias ou crenças, mas da negação delas, das forças cegas da destruição que repousam, profundas, na alma humana e que agora entraram em erupção”. O espírito anticivilizacional e selvagem do neopaganismo germânico, que Batisde identifica no retorno do culto à deusa, que Reich vê na Pátria (a deusa), da qual o líder é o Filho, e que Girard terá como uma contestação do éthos cristão da piedade aos fracos, trouxe consigo uma sede de aniquilação, fomentadora da Guerra Total. Esse ímpeto sacudiu os espíritos ocidentais e absorveu muitos aos anti-indivíduos (Oakeshott), intelectuais que assumiram a condução ideológica daquelas multidões que não conseguiram se encaixar na política e na economia do Estado Nacional pautado na imagem do Uomo Singulare. O perfil do anti-indivíduo é aquele da negação da Civilização, e, sem um lugar determinado no corpus social, jazia em paixões morais disponíveis, facilmente atiçadas e canalizadas pelo Terror que se levantou no Leste.
Devemos observar aqui o conceito freudiano de retorno do recalcado, que Jan Assmann aplica à cultura e ao combate entre monoteísmo e cosmoteísmo. Esse retorno aparece no modo como o cosmoteísmo politeísta egípcio viu os judeus monoteístas, rapidamente associando-os à imagem obscura de Aquenáton e de sua revolução iconoclasta, transformando os judeus em bodes expiatórios de um trauma civilizacional mal resolvido e projetando nele algumas características de sua própria doença. E também é vislumbrado na formação do monoteísmo judeu: a história dos hebreus, ao longo da maior parte do Antigo Testamento, é a de um povo oscilante, que parece incapaz de assimilar o ensinamento mosaico e chega a entrar num estado de latência no qual suas características originárias são esquecidas e substituídas por uma semelhança com os povos vizinhos, mas a crise do Exílio e todas as suas pressões, levaram ao resgate da figura exemplar de Moisés e ao processo de deuteronomização da fé, que se radicalizou num monoteísmo inequívoco. A tese de Assmann considera a de Freud: para ele, uma vez que o texto bíblico sugere o interesse dos hebreus do Êxodo pela morte de Moisés (e a própria descrição da sua morte é estranha), os hebreus de fato mataram seu líder, gerando repercussões psíquicas, a partir do aparato filogenético, que associaram esse homicídio à morte do Pai Primordial pela Horda Primitiva, trazendo consigo uma culpa coletiva tão insuportável, a ponto de Moisés e o grosso da Lei terem sido reprimidos por múltiplos séculos, até o seu resgate sob circunstâncias extremas. Todavia, o retorno do recalcado é sempre condicionado pela forma da crise presente: o que ocorre hoje suscita o reencontro de alguns aspectos da experiência primitiva, jamais o seu conjunto completo e coerente, e, retornando como que por revelação, cada aspecto gera impressões tais na mentalidade popular, que chega a reorganizar toda a cultura ao seu redor. Nesse sentido, se terá o monoteísmo pós-Exílio como a exacerbação de algumas características da mensagem mosaica, assim como a assimilação de Moisés como enquanto figura heroica indiscutível.
Todo esse sistema volta à luz na Europa moderna. Aliás, o conflito entre monoteísmo e cosmoteísmo, ou suas características, está sempre a permear a vida ocidental. O que vemos eclodir na Grande Guerra, a partir do Leste, é similar ao que aconteceu entre os egípcios e os judeus: reminiscências do politeísmo cosmoteísta, aquilo que não foi exorcizado na Idade Média, adquiriram desproporções inaceitáveis mediante a crise civilizacional com a cultura latina e romana, e algumas de suas características foram destacadas e conectadas ao trauma bárbaro da antiga e indigesta repressão de seus deuses. Essa mesma crise, viabilizada pela degeneração das estruturas da Civilização Ocidental, que deixavam de ser contingentes e compreensivas, permitiu o regresso de alguns aspectos do paganismo antigo, sobretudo a face noturna, beligerante e sanguinária. Gilbert Durand descreve a Cultura como possuidora de dois estamentos: o Diurno e o Noturno, caracterizados, respectivamente, pelo apolíneo, olimpiano, socialmente aceito, e pelo dionisíaco, telúrico, excluído do catálogo de possibilidades. Quando o sistema formalmente estabelecido começa a se tornar disfuncional, as pressões do reprimido aumentam, e quando o lado Noturno consegue vazar para “cima”, traz consigo a face negativa de tudo aquilo que representa a Civilização que esmorece. Da quebra das capacidades assimilativas da Civilização Ocidental, emergiu a Negação do Amor pela imposição da Guerra Total, mas, abertas as portas do Tártaro, todas as outras inversões subiram à Luz, sobretudo aquelas que envolvem a sexualidade e hábitos de consumo. Não é sem razão que Ferenczi identifica a origem da relação sexuada ao comportamento predatório e à deglutição: a violência e a excitação sexual sempre andam juntas, tal como o caçar e o penetrar a presa, desde as formas animais mais elementares.
A Guerra Total trouxe consigo outros “totais”, mas, sobretudo, aqueles totais ligados aos excessos da luxúria e da gula, assim como dos apetites relacionados. O aumento da violência armada está sempre acompanhado de um aumento na violência sexual e noutros excessos, que Hoppe descreverá dentro do conceito da ampliação da Preferência Temporal. É curioso observar a visão cristã do paganismo ao longo da Idade Média, associando-o aos cultos secretos das bruxas (o sabá), sempre imaginados como embebidos em sangue sacrificial e em orgias. De certa forma, sendo esse o oposto da piedade cristã medieval, foi essa a face que a Anticivilização assumiu. Os intelectuais, os anti-indivíduos espalhados ao longo do continente europeu, foram magnetizados por certos aspectos desse retorno do recalcado, sobretudo aqueles que envolviam a perversão sexual, que Michael Jones identifica como sendo o gérmen da Modernidade e a matriz das principais ideologias que enfeitiçaram nosso mundo desde então — para o autor, essas ideologias não são muito mais do que racionalizações dessas perversões, meios de tornar abstrata e razoável a índole pervertida.
O que passamos a presenciar é uma epidemia de sexualidade selvagem, animalesca, sem amor — pornográfica
Não podemos deixar de observar aqui o mesmo que Rushdoony notou e que definiu ao redor do chamado “homem do subsolo”, que emerge quando o “homem de elite” se afasta: pulsão de morte. Há tendências regressivas no tipo de mentalidade que estamos lidando, buscas pela “descomplexibilização” da vida via contestação de regras e destruição de estruturas. O tipo de violência que emerge na Guerra Total é a violência predatória, do caçador, anterior à violência organizada da Guerra Cristã, e isso também serve para entender o tipo de sexualidade pornográfica que passa a predominar. Rushdoony de fato identifica no tempo anterior à Revolução Francesa, sobremodo sanguinária, um crescimento da mentalidade pornográfica entre os intelectuais franceses, sobretudo Sade. O que passamos a presenciar é uma epidemia de sexualidade selvagem, animalesca, sem amor — pornográfica. Uma sexualidade que se procura racionalizar, ou justificar, através de abstrações e de seduções intelectuais.
Temos, aqui, um processo de infantilização, para não dizer de bestialização, do Ocidente. É a isso que Mário Ferreira dos Santos se refere quando chama de fetichistas as ideologias de nosso tempo, qualificadas por ele como “retornos à esquemática infantil”, viciada em colecionar palavras e que toma as palavras como totens. “Quando o materialista admite que a matéria bruta poder ser a fonte de todas as perfeições posteriores, é fetichista”, por exemplo. Há, de fato, um elemento de mentalidade mágica aqui, que se seduz pela palavra em si. Vale notar que MFS desenvolve esse entendimento após a descrição dos bárbaros de nosso tempo como sensualizados, amantes da força bruta e, acima de tudo, repetidores compulsivos. Para ele, sem bases filosóficas sólidas, que dão unidade a todo o pensamento, a excessiva especialização de tudo se transforma em mera técnica, e a técnica não é criativa num sentido profundo, ela é apenas repetitiva, viciada em dividir, em categorizar, em reciclar, em repercutir. Isso está dentro do fetichismo e da regressão à sexualidade selvagem e pornográfica (que visa a exposição direta e sem intermediários do observador e do objeto de desejo, feito para consumo imediato e vulgar).
Gilbert Durand, quando descreve o desenvolvimento da psique humana, atribui à sexualidade o elemento rítmico que a criança estabelece desde cedo, quando se dá a repetições exaustivas de palavras, de brincadeiras e de perguntas. A repetição, o ritmo, é a matriz do comportamento sexual, rítmico por excelência. A obsessão fetichista e repetitiva, de ciclos de consumo sempre mais rápidos, é uma expressão da natureza sexualmente regressiva de nossa cultura. Isso aparecerá, ainda, naquilo que Byung-Chul Han entende por nossa Sociedade de Transparência, que é pornográfica: tudo se resume ao abandono de todas as barreiras e de todos os intermediários para a aceleração máxima dos ciclos de consumo, cada vez mais compulsivos. Essa compulsividade, que vem junto do consumo animalesco dos produtos, dilacerados por uma voracidade impetuosa e profana, é uma força de violência contra si, contra o objeto/o outro e contra o mundo, que se enche de lixo. Dessa maneira, conquanto não tenhamos a Guerra Total, assistimos a uma explosão de violência simbólica sem precedentes.
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De leituras equilibradas em geobiologia soube da associação entre adoecimento mental e o tipo contemporâneo de arquitetura — formas muito antinaturais, excesso de concreto e outros materiais artificiais, iluminação e arejamento estranhos às necessidades humanas, até a maneira de o som se propagar (as vibrações pelo ar e paredes) é esquisita. Se mesmo os alfabetos seguem formas naturais, a exigência material e estética de uma casa, que serve como ninho para a intimidade familiar, precisa seguir a natureza.
Não é segredo que muitos dos arquitetos do século passado tinham corações revolucionários, espíritos achatados e mentes adoecidas. Não poderiam pensar a forma das casas segundo as medidas humanas e naturais — a pensaram a partir de abstrações, de projetos ideológicos e políticos. Hoje, o que temos é baseado nas medidas dos prédios de escritório e dos shoppings, mas em pequena escala. A casa já não é mais para habitar, para viver, mas para mostrar e, após dormir e dar vazão a outros processos fisiológicos, rapidamente sair para trabalhar e consumir.
Se comemos como animais, sem mesa familiar e devorando hambúrgueres solitariamente, nossas casas devem ser como covis de predadores solitários.
Textos originalmente publicados em meu perfil pessoal do facebook em 27 de janeiro e 15 de abril de 2022.