Da Condição Humana Enquanto a Condição do Andarilho

Uma teoria do sacrifício primitivo

Natanael Pedro Castoldi
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O estudo do homem primitivo me levantou uma questão: este se acreditava de fato possuidor de um reino propriamente seu? Quando descemos fundo na História e na Pré-História, e quanto mais fundo vamos, mais o homem se nos aparece como desprovido de substância própria.

Perdido no Mundo, no Intermédio entre os reinos, parece não ser naturalmente dono de nada, embora, astucioso, encontre meios de tomar para si um quinhão de tudo. Talvez aqui se subentenda o motivo arcaico da ingenuidade primordial, da inocência, de uma pureza relativa a um tipo de harmonia plena com o ambiente — uma harmonia que pode ser lida como um não exercício de impacto no meio ou de peso próprio na Realidade, um tipo de leveza que sobe à mente moderna no ideal do “bom selvagem”. Do ponto de vista psicológico, essa inocência auroral lança raízes na condição uterina e natalícia do não-eu, da difusão impessoal na completude originária, sendo o despontar da consciência e do senso de um eu uma espécie de ruptura, de cisão nessa totalidade e uma tomada de posição que é necessariamente opositiva, porque a consciência se estabelece por contraste e um eu se firma na medida em que se singulariza. Esse é o sentido psicológico da Queda, porque o nascimento da consciência e a instalação progressiva de um eu no seio da Realidade carregam sempre a conotação de uma transgressão.

Esse é o sentido psicológico da Queda…

Conquanto, como o diz Tibiriçá, a organização linguística do mundo primitivo se desdobre da referência objetiva do corpo do homem, de maneira que este se coloca como o centro de referência da paisagem, o senso de si jamais atinge as raias de um individualismo ou subjetivismo, tais como os temos atualmente. Aliás, as próprias noções de um eu individual, no sentido que conhecemos, e de uma alma pessoal e imortal não são naturais e não apareceram desde os primeiros dias da humanidade — de fato, são noções consideravelmente tardias. O homem primitivo — e o homem antigo — era, como dirá Campbell, noutras palavras, “aberto atrás” — isto é: ele existia na medida em que se firmava em referenciais recebidos pela tradição, no âmbito da vida comunal, porque a sua mente era concretista e coletiva, e a sua solidão, como observou Jung entre os tribais, era vivida em prolongados momentos de dissociação de consciência. O homem ancestral era aquilo que desempenhava e aquilo que desempenhava eram os gestos estereotipados de uso geral e imitativos de atos fundadores dos deuses e dos heróis. Ele era, portanto, como um receptáculo de influências exteriores, que nele se estruturavam e nele habitavam como verdadeiras entidades, ou vontades — quando desempenhava ritualmente os atos da divindade ou do herói, ele era a divindade ou o herói, por exemplo, e quanto sentia emoções especialmente intensas, se as sentisse nos termos do ritual ou dos limites da cultura, estava sendo influenciado por entidades legítimas, e se as sentisse em termos antissociais, em frenesis descontrolados e exteriores à estrutura sacro-profana da cultura, estava sendo possuído por algum demônio.

… as potências interiores do homem eram atribuídas à agência de potências que eram divisadas como atuantes exteriormente…

Os gregos arcaicos conservaram certas impressões dessa natureza, atribuindo uma manifestação do Divino, “theós”, em tudo quanto se singularizasse por sua excelência e virtude, e até as grandes ideias ou visões eram “theós”. O “theós” pertence ao que Kerényi chamara de o Concreto Primevo, assemelhando-se muito com o conceito polinésio de “mana” e com o semítico dos “eloá”. Essa “experiência primitiva” (Lavelle) vê em tudo quanto se destaque a agência de uma força, e, analogicamente, as potências interiores do homem eram atribuídas à agência de potências que eram divisadas como atuantes exteriormente — o que quer dizer que as revoluções da alma humana eram hipostasiadas, ou concretizadas, e imaginadas como forças autônomas objetivas, não subjetivas. Um tal estado de coisas impunha uma relação consigo e com o mundo em termos ordinariamente concretistas, donde desequilíbrio interno, entendido como causado por uma opressão, ter por diagnóstico uma falha procedimental no desempenho das tarefas cotidianas e rituais, abrindo o corpo para a má influência, e ter por prognóstico toda uma série de operações penitentes e curativas — doutro modo: purificadoras. Por meio delas, a má influência era transferida para objetos intermediários, eles mesmos análogos ao tipo de enfermidade, e, deles, para longe.

Todo o supracitado reflui para o perene sentimento de alienação, que é característico do homem de todos os tempos, porque ele se reconhece como aquele que, ou vive de permissão nos reinos divinais, que são todos os aspectos da Realidade, ou rouba de seus legítimos senhores aquilo de que precisa para estar no mundo — via de regra, trata-se das duas coisas, com uma transgressão primordial, que garantiu o surgimento do homem em sua atual condição, e uma subsequente retificação ritual, um acordo com o Divino, que vem com o custo da aderência imperiosa e irrevogável de uma economia do Sagrado, em benefício do ou como restituição ao Divino. Em todos os casos, o que sobeja é uma insegurança existencial, uma contínua culpa e uma desconfiança crônica de ilegitimidade.

… o perene sentimento de alienação, que é característico do homem de todos os tempos…

Relendo João Barbosa Rodrigues, Poranduba Amazonense, e revisitando a mitologia indígena brasileira e seus desdobramentos folclóricos sob a influência europeia e africana, notei-o com clareza. Talvez a origem pré-histórica da economia do Sagrado, com todos os seus ritos sacrificiais, esteja incipiente no que se vê nos costumes e nas crenças tribais: o terror existencial que o homem sente, onipresente e atemporal entre os primitivos, o levava a ofertar um pequeno presente à entidade governante de cada território ou reino no qual estava para ingressar, para de lá exterior para si algum bem que não lhe pertence naturalmente — como uma caça. Religiosamente, isso aparece nos cultos xamânicos, porque os xamãs, se cria, ao entrarem no êxtase cúltico, penetravam no Mundo dos Espíritos e dos Mortos, sendo testados e precisando negociar a passagem gnosiológica por esses territórios arriscados com os seus senhores — há elementos iniciáticos aqui, pois eram pressionados com perguntas e outras avaliações de inteligência e de pureza, às vezes superando o espírito inquiridor com sua astúcia, os enganado a partir das próprias regras de seu jogo. Mesmo esse elemento iniciático dos testes como validação das passagens carrega um elemento de sacrifício pessoal ou de oferta ao espírito daquilo que é para ele “alimento” ou motivo de satisfação. Os Contos de Fadas são herdeiros notórios desse “mundus”.

Chamou-me a atenção, do Poranduba, as descrições do Curupira, o guardião da floresta (“Kurupyra” “kaa-u-pira”, “o que jaz ou vive no mato”), e do Saci, o espírito dos caminhos (“Sacy-Taperꔓmãe das almas que sai nos caminhos”), e de como o caçador e o andarilho, uma vez nas fronteiras ou imersos nos seus domínios, devem dar-lhes uma pequena porção de tabaco, para apaziguarem seu temperamento e até garantirem sua benevolência. O Saci está especialmente associado à “alma do caboclo”, como uma espécie de espírito primordial vagante nas estradas à semelhança do desafortunado espectro de um malfadado viajante. Neste caso, nos remetemos a Fustel de Coulanges (A Cidade Antiga) e ao seu estudo sobre o fundamento da religião antiga na relação dos vivos com os mortos, com aqueles temendo desagradar a estes e, portanto, enterrando-os bem e deixando-lhes víveres e até mesmo brinquedos — Girard (Evolução e Conversão) nos dá margem para instalar essas práticas na mais profunda Pré-História, a partir do ato fundador do morticínio e do sepultamento do bode expiatório. O elucubrado nos põe no seguinte ponto: o rito sacrificial deve ter começado como uma compulsão ao medo do “Numen”, da teofania ou hierofania, como a um Outro. Como entre os homens as práticas rituais da distribuição de presentes, principalmente no encontro com visitantes, serviam para o apaziguamento do Outro encarnado no estrangeiro ou no inimigo, assim também a prática ritual de ofertar víveres ao Outro em seus domínios.

… o sacrifício pessoal era rapidamente associado ao acréscimo de um favor da parte da entidade…

É notória, nos casos do Curupira e do Saci, a oferta do tabaco, que era a erva sagrada dos xamãs e um dos meios de ele acessar o Mundo dos Espíritos, viabilizando o estado mental do êxtase. E como o xamã era naturalmente o detentor da singularidade na tribo, eleito para ser iniciado segundo características físicas e comportamentais estranhas, e adquirindo deficiências físicas em suas viagens astrais, ferido pelos espíritos, muitas vezes como sacrifício pessoal para a obtenção de permissões em seus reinos, é digno de nota que tanto o Curupira quanto o Saci são representados, em diversas regiões, como coxos — o bode expiatório girardiano poderia ser alguém que atraiu a atenção da turba para si, pois ostentava o diferencial da moléstia. Sem pretender ir fundo demais nessas observações, é digno de nota o símbolo do fumo nas regiões limítrofes da existência ou nos umbrais dos “reinos”. Ademais, sendo o tabaco uma especiaria, algo de valor dentre as posses do caçador e do viajante, o sacrifício pessoal, ou a subtração de um bem próprio, era rapidamente associado ao acréscimo de um favor da parte da entidade — o favor da permissão do ingresso no seu terreno e do abate de um animal (uma subtração paga e restituída pela oferta), ou mesmo de sua guarda particular nessa empreitada. No caso do tabaco, acrescenta-se, sendo ele vegetal, e sendo Curupira o guardião da floresta e o Saci uma espécie de elemental das folhas secas, a oferenda em si correspondia analogicamente aos reinos e às naturezas dos seus governantes, representando, conquanto uma subtração de algo do caçador ou viajante, um acréscimo ou uma satisfação direta dos apetites dos espíritos. Uma vez que estamos, aqui, também no Mundo dos Mortos, em terras ermas e nos intermédios das aldeias e cidades, a imagem do Barqueiro do Caronte mostra-se exemplar.

Os desenvolvimentos posteriores das religiões sacerdotais, ligadas ao sistema sacrificial da economia do Sagrado, devem conservar essa lógica primitiva de apaziguamento dos deuses governantes dos aspectos da Realidade nos quais se pretende ingressar, para neles e deles obter certos bens e certos favores. Nisso se conserva intacto o senso de insubstância do homem — até à Virada Axial.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 22 de fevereiro de 2025.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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