Da Confiança Cristã na Posse das Riquezas do Mundo

O legítimo uso de tudo quanto tenha “alguma virtude”

Natanael Pedro Castoldi
9 min readMay 28, 2024

Lendo sobre orfismo, pitagorismo e outros movimentos religiosos de tipo iniciático e que estiveram na raiz das posteriores religiões de mistério, pude identificar certas analogias e muitas distinções com o cristianismo primitivo, do tempo apostólico, interessado que estou em explorar a excelência da fé cristã.

Crentes na imortalidade da alma, donde a ideia de divindade da alma, os órficos optaram pela vereda inversa à dos dionisíacos — para estes, a união com o divino era realizada exterior e temporariamente através do festim orgiástico, enquanto aqueles, por sua ênfase na alma, optaram por disciplinas de tipo ascético chamadas “kátharsis”, pretendendo com elas purificar progressivamente a alma e, doutrinariamente certos da sua transmigração (metempsicose), garantir o atingimento da condição divina, ao invés da reencarnação, quando da ocasião da morte. Expressão, junto do pitagorismo, do ‘zeitgeist’, o orfismo reagirá veementemente contra a religião oficial, formal, de tipo olimpiano, através da recuperação de motivos arcaicos, de matiz xamânico (donde muitas de suas técnicas ascéticas e de sua “topografia” do “Inferno”) e não mediterrâneo, e verterá pelo caminho da negação do sistema cúltico estabelecido e de seus preceitos. Uma das expressões mais claras dessa oposição órfica ao Santuário, e que fala de sua separação da própria Cidade, está no vegetarianismo, intencionado não tanto pelo amor aos animais (embora carregue a implicação ética de uma ideia de unidade substancial entre todas as coisas), mas pela prudência santificadora da evitação das carnes dos animais sacrificados aos deuses. Junto de uma miríade de disciplinas, assim como dum verdadeiro cânone de livros, guardadores de uma mundivisão notável, os órficos militavam por uma superação deste mundo, o lócus aprisionante das múltiplas reencarnações e do retornos ao corpo das almas sem memória. Doutrinas tais, herdadas por religiões de mistério, competiram com o cristianismo apostólico.

A tentação do vegetarianismo ascético na Igreja Cristã aparece sob a mesma justificativa que vimos no orfismo…

Uma das primeiras passagens bíblicas que me subiram à mente enquanto estudava se trata diretamente de uma negação crassa desse tipo de vegetarianismo entre os cristãos primitivos. A tentação do vegetarianismo ascético na Igreja Cristã aparece sob a mesma justificativa que vimos no orfismo, a saber: o medo do consumo de carnes impuras, de animais sacrificados aos deuses. E talvez muitos cristãos eram mesmo influenciados por ideias de tipo sincrético, suscitando questionamentos e ofertando opiniões que levaram o apóstolo Paulo a reagir em 1 Coríntios 10, com a coroa da cláusula: “Comam tudo o que for vendido no mercado. Não perguntem se a carne foi oferecida aos ídolos ou não”. A justificativa, muitíssimo cara à Sã Doutrina, vem logo em seguida: “Porque ‘do Senhor é a terra e todas as boas coisas que nela existem’”. Essa sentença é a raiz de diversos posicionamentos éticos apresentados nos escritos paulinos, lançando fundamentos notáveis no Evangelho, como veremos, e parece indicar uma doutrina escatológica de imenso vulto. Porque a escatologia cristã, de matiz primeiramente judaico, em muito diverge das escatologias órfica e pitagórica, e não pode ignorar as permissões formais de Deus ao uso de tudo quanto há na Criação, a Adão, e ao consumo da carne de todo o tipo de animal, a Noé, antes da instauração da Lei Mosaica e segundo a visão paradisíaca do Lençol dos Animais, que o apóstolo Pedro tivera em Atos 10 — porque o famoso tema do Banquete Escatológico puxa referências genesíacas (das quais a narrativa do Dilúvio está prenhe).

A ordem do Senhor ao patriarca Pedro — “Mata e come” — é justificada na declaração de que Deus purificou todos os animais. Como quem esteve desde o início do Ministério com Cristo, Pedro compreendeu o significado disso — ele vira os gregos chegando a Cristo (João 12). Na Grande Comissão estava prevista a “purificação” dos gentios, a sua dignidade enquanto ouvintes da Boa Nova, e se pode encontrar algo da boa relação de cristãos gentílicos com gentios pagãos na recomendação paulina de 1 Coríntios sobre o consumo das carnes, porque nela aparece a permissão para que os cristãos, ao aceitarem o convite de pagãos e os visitassem, não questionassem a procedência da comida servida à mesa, para poderem dela usufruir. A implicação aqui é a de que os gentios não deveriam mais ser considerados impuros em função daquilo que comiam e da não aderência a outros preceitos especificamente judaicos (isso transparece na passagem sobre o Concílio de Jerusalém, no livro de Atos), mas que toda a sua “impureza” era devida à condição nativa de humanidade caída (no que não há diferença entre judeu ou grego), de modo que a preocupação exacerbada com a ética alimentar, por exemplo, e com outros aspectos das purificações poderia levantar barreiras obstrutoras do acesso cristão às casas pagãs, com prejuízo para a formação de vínculos úteis para a pregação do Evangelho. Porque os cristãos, embora tendessem a cultuar em sigilo, não formavam uma comunidade isolada, se dessemelhando da Diáspora.

A abertura cristã à vida cívica, citadina, e a evidente boa vizinhança com os pagãos correspondem a uma confiante e larga visão de legitimidade e de liberdade nos usos e nos costumes. Evidentemente essa abertura, baseada num sentimento escatológico a respeito do Mundo, trouxe muitas dificuldades para a Igreja nascente, não sendo uma opção necessariamente pragmática — seria mais fácil promover o isolamento -, mas resolutamente doutrinária (Gálatas 5), de modo que se tornou recorrente objeto de discussão e de orientação apostólica, porque muitos crentes a confundiam com libertinagem e não discerniam os limites do aceitável, tomando parte em aspectos imorais da cultura pagã, como as glutonarias e bebedices (as org1as, enfim), cujos praticantes não encontram lugar no Reino dos Céus. Daqui se pode ir à famosa dupla afirmativa paulina sobre a liberdade cristã, que pressupõe uma distinção de consciência entre praticável (o “lícito”) e o impraticável (as “Obras da Carne”): “Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm. Todas as coisas me são lícitas; mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas.” — 1 Coríntios 6:12

… tudo o que fora mera “sombra” do Corpo de Cristo deixa de ter efeito…

O apóstolo Pedro, da Visão, entendeu que resistia, obstinado, em uma posição contra a qual próprio Cristo combatera na ocasião do Ministério, quando da recorrente violação dos preceitos farisaicos. Um exemplo muito ilustrativo é o do horror dos fariseus ao perceberem que os discípulos não estavam obedecendo às purificações prescritas para antes das refeições, donde o levantamento de questionamentos incisivos ao Senhor Jesus, que retribuiu com fortes sentenças sobre hipocrisia, num nítido contraste entre o apego excessivo deles às “ordenanças dos homens”, enquanto não aderiam aos princípios incipientes dos próprios preceitos mosaicos (Marcos 7). O fato é que, cientes do significado da manifestação do Reino de Deus no Rei Messias, que sabiam ser o Cristo, os discípulos viviam já no Tempo Escatológico — o que já vimos ter sido entendido pelos próprios sábios judeus como um tempo de suspensão da Lei. O Tempo Escatológico, ou os Tempos, contido entre a revelação do Eschatos e a Parúsia, é aquele no qual tudo o que fora mera “sombra” do Corpo de Cristo deixa de ter efeito — porque a “sombra” não tem valor substancial, mas acidental, e é o mesmo que nada quando da manifestação do Corpo. Paulo põe todo o sistema de purificações e de sacrifícios judaico neste lugar, no lugar de “sombra”, porque o Senhor Jesus, na Sua Morte e na Sua Ressurreição, é sua realização plena — foi apenas n’Ele e na garantia da Sua Vinda que esse sistema chegou a ter algum valor (Colossenses 2).

Junte a isso um termo específico ligado à permissão do abate e do consumo de todo o tipo de animal: “Deus purificou”. A Igreja, Corpo de Cristo, é uma verdadeira nação de sacerdotes, como o apóstolo Pedro sustentará posteriormente em suas epístolas, e era o sacerdote quem imolava os animais puros levados ao Santuário, os quais eram santificados pela queima nas brasas do Altar, entregando, de suas fumaças ascendentes e à altura do Trono de Deus, perfumado aroma santo. Retirada do Altar, a carne dos animais sacrificados ao Senhor era considerada santificadora, assim como o sangue nelas contido, devendo ser comida pelo sacarificante, a carne da oferta pelos pecados, no Santo Lugar (Levítico 6:24–30). Agora, todavia, tendo Cristo, Cordeiro de Deus, realizado superior sacrifício e de uma vez por todas (porque o sacerdote salomônico deveria sacrificar também pelo próprio pecado — sacrifício recorrente, porque de pouca eficácia [Hebreus 10]), santifica a todos os Seus, que santificam, pois e em relação inversa, aquilo que tocam com legítima consciência, não sendo mais santificados pelas coisas, de maneira que as carnes das quais se servem são carnes boas desde o momento em que estão postas no prato da mesa do Filho de Deus, cabendo-lhe antes agradecer pela comida do que “exorcizá-la”. Ademais, no Tempo Escatológico, revelado o Eschatos, a distinção genesíaca da cosmologia da Velha Criação começa a se dissolver, já não havendo mais animais puros e impuros, porque no Paraíso não haverá Mar e nem Sol, e Deus será tudo em todos.

Conservando a linha do raciocínio sacerdotal, o animal que é abatido pelo cristão, analogamente ao animal imolado pelo sacerdote, é sempre puro e, tal como dele se servia o sacerdote, dele pode se servir o crente — agora sem as antigas restrições. Isso, e todo o supracitado, reflete a postura encorajada ao Makários, que, sabendo ser o “herdeiro da Terra” — “do Senhor é a Terra” -, está em posição de dela tomar posse por completo, à semelhança do Segundo Adão, o Cristo Rei. A “herança da Terra” é garantida e prometida aos Nascidos do Reino, de maneira que ainda está por realizar, quando da Volta de Jesus. Nela se radicam as passagens sobre o Milênio e sobre o governo, com Cristo, dos Filhos da Luz por sobre toda a Criação e por sobre as nações da Terra, assim como as passagens que falam do julgamento das nações da parte dos Nascidos do Reino. Dessa promessa, da garantia em Jesus e no senso da legitimidade de Filhos de Deus os cristãos extraem sua confiança e a ousadia de sua liberdade de domínio e de posse de todas as coisas. Daí um fundo para o “tudo me é lícito” paulino — um sentimento muito diferente do órfico, que apregoa uma total negação do Mundo, abandonado gradual e progressivamente.

… os cristãos sempre souberam tomar posse e santificar as riquezas da Terra, enobrecidas pelos tesouros do Céu…

Essa disposição, em nada sectária — e subversiva apenas acidentalmente -, é de máxima envergadura civilizacional e facilita o entendimento do espírito que esteve por detrás daquela autoestima cristã universalista, viabilizadora da assimilação de tudo de valor que há no Mundo, daquele ímpeto cristianizador e de entrega à soberania régia de Jesus de tudo quanto esteja ao alcance, que tenha Verdade e que valha a pena — o verdadeiro, o honesto, o justo, o puro, o amável e de boa fama, ou o que quer que tenha “alguma virtude” (Fl 4:8). Herdeiros da Terra e governantes do Mundo Porvir, os cristãos sempre souberam tomar posse e santificar as riquezas da Terra, enobrecidas pelos tesouros do Céu, uma vez marcadas pela Eternidade. Eis, portanto, a sua capacidade de assimilar o legado pagão, onde nele houvesse verdade e virtude, e aperfeiçoá-lo para a maior glória de Deus.

O cristianismo carregará, assim, as marcas de algo completo e inteiro, que não vem da e não se contenta em fazer mera oposição ao que “está aí” — não é acidente daquilo que o antecedeu e que o rodeia e nada do que não seja ele mesmo pode ser entendido como sua causa segunda. O cristianismo é ontológico, cosmologicamente necessário, parte substancial da Criação e vem a existir na Terra desde a iniciativa totalmente livre do próprio Deus, do Filho Encarnado — sua causa, que é causa primeira. Não devendo nada a ninguém e sobremaneira legítimo porque princípio da Nova Criação, pode se apropriar de tudo, de tudo fazer uso, a tudo julgar e tirar proveito de tudo o que tenha em si “alguma virtude”. O chamar “subversivo”, como se fosse mero opositor do que “está aí”, é, por conseguinte, contraintuitivo. Se ele vem para se opor a algo, não será contra aquilo que reside numa instância inferior à sua. Cosmológico, necessário, nascido da Transcendência, Corpo de Cristo e habitação do Espírito Santo, não vem para fundamentalmente combater o que quer que possa ser contado entre os particulares sensíveis, e combaterá “carne e sangue” apenas incidental e acidentalmente, enquanto representantes possessos dos “principados e potestades das regiões celestes”, os perpetradores supranaturais e ínferos do “sistema de Trevas deste Século” (Efésios 6). Esses são seus verdadeiros inimigos: as hostes satânicas, o “polo” opositor no conflito espiritual no qual a Igreja está de fato envolvida — é nela, nessa Grande Guerra Santa e na sua resolução em benefício dos Filhos de Deus, que se resume a presença da Igreja no Mundo e se perfaz o horizonte escatológico da vida cristã.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 28 de maio de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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