Da Fenomenologia do “Coach”
Uma exploração religiosa e sociológica
Um dos maiores equívocos do ethos “coach”, tal como existe popularmente (donde “ethos”), é a crença, baseada em uma série de maus usos de “evidências” neuropsicológicas e estatísticas, com aquela mistura de carismatismo personalista (da experiência individual do “herói exemplar”) com “física quântica” pasteurizada em panteísmo barato, de que eventos impactantes e emocionalmente inflamados devem gerar mudanças profundas na massa espectadora.
As ebulições “empreendedoras”, que dão a tônica de parte substancial do imaginário do cidadão médio de nossa cultura, naturalmente verterão em certos cultos públicos, que vêm suprir necessidades existenciais em um sentido horizontal, literal e coisificado, como o fazem as religiões de tipo popular e periférico desde que o mundo é mundo. Essa será uma resposta inadequada aos imperativos da Individuação na vida adulta, como bem sustenta e alerta C. Jung: a maior parte das aspirações que nos vêm quando chegamos à redondeza da meia-vida psíquica, que perdura por cerca de seis anos entre a casa dos trinta e dos quarenta, não deve ser vertida da maneira mais fácil e óbvia, com literalidade de tipo analógico, que conecta um insight a respeito de uma demanda pessoal com uma realização prática imediata e idêntica ao pensado — como o empresário que percebeu na meia-idade que lhe faltava vida emocional, harmonia com o lado menos prático da vida, e procurou resolver isso abrindo um negócio de pinturas que, evidentemente, fracassou (quando não ocorre de se abandonar toda a vereda anterior em favor de uma virada radical e unilateral em direção a um caminho igualmente insustentável). Se continuarmos, chegada a meia-vida, a depositar o progresso da integração de nossa alma exclusivamente em metas exteriores, nos manteremos presos a um circuito de busca e frustração irremediável, retrocedendo ao modus operandi juvenil, altamente exteriorizado, no exato momento em que deveriam realizar a passagem para um patamar mais espiritualizado, quando entendemos que parte substancial de nossas faltas são devidas à causas subjetivas, não objetivas — paradoxalmente, tendemos a uma maior extroversão na medida em que fazemos as pazes com o mundo exterior.
Se continuarmos a depositar o progresso da integração de nossa alma exclusivamente em metas exteriores, nos manteremos presos a um circuito de busca e frustração irremediável…
Essa estimulação de tipo afetivo, sensorial, à qual são submetidos os incautos em multidão só pode verter em metas concretas, do regime diurno da horizontalidade, prendendo adultos formados num verdadeiro culto efebo ao herói. Porque, como dirá Kerényi, o culto heroico da Grécia antiga era reservado aos jovens rapazes, os quais se agarravam à apelativa figura exemplar do dominador solar do mundo hostil, visto como besta draconiana a ser derrotado, como motivo ritual de passagem para o desenvolvimento de uma atitude combativa, exteriorizada, necessária para a boa colocação do rapaz na sociedade — que ele devia, de alguma maneira, conseguir domar para prestar bons serviços militares, aspirar a mulher de seus desejos e abrir caminho na profissão familiar.
Esses ritos compunham-se de uma mortificação de si, baseada em uma experiência psicologicamente sobrecarregada, ao ponto do colapso das estruturas psíquicas prévias, ligadas ao universo materno da infância, para um renascimento na condição de homem, com a mente reestruturada pelo recebimento dos mistérios viris. Uma passagem tal ocorria uma vez, no limiar da infância à vida adulta, e era sustentada pela aderência constante à instituição do culto heroico até o momento da passagem, na meia-idade, ao status ancião — Allan B. Chinen o verá na ocasião do desligamento do culto heroico, reservado aos jovens, e no ingresso do culto às divindades superiores, e da deusa. Essa transição tendia a acompanhar o amadurecimento da relação conjugal, o fim dos serviços militares, o estabelecimento derradeiro na terra e na cidade… os quais demandavam uma pacificação e uma estabilização dos humores, uma vez consolidada a vida, e uma transformação na mundivisão — o mundo e a sociedade não tanto como inimigos a serem domados e derrotados, mas como “lócus vitalis”. A obstrução nesse processo, com a perduração do adulto na condição juvenil, desviaria o sujeito da condição de Ancião para aquela do arquétipo do Rei Louco, que, enfraquecido pela decadência da potência física e do apelo viril, se tornará avarento e ainda mais violento.
Esses frenesis levam a psique a um limite emocional…
As semelhanças com o culto “coach”, aquele que vemos nos encontros massivos, são algumas. Porque há, sim, uma espécie de culto heroico ali, uma vez que parte considerável de todo o apelo desses encontros está na aura exemplar do palestrante, via de regra um “iniciado”, aquele que conseguiu atingir, com sua astúcia e com alta medida de autossacrifício, patamares ideais, donde o seu apelo carismático e o alto teor personalista supracitado — porque, embora sejam utilizados pretextos em certas “ciências” e na “jurisprudência” de casos bem-sucedidos, o principal elemento dessas palestras é o testemunho pessoal e a receita desenvolvida pelo próprio palestrante (é a ele que as pessoas querem ver e é de seu apelo autoritativo que as maiores bobagens são bem temperadas e creditadas). Uma segunda característica é o elemento iniciático propriamente dito: apela-se a experiências psicologicamente sobrecarregadas, com determinados ritos (como a passagem pelas brasas) e todo o peso mimético da multidão, que brada e “dança” em uníssono. Esses frenesis levam a psique a um limite emocional, viabilizam a relativização de convicções prévias (potencializadas pela antecipada aderência à autoridade) e ampliam a sugestionabilidade posterior, para assimilar como verdades últimas a instrução ali recebida (W. Sargant explicará isso nos termos das técnicas de lavagem cerebral). As semelhanças, todavia, terminam aqui.
Como demonstrou Sargant (A Conquista da Mente), experiências altamente emotivas, ao ponto do limiar do colapso, não têm durabilidade nos termos de seus efeitos, não têm apelo suficiente para chegar a interferir substancialmente no self conceitual e seu conteúdo semântico é pobre frente ao teor afetivo, que é episódico. Ademais, isso é sempre assim em viralização mimética de multidão. Tem-se um ímpeto que pode perdurar algumas semanas, talvez pouco mais de um mês, baseado na “energeia”, no carisma mobilizado na experiência cúltica, mas, invariavelmente e passado um tempo, ele sempre se esgota. Os antigos conheciam bem esse tipo de experiência, por isso trabalhavam com certos ritos de purificação para esvaziar o indivíduo do carisma mágico que ele mobilizara no rito comunal ou em intensas atividades sacrais, como a guerra. Para os ritos haviam purificações antecipatórias, preparatórias do corpo e da mente, conduzindo-os ao estado esperado para o bom proveito da experiência (exceção à passagem da criança ao adulto [baseada num “baque”]), e purificações retrocipatórias para viabilizar o retorno pacífico às atividades corriqueiras, de tipo profano; para a guerra, por sua vez, dado o temor de contágio sagrado e em vista da excitabilidade transbordante do guerreiro, ainda com o “sangue quente”, era proposto um tempo de isolamento e de apaziguamento, um tipo de purificação viável ao retorno à vida comum (como também eram os casos do parto de filhos e do luto, e mesmo de períodos de caçada [porque há primitiva coincidência simbólica entre a caça e a guerra]). O problema é que o incauto que desce à multidão do auditório “coach” desconhece as antecipações e as retrocipações — chega cru, sofre o baque e não é “esvaziado”, retornando “à flor da pele” à vida comum — daí o pontual aumento expressivo em seu desempenho e na sua iniciativa empreendedora, mais baseado na onda de energia do que em mudança consistente, seguido do esmorecimento e da frustração de projetos, os quais acompanham sua “melancolização”, e de um apelo renovado por mais experiências excitatórias do mesmo tipo (categorias típicas de um vício). O estranho fato de iniciações de tipo heroico serem aplicadas, hoje, às mulheres, é um detalhe que não posso deixar de perceber, mas que não vejo ocasião para destrinchar agora.
Então a psique vai recaindo em um circuito vicioso e sempre degenerescente para a Inteligência…
Não havendo antecipações e nem retrocipações, todas as idas aos “cultos” são como os “baques” da iniciação juvenil, sempre açoitando a psique com hiperestimulações severas, apenas construtivas quando muitíssimo eventuais e bem conduzidas por um sistema contingente. Não há esse sistema em nossa sociedade, porque não há estruturação culturalmente disponível para “bancar” o que é feito nos auditórios, nem em termos simbólicos, nem em termos institucionais. Então a psique, desguarnecida, vai sendo frontal e sazonalmente violada, subjugada e “energizada”, recaindo em um circuito vicioso e sempre degenerescente para a Inteligência e para a Virtude, ou o Espírito, que seriam os caminhos viáveis para a passagem da meia-vida, e aí teríamos Nekyia ao invés de regressão. Porque nem mesmo os antigos dos cultos heroicos repetiam as iniciações sazonalmente, conhecedores que eram de seu potencial despersonalizante, mas apenas uma única vez, para ingressar o jovem na vereda heroica, depois mantida por uma rotina de cultos que não eram iniciatórios, mas amenos.
Segundo Sargant, a maneira de a experiência psicologicamente sobrecarregada perdurar em seus efeitos está na continuidade, em escala amena, da relação do sujeito com as ideias e em um contexto propício a elas por um período maior de tempo — tempo suficiente para que a face afetiva, emocional, dos ritos possa ser digerida e esclarecida em termos semânticos e, seus gestos, em hábitos comportamentais. Então teremos tido, se a experiência iniciática corresponder a alguma verdade, o ingresso num caminho realmente substancial, uma vez que bons hábitos são virtudes que se instalam no lugar de maus hábitos, potenciais ou vigentes, chamados vícios. As pessoas, por conseguinte, deveriam se submeter a um único “culto” de teor iniciático para serem, logo após, acolhidas dentro de uma estrutura amparadora, na qual continuassem em processo de ensino através de um aparato simbólico e litúrgico recorrente. Isso acontece, sim e em parte (porque a contínua exposição à “iniciação” é padrão), e no melhor dos casos se trata de um tipo de seita ou de culto, com toda a tônica milenarista acusada por Edinger, mas ainda é melhor do que o que vemos na maioria dos casos, nos quais se estraçalhada o incauto psíquica e espiritualmente em repentes “orgiásticos” aleatórios, que só fazem, e sem mais, sobrecarregar os nervos. Daqui para a formação de toda uma geração de neuróticos, com muitas fileiras de psicóticos, é um pulo.
É provável que de fato estejamos assistindo à formação da persona típica de nossa época nesses meandros. Porque cada época, dirá Dawson, tem um tipo padrão, que se reconhece no comportamento, na postura, no vestuário… Já que, na medida em que o homem é sobremaneira societário e se forma socialmente basicamente por espelhamento e por retroalimentação dos valores considerados socialmente válidos, sempre haverá a tendência de formação de uma massa de símiles, a qual perfaz o grosso da cultura em um de seus momentos. Com as redes sociais, esse processo mimético se tornou ainda mais feroz e voraz, e como viemos de décadas de fomento de autoajuda e de espiritualismo rude, não é de se espantar como o largo dos tipos humanos da faixa entre os vinte e os quarenta está dentro de uma média típica, similar estética e posturalmente, como resultado do treinamento neuromuscular da “praça pública” — essa média típica bate bem com o sentimento que se vê, no extremo, nos “cultos” coach, sendo altamente dinheirista, hedonista e desejosa por progressos rápidos e expressivos por vias milagrosas, empreendedoras ou pelo “tigrinho”.
… derruirá em toda a espécie de histeria e de sofrimento psicossomático.
Essa já é uma expressão pública da decadência da civilização brasileira, muito aparentada do que se fez conhecido nos tempos de morte das civilizações de antanho. O problema é que essa persona típica dos tempos de crise tende ela mesma à dissociação — ignora tanto quanto pode o contato com sua miséria pessoal em favor de ufanismos e triunfalismos ambiciosos. Um percentual sempre notável das massas sobrevive a essa cisão na alma de maneira relativamente “tranquila” (típica da maioria extrovertida, ou “insensível” [E. Aron]), mas uma porção daqueles que se sentem impelidos à semelhança dos tempos não consegue suportar e sobreviver sã a essa dissociação — precisando se encaixar numa moldura genérica, sem consciência lúcida da sua incapacidade infraestrutural de fazê-lo, derruirá em toda a espécie de histeria e de sofrimento psicossomático.
Isso é assim porque, como dirá S. Keleman, cada organismo, na interface somática estabelecida com a psique, possui um funcionamento básico próprio, um metabolismo seu, uma forma apropriada e um jeito de atuar e de existir no mundo e na sociedade. É absolutamente danoso o imperativo vigente de que todos devam transparecer, em sentido literal e exteriorizado, imensas saúde, vitalidade, disposição e bem-estar — o que na realidade aparecerá como inquietação, agitação e angústia. Um sem-número de pessoas simplesmente é incapaz de ser dessa maneira, e eu estou entre essas pessoas. Caberá, portanto e sobretudo no limiar da Nekyia, assumir esse autoconhecimento como baliza para que delimitem adequadamente as arenas de atuação na vida e os meios pessoalmente apropriados de realizar as coisas — em vista do maior benefício de si e, veja bem, também dos demais.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 03 de junho de 2024.