Da Maldade Humana
por uma visão integral daquilo que somos
Nós precisamos de repertório para descrever e digerir o assombroso. Cada época tem sua ciência e seu mito. Com a derrocada do antigo sistema de mundo cristão, de matiz ontológico e dado à liberdade humana perante Deus, supra-ideológico, pois integral (desde o apóstolo Paulo sabemos do homem como movido por predisposições carnais, mas também por vícios almáticos e direcionamentos do espírito), sistemas ideológicos, e portanto reducionistas, se assentaram.
Como disse Lewis (2021), a linguagem do homem antigo era bastante pessoal e específica, pouco afeita a generalidades abstratas, de maneira que o discurso sobre o homem só fazia sentido se nutrisse identificações imediatas com aquilo que este sabia, sentia e intuía ao seu próprio respeito. Num contexto que se servia da metáfora e da analogia, muito mais poético, portanto, a necessidade de tomar de empréstimo algo para descrever um outro dizia da ausência de uma linguagem científica, especial, racionalizada, e também anunciava uma visão holística da realidade, dada espontaneamente e tão concreta e universal que sequer precisava de definições mais claras — em geral, tais definições começam a aparecer quando a verdade visceral se vê comprometida e ameaçada, e é justamente aí que o homem passa a percebê-la com mais clareza (e é exatamente quando precisa descrevê-la que passa, também, a senti-la menos). Um sistema ideológico nascerá quando essa visão de fundo, transcendental, tendo perdido sua credibilidade e sido temerariamente jogada no terreno da discussão, combina a limitação da linguagem humana de senso comum, apegada às particularidades, com o ímpeto holístico e universalista do espírito humano, sedento de sentido, dentro do escopo de um discurso especializado, “lógico”. Daí se toma um particular, que é percebido e apelativo de pronto, e se realiza um esforço argumentativo para absolutizá-lo.
O homem contemporâneo, desprovido da estrutura cosmológica cristã tradicional, já não mais intuitiva, fica reduzido à opção ideológica pela narrativa de alguma ciência especializada, que em geral é aquela ao redor da qual ele se especializou, ou aquela da moda do momento, que os especialistas em destaque melhor semeiam nos entremeios midiáticos e da cultura. Ele pode seguir a vereda sociológica, antropológica, biológica, econômica, psicologista… cada qual com sua filosofia/teologia de fundo, sempre caracterizada pela parcialidade de perspectiva, fruto do adoecimento espiritual iluminista. Dado à particularidade, mas perdido da unidade orgânica de fundo, ele vai do âmbito qualitativo, das coisas na realidade, para o âmbito quantitativo, da realidade das coisas, e precisará lidar com o que estiver à sua disposição para tornar a vida suportável, de algum modo significativa. As coisas que assume como explicações para o mundo acabam não sendo mais aquelas que casam com um tipo de saber profundo, intuitivo, que demanda certa fineza espiritual, mas o contrário: ele se assume conforme a narrativa que, disponível em seu horizonte, capta sua paixão indefinida e a canaliza para propósitos extrínsecos. Ou seja: a abstração, que toma um particular da realidade e o distorce ao nível do absoluto, é reenviada para dentro do sujeito, que se explica a partir dela, e não a ela a partir de si mesmo, de maneira que a abstração não é mais um meio de entender uma esfera de seu ser individual, mas a inteireza de de si próprio. O apóstolo Paulo sabia ter sido influenciado pelo apelo cultural de Tarso e dos círculos farisaicos, mas entendia que os imperativos sociais e culturais correspondiam a apenas uma parte da formação de sua identidade e conduziam apenas uma porção de seu comportamento. O Paulo hipermoderno, acadêmico de história, vai se assumir como social e culturalmente condicionado, todo resumido numa construção social.
Casos como o de Lázaro (o matador em série brasileiro), com toda a repercussão que têm, levam o raso repertório explicativo ao limite. O homem comum, sem conseguir assimilar bem um quatro tão brutal, oscilará entre o produto dos resquícios de uma cosmovisão cristã, preservando a imagem do criminoso como um homem integral e responsável, que assumiu o Mal conscientemente e de tal forma a transformar a si mesmo num bruxo, seguidor de São Cipriano e dado à magias de invisibilidade (Chesterton dirá que o horror medieval às bruxas não vinha de uma visão pobre e miserável da condição humana, mas, pelo contrário, do assombro mediante as dimensões às quais pode chegar a autonomia do homem na rebelião contra Deus), e a visão psiquiátrica, científica, parcial em seu determinismo ou fatalismo, que substitui a percepção do homem integral, com suas esferas de liberdade e autonomia, por um mecanismo cósmico impessoal, um tanto quanto jainista, que predetermina e justifica as ações mais brutais como produtos de algo, ao fim e ao cabo, menor do que um “homem completo” (esse é o espírito iluminista em ação): Lázaro, ou foi uma vítima da sociedade, ou apenas um louco psicopata. Essa é a vereda seguida por quase todos os “homens instruídos” de nosso tempo. É explicativa, mas menor do que a primeira, que assume mais elementos e mantém algum nível de responsabilidade humana, pois não vê o sujeito como menos humano e menos responsável do que “as pessoas normais”.
A maior parte das chamadas “doenças mentais” não anulam a consciência e nem a volição do homem
A maior parte das chamadas “doenças mentais”, conquanto correspondam a desordens fisiológicas e na organização neurológica (aqui devemos excluir danos anatômicos ao cérebro), não anulam a consciência e nem a volição do homem, apesar de, naturalmente, turbarem a sua lucidez. De todo o modo, a maldade invariavelmente estará casada com a intencionalidade e com propósitos definidos. Um homem contemporâneo que fosse conhecer Lindisfarne no dia da primeira invasão viking, certamente chamaria a todos os salteadores de psicopatas homicidas, dada a brutalidade e frieza de suas ações, sem perceber que também poderiam ser bons maridos, bons pais, bons artesãos e bons agricultores, inclusive bons poetas. Poderia, também, vê-los como mero produto do tempo e da cultura, mas não foi assim que os monges britânicos os perceberam — para eles, os invasores eram pagãos e, portanto, adoradores bárbaros do Diabo. De qualquer maneira, nunca seriam percebidos como menos do que humanos, se nosso viajante do tempo não tivesse ido parar lá para julgá-los anacronicamente.
LEWIS, C. S. Cartas de C. S. Lewis. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021.
Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 29 de junho de 2021.