Da Maturidade Psíquica
A saída da mediocridade
No que se aproximam o “cérebro-colmeia” (Haidt) e o Inconsciente Coletivo (Jung)? O cerne de nossa psique é formado justamente no tempo da infância, ocasião das primeiras grandes “estampagens” e de uma reduzida capacidade consciente, antes da conclusão do treinamento neuromuscular para a formação da “Face” e quando ímpetos instintivos e apelos arquetípicos ocupam parte considerável também da vigília. É nesse período de limiar que somos mais especialmente marcados pela herança civilizacional (nos termos da cultura enquanto transmitida externamente), porque mais suscetíveis de “assalto” da herança filogenética (isto é, internamente), sendo curtíssima a distância entre a compulsão interna e o objeto externo. A soberba plasticidade cerebral da criança é, disso, parte fundamental. Experiência arquetípica, o modus elementar do viver infantil, dada a baixa maturidade da consciência, dá-se mui concretamente, mui magicamente, mui objetiva e exteriormente.
Na existência trivial, que transcorra dentro da máxima normalidade, a tendência é, acompanhando o desenvolvimento orgânico e o potencial cognitivo, hominizar a criança através da instrução e do disciplinamento, os quais ampliam a autoconsciência e ajudam a circunscrever os limites de si e do “eu” — fortalecidos, pois, pelo acúmulo de memórias e solidificados, enfim, pela diminuição da plasticidade cerebral. Esse processo acompanha o apelo arquetípico heroico, visando uma crescente distinção entre o “eu” e o mundo objetivo, em sentido eminentemente exteriorizado, e a aquisição de habilidades eficazes para o domínio da realidade derredor — isto é, a adaptação ao meio, que é principalmente social. Como sustenta Feldenkrais, o que é exigido da sociedade é que o indivíduo se desenvolva a uma média de apenas cinco por cento de seu verdadeiro potencial — seja intelectual, seja físico -, sendo este o mínimo necessário para que ele se torne um cidadão útil e respeitável. O significado disso é que o investimento no amadurecimento psicológico, de certa maneira, termina aproximadamente quando da conclusão da formação educacional considerada desejável, que é mais ou menos quando o corpo termina de amadurecer e se aproxima do início do declínio orgânico. Quer dizer, pois, que a progressão no desenvolvimento da autoconsciência tem termo, no sentido do trabalho intencional, quando o sujeito já não é mais de todo dependente da sociedade e é capaz de considerável autonomia — ou seja, por volta do início da vida adulta.
Esse estado de coisas conserva a absoluta maioria das pessoas em uma condição psíquica que reside nos limites da adolescência, com a diferença de que a reequilibração hormonal e o acúmulo de experiências e de memórias torna essas pessoas suficientemente bem adaptadas às demandas sociais, familiares e profissionais que lhes acometem, podendo até tornarem-se sábias — aquela sabedoria intuitiva, apenas ligeiramente ligada a alguma fórmula abstrata. Isso as mantém predominantemente exteriorizadas, dadas à vida prática e disponíveis aos apelos sensoriais e às imaginações compartilhadas de objetos de desejo e de metas — via de regra, realizações de cunho material acompanhadas de bem-estar emocional. Porque sua autoimagem, neste patamar de consciência de si, se conserva segundo a estruturação primeira e sua lógica de desenvolvimento orgânico e natural, como somatório de experiências mnemônicas na realidade e do espelhamento mimético do ambiente. Raramente um sujeito assim se preocupará em pensar sistemática e meticulosamente sobre si, sobre as raízes de sua formação dentro da biografia (anamnese), sobre quem de fato é (à exceção de respostas “clichês”), a não ser que seja arrastada para tal por pressões exógenas suficientemente insuportáveis — a definição de “crise”.
… o Inconsciente Coletivo é encontrado como o manancial, o substrato das experiências típicas da humanidade…
Em circunstâncias normais, experiências altamente significativas e afetivamente sobrecarregadas — as transições da infância para a adolescência e da adolescência para a vida adulta, a perda de familiares, o casamento, a iniciação sexual, a geração e o nascimento de filhos, o ingresso e o regresso profissionais, a meia-vida, a entrada na velhice, a chegada dos netos, a perda do cônjuge e o umbral da morte -, são, por transcenderem os recursos assimilados pela consciência própria, vividas e sobrevividas lançando mão das fontes arquetípicas disponíveis nas tradições e nas convenções, daquelas que estiverem ao alcance e que seguirem ofertadas no campo social, sem consciência clara das razões profundas das mesmas, mas segundo as suas diretrizes, que são estruturantes e viabilizadoras da passagem pelos terrenos do extraordinário. Assim, o Inconsciente Coletivo é encontrado como o manancial, o substrato das experiências típicas da humanidade, no qual se legitimam certas instituições de valor convencional e que auxiliam aos indivíduos em suas incursões pelas veredas do suprapessoal, daquilo que transcende seus meios próprios, relativos aos tempos de vida seus.
A emergência do arquétipo e do Inconsciente Coletivo igualmente arrebatam quando situações críticas não podem ser amparadas por instituições tradicionais de alto apelo psíquico. O sujeito solitário, quando em crise e sem orientação ou acesso à fonte, será especialmente assaltado por sonhos altamente simbólicos e por ímpetos de larga potência, como se possuído por uma mentalidade diferente da sua habitual, habitado por uma legião de logismoi, como se instrumento de joguetes “cósmicos”, como se revivesse algum drama universal, arrastado pelo Destino. Em um contexto de massas, quando de uma crise coletiva que não encontra amparo em tradição e instituição, haverá uma espécie de loucura coletiva, de “possessão geral” formando turba, formando colmeia, formando multidão — um organismo amalgamado segundo uma energia visceral, matizada em comandos muitíssimo simples e em causas altamente concretas, confundindo a destruição de edificações ou pessoas simbólicas com a ação de uma espécie de entidade divinal e a emergência de uma nova realidade (a Revolução, enfim).
Aqui o Inconsciente Coletivo se confunde com o que Jung chamou de Natureza, porque o seu apelo é idêntico ao apelo dos instintos, eclodindo desde “baixo”. O que acontece nos momentos decisivos, de altíssimo teor emocional, de limiar, que é o que tende à ativação do “cérebro-colmeia”, acontece sob os auspícios do Inconsciente Coletivo. Não é sem razão que Jung percebeu que momentos de exaltação emocional, de desarme de parte da consciência lúcida e de alta credulidade coincidem com grandes profusões de eventos sincrônicos, de tipo mágico e milagroso — o arquétipo aparecerá exteriorizado, projeto no ambiente, e transformará a experiência, atribuindo-lhe sentido e destinação. São estas, pois e a princípio, operações da psique.
Nos casos incomuns de perpetuação do processo intencional de desenvolvimento da consciência e do potencial pessoal para muito além da medida do socialmente aceitável, que é a da relativa autonomia própria, a lógica, de certa maneira, se inverte. Porque, chegado o limite da oferta de educação e de formação disponíveis socialmente, as quais visam a conservação do próprio sistema societário, o caminho deverá ser mais altamente individualizado, já não se satisfazendo com a busca mimética pelo espelhamento horizontal e pela captura de referências imediatamente disponíveis nas trocas sociais convencionais — a chamada Pequena Tradição.
O caminho será, portanto, o do deslocamento do regime diurno e horizontal para o regime noturno e vertical…
O que se quer dizer com “perpetuação do processo intencional de desenvolvimento” não é o mesmo que a continuidade nos estudos acadêmicos formais, tampouco é sinônimo de psicoterapia, pois estes dois territórios podem ser ambos procurados segundo o regime diurno da horizontalidade e para finalidades materiais de alto valor societário. A “perpetuação do processo” continua se os mesmos mecanismos internos que atuaram no montante dos primeiros anos forem conservados e se lhes for permitido o amadurecimento interno de seus apetites, ao invés de seu descarte e de sua substituição: a “experiência primitiva” (Lavelle) de espanto com o Ser, daquele encantamento pela sua imensidão e pelo seu mistério, que dota a criança da compulsão exploratório por conhecimento e por domínio (a curiosidade e o lúdico), reflui em autoconsciência, na percepção do lugar no Mundo, no ímpeto “entendedor”, naquela ousadia quase temerária de quem quer “saber”, e que vai “sabendo-se” enquanto procura entender alguma coisa — vem da continuidade e do enraizamento n’A Questão (Lonergan), no obstinado e consciente posicionamento na tensão da Metéxis platônica, que é uma condição de Crise. O caminho será, portanto, o do deslocamento do regime diurno e horizontal para o regime noturno e vertical, caracterizando um estado de ser que saberá se entregar à elevação que vem da contemplação da beleza nos menores detalhes da vida diária, enquanto recorrentemente se perderá nos meandros das mais elevadas abstrações, extraídas, todavia, não de discussões bizantinas, mas da experiência da condição trágica, exultante e opressiva, de suspensão entre o Nada e o Absoluto.
Um tal estado de coisas não pode ser saciado na cata de referências horizontais, de tradições tais como institucionalizadas, de confissões de caráter coletivo e socialmente afirmativo. É um estado que oscilará entre uma solidão extrema e um sentimento de comunhão mística com Deus e com toda a Criação. Uma figura assim será considerada, via de regra, excêntrica e tratada, não raramente, com certas suspeitas, como uma espécie de sutil ameaça ao status quo e à coesão social. Viverá com muito mais consciência e com muito mais intensidade espiritual as experiências vitais afetiva e simbolicamente sobrecarregadas — as citamos acima -, e se não explodir emocionalmente e não souber expeli-las extrovertidamente nas suas ocasiões de eclosão, como fazem os seus pares, que conseguem se servir “instintivamente” das tradições e de suas instituições, o viverá introvertidamente, esmagado por todo o peso das mais densas e horripilantes dúvidas e inseguranças, e terá que encontrar meios mais apropriados para que consiga repousar.
Os “meios apropriados” ele encontrará na Grande Tradição, ou naquilo que Corção denominou “Ionosfera da Civilização”, ele mesmo a comparando com o Inconsciente Coletivo junguiano. Sua passagem pela meia-vida deverá ser, por exemplo, uma “Nekyia”, demandando um aumento na necessidade de isolamento e de solidão para uma autoimersão meticulosa, guiada por algum sistema de apoio, por algum norte, talvez a Noção, passando, de “fio de Ariadne” em punho, pela sombra e pelo Labirinto da profundeza de si, para renascer em metanoia, como se “convertido”, preparado para assumir, no novo momento vital, um novo patamar, mais espiritualizado, de existência — sem a “Nekyia” e em condições convencionais, a experiência é vivida horizontalmente, segundo os valores desejáveis e disponíveis no ambiente, donde crises de meia-idade serem “sanadas” com um aumento da busca e da conquista sexuais, com a aquisição de bens notáveis e com outras evidências de uma curta regressão à juventude nostálgica (o ímpeto é assumido em termos literais e concretos e realizado vulgarmente, quando deveria orientar para uma verticalização, para uma resolução em sentido espiritivo).
… ali onde os arquétipos assumem suas formas apolíneas e mais depuradas…
Aqui o Inconsciente Coletivo deixa de ser apenas aquele fundo abissal de comandos filogenéticos, que eclodem como instintos, ao que podemos sintetizar na categoria “Natureza”, para, progressivamente conscientizado, se tornar o manancial de buscas numinosas de tipo espiritual — um hiperurânio de formas ideais, o grande repositório das realizações civilizacionais… a morada do Espírito, enfim. Assim, o sujeito que jaz na empresa da Individuação, movido pelo eros enquanto atração -helkein- pelo Absoluto, conseguirá retirar-se da circunscrição do regime horizontal, imediato, societário, que é eminentemente pragmático e pautado no “eros pandêmio”, e comungar com universais, tais como vividos pelos grandes de todos os tempos e ali onde os arquétipos assumem suas formas apolíneas e mais depuradas, através dos quais abastecerá de luz e de cor o trivial diário, robustecendo o seu interesse pelo Mundo em suas múltiplas manifestações e, do isolamento autoimersivo, se verá em contínua, da religação com o Divino, religação com a realidade objetiva, donde sua excelência prática e sua eficácia na condução dos assuntos da casa, da família, da profissão e da vida como um todo.
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Não se deve, contudo, confundir o afirmado a respeito do desenvolvimento da consciência com a ideia de que o ser humano, ao longo da vida e segundo seu processo de hominização particular, tenha mais ou menos consciência — entendendo-se “consciência” em sentido escolástico e fenomenológico (cum + scire = “saber com”). Como definirá Dr. Lyra (Parapsicologia, Psiquiatria, Religião): “o conhecimento de algo comum aos outros (com os outros)”, o que me lembra o estudo de Mortimer Adler sobre conhecimento. Consciência será, portanto, sempre “consciência de” — quão perigoso seria, e Jung o alerta, hipostasiar abstrações, tal como fez Freud. Não se tratará, portanto, de continuarmos a pensar em “estados de consciência” (com mais ou menos consciência), mas de “modos de consciência” (porque sempre que houver consciência, é consciência de algo). Por essa razão, a criança pequena, quando desperta para a consciência, já é de todo e de uma vez consciente, mas seu modo de consciência é diferente daquele do adulto — muito mais determinado por pressões arquetípicas e mágicas -, e o o desenvolvimento de sua consciência será o processo de progressão para modos outros de consciência, ou para a capacidade de apreender os objetos exteriores e e exteriores de maneiras mais especializadas.
Textos de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicados em meu perfil pessoal do facebook nos dias 17 e 18 de maio de 2024, respectivamente.