Da Recuperação do Imperativo Vocacional
Um prognóstico para a confusão da minha geração
A falta de instituições autoritativas e relevantes para as passagens e iniciações de nossa sociedade e dentro de nossa cultura é, pois, uma das razões de nossa tragédia civilizacional. Poderíamos traçar um histórico, uma genealogia para esse estado de coisas, mas todos devem saber o que sucede e como se sucede à Revolução Industrial. Importa lembrar que a nossa época materialista e tecnológica, pluralista e cética, sensualista e consumista, e assim por diante, é incapaz de fornecer estruturas societárias relevantes para a orientação das gerações, de maneira que cada vez menos os jovens acham intuitiva a continuidade do ofício dos pais, que lhes é, via de regra, incógnito, e, distantes da sabedoria dos anciãos, são postos “nus” diante de uma imensidão de possibilidades.
O campo social é-lhes apresentado como um amálgama, um verdadeiro magma genérico, caótico e inabarcável, dentro do qual deverão assumir praticamente sozinhos o encargo das decisões mais importantes de suas vidas, da matrimonial à parental, da religiosa à profissional, sem nenhuma coesão imediata ou conexão orgânica entre as partes. Desprendidos da perspectiva dos processos, dos alinhamentos de causa e efeito, da percepção da lógica interna entre os tempos e os espaços, mais clara em um cenário campesino, de ofício doméstico e artesanal, não assimilam facilmente uma visão holística e estruturada da vida — o emaranhado urbano e internético quebra das dimensões espaço-temporais e é de uma complexidade que transcende infinitamente a mente individual. Despreparados por falta de afirmativa social e por carência de orientação simbólica, dada a ausência de ritos de passagem, os jovens estão assombrosamente inseguros para dar cabo de empreendimentos decisórios tão limítrofes.
Aqueles que pretendem enfrentar o encargo decisório estarão suscetíveis a todo o montante everéstico de orientações públicas…
Vítimas de larga desesperança, porque certamente desamparados, tenderão à postergação do progresso existencial e ao escapismo em virtualidades e entretenimento — facilitado por pais que não conseguiram orientar adequadamente, fornecendo estruturas simbólicas de valor iniciático (como a Igreja, a família mais ampla…), e que acabam acolhendo seus filhos por tempo excessivo e dentro de um regime permissivo e infantilóide. Aqueles que pretendem enfrentar o encargo decisório, sobretudo no quesito profissional, estarão especialmente suscetíveis a todo o montante everéstico de orientações públicas para fortalecimento pessoal e progresso existencial.
O senso de despreparo mediante a súbita provação da posse responsável da própria vida e a pressão inflamada pela capacidade de decidir o mais importante sem uma base existencial sólida e sem uma estrutural mental suficientemente robusta, deixam-nos vulneráveis ao mais vasto e diverso número de instrumentos e de conhecimentos preparatórios, aos quais saem à cata através de todos os canais disponíveis. Isto é assim, pois estão diante de uma generalidade univérsica de possibilidades e possuem ambições sobremaneira materialísticas, de bens futuros, e que podem ser saciadas por uma infinidade de meios, e por isso não podem saber claramente como estarem preparados para o porvir, já que o horizonte é desumanamente amplo. A vastidão de possibilidades e a dificuldade extrema de decidir conduzem a uma impressão de que se deva estar preparado para tudo antes de estar apto a escolher e de que a preparação completa trará consigo a resposta necessária sobre o futuro. Assim, baseados num genérico e universal “homem ideal”, vão se munir de um monte de recursos mentais, comportamentais e físicos, aderindo a todo o pacote “coach” e “fit” — a vida, então, na ausência de clareza profissional, será basicamente trabalho consigo mesmo, e mesmo o ingresso no Mercado de Trabalho dificilmente será encarado como início de carreira, pois o imperativo é estar trabalhando em si mesmo e em vista da progressão mais rápida para um lugar mais rentável, qualquer que seja.
A vastidão de possibilidades e a dificuldade extrema de decidir conduzem a uma impressão de que se deva estar preparado para tudo…
É um terrível engano a ideia de que se deve estar pronto e acabado, munido de todos os recursos, e que estejam internalizados como pressupostos dos passos efetivos no grande campo da vida pública, para começar a engrenar “lá fora”. A falta de orientação existencial e de passagem, a falta de norte, portando, não parcializa e nem delimita adequadamente a faixa pessoal de possibilidades realísticas e vocacionais no Mundo, inibindo a opção intuitiva pela vereda mais adequada para si. Como as ambições juvenis têm sido, conforme supracitado, eminentemente objetos de desejo e de consumo, é claro que o senso vocacional e a perspectiva teleológica de jornada existencial se empalidecem — mas isso decorre de falhas graves na orientação espiritual e iniciática das crianças e dos jovens. O satisfatório conhecimento de si, em termos de identidade própria — segundo uma base prévia de religião, de família, de comunidade e etc. — e de autoconhecimento — segundo a descoberta dos gostos próprios, baseada no ócio infanto-juvenil — ajudaria a nortear uma perspectiva mais limitante, mais esclarecida e mais evidente de propósito de vida. Uma elevada noção do valor pessoal, atribuído pelo empenho parental, familiar e comunitário, correspondente a um ambiente afetivamente seguro e espiritualmente orientado, tornaria mais natural a opção vocacional e teleológica.
O fato é que o melhor aproveitamento do potencial pessoal está conectado a uma melhor capacidade de decidir, que é segundo uma compreensão de si em termos mais vocacionais do que materiais — embora não se deva suprimir este último aspecto. O discernimento mais claro de qual a arena mais propícia para si no embate da vida pública, além da habilidade de conseguir tomar posse efetiva desse entendimento, deslindaria um cabedal de forças, de conhecimentos, de preparações muito mais reduzido e factível do que aquele da generalidade e universalidade do “homem ideal”, pois se referiria muito mais ao tipo de persona que é ideal para aquele setor específico da vida em comum. Essa delimitação ajudaria, ainda, a ter noção objetiva e pragmática de quais vícios devem ser superados e de quais, no final, não serão tão problemáticos assim, além das virtudes, de quais serão inegociáveis e de quais não precisarão de tão intenso investimento — um programa de ação mais realístico, em termos de trabalho pessoal, se desdobra, porque antevê as necessidades da persona pretendida. Ademais, em se tratando de vocação, a definição antecipada do meandro próprio no Mundo não torna tão imperativa a preparação prévia — já se pode estar em movimento, em jornada, desde o primeiro momento, porque a questão da escolha já está resolvida e, no final das contas, a melhor preparação se dará na própria realização da coisa, respeitando os processos naturais que vão do iniciante e aprendiz até aquele de mestre, guardado para o tempo tardio.
… um programa de ação mais realístico se desdobra, porque antevê as necessidades da persona pretendida…
Convém, portanto, um desligamento profilático dos imperativos generalistas de nossa sociedade indeterminante e, desse desligamento, uma recuperação da antiga sabedoria societária das classes e das guildas: é em um e apenas num território que poderei ser excelente e desde o qual poderei contribuir satisfatoriamente com a minha medida de obrigação para o bem comum. De fato, a mim só estão, no final das contas, exigindo isso: que eu defina meu caminho e que o realize responsavelmente e com maestria.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 5 de agosto de 2024.