Da Singularidade Ocidental
liberdade e individualismo
O Ocidente, na figura da Europa, conheceu condições singulares e inéditas na organização política grega, de matiz indo-europeu: a pólis, conquanto autônoma em si mesma, participava de uma unidade cultural e étnica maior, as poleis, sem que isso significasse a existência de um império ou de um estado em comum — havia um equilíbrio entre unidade e diversidade, que permitia a distinção entre os gregos e os outros, bárbaros, mas que também não considerava guerras entre as cidades gregas como guerras civis. Essa unidade podia culminar em ligas, quando da urgência, como aconteceu mediante as guerras contra a Pérsia (MORRIS, 2005).
O Império Romano, herdeiro dessa influência grega, mas também da dificuldade do imperialismo helênico de assimilar comunidades numa estrutura política maior do que a pólis (impedimento conhecido por Alexandre Magno), delineou com toda a clareza o espírito ocidental. Ele pode ser definido como o Estado em busca de comunidades: que apelo seria suficientemente forte para congregar diferentes povos, diferentes culturas e diferentes religiões num todo unitário? Nenhum parecia disponível. Ao mesmo tempo, Roma era Civis, não Pólis (CACCIARI, 2010), e, enquanto Império, não reconhecia a legitimidade de um outro: a fronteira era apenas o limite até então alcançado pela Pax, um limite que naturalmente avançaria em direção à assimilação de mais povos, de outros bárbaros, que se “romanizariam” — ou seja, que conheceriam as estruturas mínimas da civilização latina e que pagariam tributos à Roma e engrossariam as suas legiões. Em geral, a própria elite local administrava a parte do império que lhe cabia, longe da órbita do Lácio (BURBANK; COOPER, 2019).
O Estado ocidental, de índole nacional, é resultado de Império e também de Pólis: maior do que uma cidade, possuindo dimensões geográficas imperiais, é capaz de sobreviver melhor às pressões externas, e, tal como a pólis, sabe reconhecer em suas fronteiras a legitimidade e a autonomia de iguais, que são outros estados, e procura investir em elementos que centralizem seu poder das fronteiras para dentro — nisso imita, mas diverge da pólis, pois não é étnico, no que se assemelha ao expediente romano, que procurou no fortalecimento burocrático e militar a garantia da unidade territorial, e, tardiamente, no apelo a uma unidade religiosa inequívoca e ligada ao Estado, como se intentou descobrir nas oscilações entre o monoteísmo cristão e os retornos ao paganismo das elites romanas (MORRIS, 2005). Essa combinação, geradora do Estado ocidental, aconteceu no caldeirão medieval, sob decidida influência cristã.
Com a quebra do Império romano, as elites locais, outrora autorizadas por Roma, estabeleceram soberanias feudais, que aos poucos, em alguns lugares, procuraram recapitular o Império, à luz de Roma, como fizeram os francos e os germânicos. Sob o espírito romano, de índole universalista, pois imperial, as lealdades feudais não diziam tanto respeito à terra em si, mas às lealdades individuais, de pessoas que se aliançavam com senhores e, posteriormente, com imperadores (MORRIS, 2005), e também à autoridade eclesiástica, que emanava primeiro de Roma, mas também de antigos centros missionários, monásticos, como da Irlanda, da Inglaterra, da Ibéria e de outras regiões (DAWSON, 2016). Conquanto o território fosse importante, havia uma unidade espiritual continental e a ausência de uma autoridade temporal suficientemente apelativa, donde diversas autoridades se amalgamavam ou rivalizavam, solicitando as lealdades individuais, ou de grupos menores. Eis onde nasce muito do espírito do individualismo (no bom sentido do termo) ocidental, que respingará no Estado Nacional, que busca autonomia e que também garante certos níveis de liberdade individual em diversas áreas (MINOGUE, 2019).
Todo o cristão poderia apelar para a autoridade da Igreja contra os abusos do Estado, já que a sua lealdade, dada aos dois, estava livre para preferir a autoridade de um em detrimento da autoridade do outro
Os Estados Nacionais se formarão, sobretudo, quando os senhores locais, tornando-se reis, conseguem rivalizar moral, econômica, espiritual e militarmente com a autoridade papal e da igreja em Roma, fortalecendo seus centros de autoridade religiosa locais. Isso significa que os Estados Nacionais crescem na medida em que enfraquece o poder da Igreja e em que os projetos imperiais inspirados no romano se esfacelam. Ainda assim, a influência do cristianismo e da igreja em Roma, assim como o espírito grego, garantem aos Estados europeus a consciência de pertencerem a uma mesma unidade cultural e espiritual maior, um legitimando o outro como, de certo modo, irmãos — mesmo que isso não impedisse guerras entre eles (ORTEGA Y GASSET, 2015). Essa unidade cultural e espiritual, sustentada, na modernidade, pela existência de “instituições” internacionais, como a Ciência, as Universidades e a Igreja, sobretudo a Igreja, que sempre polarizou com o Estado, sempre foi a garantia das liberdades individuais no Ocidente: um doutor medieval podia ir de uma universidade na Espanha para outra em Paris, e isso era natural, um cientista ou filósofo europeu poderia optar por uma vida “internacional”, como membro de uma comunidade acadêmica maior, e todo o cristão poderia apelar para a autoridade da Igreja contra os abusos do Estado, já que a sua lealdade, dada aos dois, estava livre para preferir a autoridade de um em detrimento da autoridade do outro, sendo a Igreja, comumente, colocada como superior, pois mais elevada, à do Estado (PRODI, 2017).
BURBANK, Jane; COOPER, Frederick. Impérios. São Paulo: Planeta, 2019.
CACCIARI, Massimo. A Cidade. São Paulo: Gustavo Gili, 2010.
DAWSON, C. A Criação do Ocidente. São Paulo: É Realizações, 2016.
MINOGUE, K. A Mente Servil. São Paulo: É Realizações, 2019.
MORRIS, C. W. Um Ensaio Sobre o Estado Moderno. São Paulo: Landy, 2005.
ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Campinas, SP: 2015.
PRODI, Paolo. Profecia, Utopia, Democracia. In: CACCIARI, Massimo; PRODI, Paolo. Ocidente sem Utopias. Belo Horizonte: Âyiné, 2017.
Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 21 de agosto de 2021.