Da Solidão do Hipermoderno

Uma leitura breve da causa da resistência popular ao “woke” nas obras cinematográficas

Natanael Pedro Castoldi
7 min readNov 11, 2024

Todas as possibilidades de uma cultura deverão ser desenroladas ou descompactadas da Fascinação originária, aquela que a instaurou. Ainda que uma cultura não seja algo puro, mas, sim, um magma permeável por uma miríade de influências externas, de pressões internas e de aleatoriedades ou contingências, o imperativo arquetípico ou o aspecto do Ser que reordenou e constelou toda a experiência societária desde o ponto de sua eclosão tende a perdurar como um programa civilizacional, com uma lógica interna que se servirá de todos os elementos disponíveis para que se realize por completo, até à exaustão, acompanhada pela decadência e pela emergência de um novo “arquissímbolo”. Por isso, em termos de dominância civilizacional, o tempo de governo de um Motivo ou de uma Noção pode ser chamado Éon. O Éon Romano-Pagão é notável, tendo desenvolvido os gérmens da Fascinação instauradora até além das fronteiras da dissolução, quando o apolíneo e olimpiano sucumbiu às formas ínferas e dionisíacas de sua própria Sombra, dando em crescentes perversidades e venalidades, em uma horizontalidade materialista e hedonista moribunda que pediu por um novo Mito Solar de tipo ético, inicialmente disputado entre o mitraísmo e o cristianismo e finalmente cristão.

A Cristandade é um desenvolvimento da imposição horizonto-vertical da Cruz e do Cristo…

A Cristandade é um desenvolvimento da imposição horizonto-vertical da Cruz e do Cristo e todos os aspectos da cultura ocidental foram vertidos e revertidos dos motivos crísticos. Neste sentido, a Literatura é ela mesma uma parte do projeto desdobrado da Fascinação cristã e de sua realização humanística e antropocêntrica — um modo de ser humanístico que não é apenas uma perduração do legado grego, mas o seu amalgamento ao ethos judaico e ao pathos germânico, tal como progrediu em sua cristianização. Donde

Vemos, portanto, como o processo literário ocidental não constitui um campo livre de individualidade, mas é um fazer limitado e circunscrito por uma matéria-prima oferecida pela fascinação cristã.
- V. F. da Silva, Transcendência do Mundo, p. 135

Quer-se com isso dizer que a Literatura deve seguir o panorama geral das possibilidades historicamente atualizadas do espírito cristão. Não é sem razão que Northrop Frye, n’O Grande Código, viu nas Escrituras os mitologemas de todas as possibilidades posteriormente descompactadas na Grande Literatura da civilização, com potencialidades ainda por identificar e ainda por atualizar, ou tornar ato, na jornada literária civilizacional — da mesma maneira que a Fascinação cristã ainda guarda possibilidades lógicas de atualização histórica, de dramas compatíveis com seu estado morrente e agonizante. Neste sentido, assim como a Alquimia e o Ocultismo dos últimos séculos foram manifestações sombrias, de tipo anticristão e ctônico, do arquissímbolo crístico em certos períodos críticos, o que quer dizer que não foram mais do que a atualização de possibilidades internas do Fascínio cristão, o ateísmo e o hedonismo New Age, desdobrado politicamente no “woke”, de nosso tempo, justamente por serem soberbamente anticristãos, correspondem a possibilidades inerente e exclusivamente ocidentais. Em todos os casos, são crises dramáticas e tragédias sentidas, no mínimo intuídas, por todos os ocidentais e culturalmente cristãos.

… a Alquimia e o Ocultismo dos últimos séculos foram manifestações sombrias, de tipo anticristão e ctônico, do arquissímbolo crístico…

A Literatura atuará, nestes meandros, como sempre atuou ao longo dos tempos: refletindo na intimidade de suas narrativas o “sentimento de Mundo”, a “Anima Mundi” de seu próprio tempo, destacando sempre as possibilidades inerentemente humanas e de homens encarnados e circunstancialmente instalados. Mais uma vez. V. F. da Silva nos brinda com um norte:

O destino da literatura, como o entendemos, sempre esteve ligado ao destino do humanismo. A matéria-prima da imaginação literária foi o próprio homem, o homem de carne e osso, com seus pesares, exultações, vitórias e derrotas, coimplicando o largo círculo de sua mente aventurosa. Toda a literatura é antropocêntrica, é um discurso sobre o humano, capaz de despertar renovadamente o mesmo interesse e o mesmo arrebatamento anímico. É míster estar seriamente empolgado pelas vicissitudes e pelas ‘vidas possíveis’ do indivíduo humano para que a narração literária apaixone a nossa imaginação. Existem, portanto, certas condições de possibilidade de qualquer estesia literária, uma predisposição interior, sem a qual a dimensão artística do romance e da poesia com base nessa experiência nada nos diria. Essa condição primordial de acesso à forma de comunicação literária é a devoção, a atenção exclusiva pelo humano, pelo mito do homem. […] A paixão do humano assenhorou-se de nossa consciência como um conjunto de desempenhos eminentes e sagrados. Essa paixão humana impôs-se, em primeiro lugar, como paixão-divina, drama da cruz e da subjetividade, símbolo supremo de onde proviria a relevo e fascínio do ‘homo sum’.
- pp. 134–135

Assim sendo, a única possibilidade de a Literatura se cumprir em nosso tempo de declínio é, conservada a paixão pelo humano, inerente ao Mito do Homem tal como estabelecido no cristianismo, saber traduzir em seus próprios termos a crise e as possibilidades humanas de nossa época, permeando-a de motivos sensíveis e existenciais, ou simbólicos, e ofertando, via estrutura narrativa, um modelo de identificação sutil para o leitor, o qual perceberá a analogia do sugerido com o seu próprio sentimento a respeito de si e do Mundo. Deste patamar, portanto, terá ele melhores meios de perceber-se e de recolocar-se neste mesmo Mundo, todavia de uma maneira mais autoconsciente e voluntária, com um senso de direção esclarecido. O que se nos ocorre, todavia e sobretudo na forma cinematográfica das narrações, não satisfaz essas prerrogativas — inclusive porque a audiência, via de regra, não traz mais consigo a disposição espiritual ou intelectual necessária, que deverá ser segundo o supracitado.

… é ali que a hora da leitura será análoga à da Confissão, perfazendo um encontro do homem consigo mesmo…

O que temos hoje é a absorção mercadológica e a corrente distorção da Literatura e de outras artes expressivas. A bárbara literalidade dominou a sutileza — tudo dever ser idêntico ao que se vê, sem profundidade, para que ressoe de maneira mais apelativa ao instrumental sensorial e aos apetites mais baixos e superficiais do espectador, se ele ainda puder ser chamado “leitor”. Aqui eu confundo Livro e Cinema de propósito, mesmo que eu compreenda as diferenças fundamentais — o ponto de contato é de este ser, como aquele fora, o veículo principal da impressão narrativa em nosso momento cultural. Nos damos, apenas e tão somente, aos termos do entretenimento. Até aqui, nem tudo está exatamente perdido, embora a hegemonia quase completa deste tipo de mídia e de seu atual formato seja, sim, um problema. Uma camada superficial, bastante óbvia e literal, pode apresentar-se legitimamente mesmo na Literatura consagrada, mas ela, para comover profundamente o espírito, deve ocultar em sua intimidade uma sutileza, um segredo que todos os homens conhecem quando miram para dentro de si, mas que preferem esconder uns dos outros — é ali que a hora da leitura será análoga à da Confissão, perfazendo um encontro do homem consigo mesmo e, daí, com o Absoluto, postado diante do Tribunal Divino.

Talvez essa falta de sutileza, desse jogo lúdico de revelação e de ocultação, tenha alguma relação com o cansaço notável dos espectadores com o largo da produção cinematográfica vigente, com críticas cada vez mais incisivas à superficialidade dos roteiros, que parecem refletir uma incapacidade crescente dos representantes deste setor da cultural nos termos do domínio de sua própria arte. Pode-se mesmo afirmar que jazem embrutecidos, emburrecidos por seu secularismo hedonístico-materialista, inermes e insensíveis à realidade e ao que é verdadeira e sutilmente humano, e incapazes de traduzir a crise ou a circunstância do homem hipermoderno de uma maneira que gere identificação profunda e comoção fascinada.

A imposição de uma agenda política e ideológica, posta explicitamente nas estruturas e na estética das narrativas cinematográficas, apenas põe os últimos pregos no esquife, constituindo uma das maiores afrontas à inteligência das testemunhas e esterilizando qualquer eficácia substancial, em sentido espiritual, da mídia “televisivisa”, porque perverte e prostitui o sentido mesmo da Literatura, a qual deixa de se referir ao homem per se na medida em que introduz em seu seio um elemento exótico, externo à experiência íntima do humano e ligado quase exclusivamente a interesses pragmáticos e reformistas, que não estão instalados no fundo da consciência que o homem moderno tem de si e do Mundo, e que não são problemas seus, mas questões de um grupo limitado de “intelectuais” e lobistas.

… interesses pragmáticos e reformistas, que não estão instalados no fundo da consciência que o homem moderno tem de si e do Mundo…

“Não sabeis que um pouco de fermento faz levedar toda a massa?” (1 Co 5:6), isto é: a mistura com uma má intenção estranha ao espírito da Literatura transubstancia todo o material, que se torna outra coisa, não podendo mais ser o que outrora foi. A Literatura deixa, então, de refletir o Homem e se torna um mero instrumento para causas revolucionárias que lhe são alheias e de ordem futurística — partícipe do instrumental politicista e burocratizante de engenharia social. É por isso que o espectador médio invariavelmente se sente incomodado e até traído por subterfúgios tão pobres e presunçosos, e é por isso, entre outros fatores, que ele se abstém cada vez mais de consumir esse tipo de produto.

Veja bem: a tendência das elites de politizar e burocratizar a tudo com uma finalidade de reforma global é parte da crise civilizacional do Éon cristão e do homem que vive esta crise desde o panorama de sua existência local e da universalidade de sua mais profunda intimidade — é a este homem que a Literatura deveria estar se referindo, para cumprir seu projeto, evitando ser ela mesma uma ferramenta política e burocrática a mais nos entremeios do Poder. E se a Literatura raras vezes não representou interesses políticos, em geral o foi apenas até a “página dois” — o drama humano é o que dá a qualquer clássico a sua tônica atemporal. Quando o Político está posto no tutano, no cerne mesmo da Literatura, ela já não é. As consequências disso, de um achatamento do espírito e da autoconsciência do homem ocidental, cada vez mais massificado e vulgar, devem ser parte de seu drama degeneracional. Para lidar com ele, todavia, jaz mais solitário do que nunca.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 11 de novembro de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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