Da Tirania de Hoje

O temperamento titânico de nosso tempo

Natanael Pedro Castoldi
4 min readMar 7, 2023

Como tenho dito a partir do pensamento de Furio Jesi, o desenvolvimento da Cultura envolve o gradual afastamento do complexo mitológico-ritual — o Templo vai assimilando as prerrogativas do Poder Burocrático-Institucional e deixando de manifestar o Poder Carismático (Paolo Prodi), típico do Mito na sua gênese. Paradigmática para essa observação é a narrativa de Números 11:25–29: reunidos na Tenda, o protótipo do Templo-Palácio, os anciãos profetizam por um tempo, até que param e passam a ouvir Medade e Eldade, dois anciãos que não estavam na Tenda, profetizando no Acampamento. No mesmo momento em que o Tabernáculo é instituído, inicia-se a tensão entre os Dois Poderes, pois se regula, via uma classe religiosa formal, a sacerdotal, o culto permitido, sempre próximo da figura régia, pondo aberta a vereda informal do profeta, sempre visto com desconfiança.

Conforme, portanto, a Cidade cresce, a fonte carismática da epifania mítica vai sendo fechada, já que é matriz de ebulições desordeiras, e vai dando lugar a uma economia divina, à técnica, à burocracia. Todavia, mesmo nesse contexto, como o Templo continua sendo o lócus do Divino e dispensador do Sagrado para todas as áreas da vida, inclusive para o Palácio, já que os reis são ungidos pelos sacerdotes, nós estamos longe de qualquer secularização. O que ocorre aqui é que o Mito é domesticado, civilizado, traduzido em texto, nas grandes epopeias poéticas. A fonte do Divino não está obstruída e, por isso, visto que todas as áreas da vida comum estão santificadas e codificadas no Sagrado, e que o Símbolo, ministrado no Mito-Rito do Templo, continua mobilizando as paixões dos homens, destinando-as aos seus objetos legítimos, há, enquanto o sistema cúltico prosseguir autoritativo (isso dependerá da legitimidade do Estado), paz e ordem sociais. Guerras e crises severas, que abalam os fundamentos ontológicos da Cidade, ou o excesso de burocratização, obstruem a economia divina e, da desordem no espírito individual, desembocam em melancolia e desespero gerais, estimulando revolta e a aquisição de novas formas.

Cultura, para ter vitalidade, deve estar enraizada no Culto

A emergência do Estado moderno, no Ocidente, dados incontáveis fatores que já apontei exaustivamente por aqui, trouxe consigo a secularização da Cultura. Por definição, Cultura, para ter vitalidade, deve estar enraizada no Culto, de modo que é necessário que se mantenha sempre uma “religião universal” nos fundamentos da vida comum. A secularização é, pois, a perda dessa religião, substituída pela técnica e pela burocracia por si sós. Naturalmente, há uma espécie de “sacralização” dalgo como a Ciência e, por conseguinte, uma transformação dos cientistas em sacerdotes. Mas é lógico que isso não satisfaz — a Cultura precisa estar ligada ao Culto fundador, e não há Culto na Ciência, tampouco há independência carismática do cientista frente à máquina estatal, como acabou ficando óbvio no Séc. XX. A sociedade burguesa que vemos se formar no contexto da secularização é, segundo Jesi, o exato oposto daquela pré-moderna: nela o Mito não mais pode aparecer enquanto epifania, pois seu mecanismo está cristalizado na repetição constante da forma, na preservação máxima do mesmo, do ameno, do consumível.

É disso que se alimenta a Cultura de Massas: da repetição para consumo, e consumo jamais pode significar epifania, pois epifania demanda Eros, que é o permitir-se dominar pelo Outro — quem consome nunca é dominado, sempre domina, pois sempre devora. O éthos da Cultura de Massas está baseado no afastamento do Mito, na distância suficientemente segura para que nenhum humor se eleve além do nível médio, para que nenhuma inclinação profunda, verdadeira e apaixonada ganhe fôlego, pois algo assim facilmente orientar para sacrifícios e desnecessidades inflamadas, que vão na direção oposta do consumo hedonista. O consumismo não se funda sobre desejos intensos, mas sobre a intolerância a qualquer sentimento mais forte, já que o consumidor é levado a saciar com máxima velocidade qualquer mínima carência.

Esse sistema é absurdamente disfuncional. Não trabalha com economia divina, com o Símbolo epifânico. O consumo se acelera como um distrativo justamente porque inclinações e necessidades mais profundas do homem não estão sendo supridas, e porque suas exigências psicossomáticas não têm encontrado objetos legítimos para catarse — daí a angústia profunda, da qual se escapa com pressa ao menor sinal, por meio de todo o tipo de exagero inebriante. O niilismo de fundo, contudo, não se extingue. Como ocorreu nas primeiras décadas do Séc. XX, essa angústia baseada na falta e sedenta de resolução fica acessível para quem, por meio do Símbolo epifânico, da propaganda ideológica, apresentar o Mito e atiçar as funduras viscerais do animal humano. Se isso é feito, toda a torrente do reprimido sobe sob a forma de ressentimento e de ódio violento. Daí o homem moderno estar muito mais perto do bárbaro selvagem e incivilizado do que o homem medieval, que podia contar com uma boa economia divina, capaz de mobilizar suas paixões periodicamente, dando-as sempre seus caminhos para o esgotamento.

Hoje vivemos num mundo que abandonou as possibilidades da economia divina baseada numa religião universal e que, consequentemente, é incapaz de lidar com a eventual emergência de paixões viscerais, que ficam vagas e latentes para erupções repentinas, conforme o arbítrio de líderes políticos e ideológicos. Isso produz um medo constante, para não dizer uma fobia, e induz ao imperativo da transparência absoluta — todos devem saber o tempo inteiro o que cada um pensa e quem está suscetível a pronunciar palavras proibidas, que possam estimular paixões indesejáveis. O único caminho para uma sociedade como essa é o do controle sempre maior e mais completo do Estado e de todo o aparato técnico e burocrático que ele possa absorver e instrumentalizar, porque se não há mais como exorcizar os demônios da alma humana, que os homens sejam mantidos sob controle — com os ânimos amenizados por guloseimas diárias e ameaças de punição impiedosa, caso eclodam nalguma temeridade.

Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 22 de fevereiro de 2022.

--

--

Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

No responses yet